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20 DEZ 2018
20 dezembro 2018 às 06h29

Marta Paço, cega, campeã de surf: "O mar é justo. No mar, sinto que sou igual aos outros"

A surfista portuguesa Marta Jordão Paço, de 14 anos, conquistou este sábado a medalha de ouro na classe AS-VI no primeiro campeonato europeu de surf adaptado, a decorrer, na Praia do Cabedelo, em Viana do Castelo. (Este perfil da atleta foi publicado originalmente no dia 20 de dezembro de 2018)

Rui Frias

Cega desde nascença, Marta habituou-se desde cedo a superar a adversidade. Talvez por isso tenha chegado da Califórnia com a medalha de bronze no Mundial de surf adaptado, aos 13 anos. Uma campeã com força, que gostava de ser médica.

As notificações não param de cair no telemóvel de Marta Paço. Aos 13 anos, como acontece com qualquer adolescente, as redes sociais fazem parte do seu dia-a-dia. Mas no seu Instagram multiplicam-se os likes à última publicação partilhada com os seus seguidores: um vídeo da receção no aeroporto do Porto, onde dezenas de amigos a esperavam na terça-feira.

Marta é cega, mas isso não a impede de manobrar com destreza o ecrã tátil do telemóvel, com a ajuda de uma tecnologia de voz, onde vai atualizando as mensagens de felicitações recebidas. Como não a impediu também de, há dois anos, subir para cima de uma prancha e começar a praticar surf. É essa a razão da maioria das mensagens e dos likes recebidos nas últimas horas: Marta ganhou a medalha de bronze no campeonato do mundo de surf adaptado que decorreu em San Diego, na Califórnia.

Marta é a campeã do momento. Natural de Outeiro, em Viana do Castelo, é cega desde nascença. Mas cedo se habituou a desafiar as limitações físicas. Por isso, antes do surf, já tinha experimentado variados desportos, desde o "skate aos patins, bicicleta ou natação", enumera ao DN, confessando que sempre teve uma atração maior por "atividades mais ou menos radicais".

Marta apresenta um espírito forte, desinibido, e um discurso que impressiona pela forma positiva como encara a sua condição. Os pais tiveram um papel importante nesse processo. "Inicialmente foi um choque, ficámos como que sem luz. Mas depois decidimos que a melhor forma de encarar o facto de termos uma filha cega era proporcionar-lhe as mesmas oportunidades que a irmã, mais velha três anos, tinha", conta Dulce Paço.

E isso passou por ter "uma mentalidade aberta" em relação às coisas que a Marta poderia ou não fazer. "Sempre a deixámos experimentar tudo, também é importante ela perceber os seus limites, cair quando for preciso, para perceber como se adaptar."

Nesta quarta-feira, no Centro de Alto Rendimento de Surf, junto à praia do Cabedelo, Marta encontrou, pela primeira vez desde que regressou do campeonato do mundo, alguns dos amigos com quem convive habitualmente no Surf Clube de Viana. Horas antes, ao meio-dia, esteve no Salão Nobre dos Paços do Concelho a ser homenageada pela autarquia local.

Pelo meio, recebeu mensagens de parabéns de gente tão diversa quanto o futebolista Pepe ou a longboarder brasileira Chloé Calmon, a sua grande referência no surf, com quem já treinou mesmo alguns dias. Marta é o centro das atenções e motivo de orgulho para os colegas que estão com ela no clube de surf e que nela reconhecem uma verdadeira "campeã".

Na praia de La Jolla, em San Diego, Marta Paço passou "momentos fantásticos". Foram quatro dias de competição, em duas classes diferentes: a open, que englobou atletas masculinos e femininos, e uma apenas feminina, onde a jovem de Viana ganhou a medalha de bronze. Marta confessa que sentiu "algum nervosismo" antes da final, mas "dentro de água tudo passou".

Tudo começou no café da mãe

O surf surgiu na vida de Marta Paço "há dois anos", conta-nos. A mãe tinha um café perto da praia do Cabedelo que os instrutores da escola de surf frequentavam. E aquela menina cega a andar de skate com destreza cativou-lhes a atenção. "Desafiaram-me a vir experimentar o surf e, como eu também gostava muito de água, não hesitei. Vim, gostei e comecei a praticar."

"As coisas foram evoluindo de forma natural", conta Tiago Prieto, o treinador. "É uma coisa nova para nós também, ela foi-nos desafiando e nós fomos aprendendo com o feedback que ela nos dá. Mas é muito fácil trabalhar com ela. Ela tem uma perceção fantástica do ambiente e das condições que a rodeiam", diz o treinador, com quase 30 anos de experiência no mundo do surf, mas agora com esta "responsabilidade acrescida" de ser também "os olhos da Marta no mar". "Ela deposita toda a confiança - a vida dela - em mim, quando estamos no mar", resume sobre o seu papel.

Nos campeonatos (e nos treinos), Tiago entra com Marta para a água e vai-lhe dando as instruções sobre as ondas a apanhar. "É ele quem me diz se a onda é mais forte ou mais fraca, se devo ir mais para direita ou mais para a esquerda, o momento de entrada na onda", relata a jovem surfista. No mar, "a comunicação verbal é constante" entre os dois.

Essa relação de confiança com o seu treinador-guia é "fundamental para ela", reconhece a mãe, Dulce. E Marta assume a "confiança total" em Tiago Prieto desde o início do processo, há dois anos. "Nas primeiras vezes ele deu-me uma série de instruções ainda na areia, sobre como me pôr em pé na prancha, como remar e essas coisas básicas. Depois começámos com umas ondas pequenas, só na espuma, e fomos passando para ondas maiores, aos poucos", revela a adolescente, que, apesar desta conquista em San Diego, há poucos dias, não tem dúvidas em escolher outro como o momento mais feliz que já passou no surf: "Foi a primeira onda em que consegui pôr-me em pé na prancha. Essa primeira vez não se esquece."

De resto, Marta Paço garante que nunca teve "medo ou vontade de desistir", ela que criou uma boa relação com o mar desde muito nova. "A família da mãe é uma família de pescadores e eu habituei-me a ir para os barcos com eles e a frequentar a praia, entrar na água", conta. O mar é quase um habitat natural. "No mar sinto muita liberdade. E sinto que sou completamente igual aos outros. As condições do mar são iguais para todos. É justo", descreve.

Anatomia de Grey e uma profissão que... "não pode ser"

Fora do mar, Marta Paço leva uma vida praticamente tão autónoma quanto os restantes jovens da sua idade. "No dia-a-dia já me esqueço de que não vejo", refere, com naturalidade. Exceto quando alguns defeitos de cidadania teimam em lembrar-lhe as limitações. "A minha maior dificuldade são os carros estacionados em cima do passeio. Isso é irritante", desabafa.

"A forma como ela encara as situações no dia-a-dia é... como se isso [a cegueira] não fosse uma dificuldade para ela. Não sinto que estou a acompanhar uma pessoa cega. Ela não nos incute esse peso. É completamente autónoma nas suas atividades", corrobora o treinador, Tiago Prieto.

A cegueira de Marta foi detetada nos primeiros meses de vida. "Quando nasceu não nos apercebemos logo, mas aos 2 meses notámos que ela tinha nistagmo, mexia os olhos de forma diferente. Aos 4 meses foi encaminhada para Coimbra, onde nos disseram que ela tinha uma doença rara", lembra a mãe. O diagnóstico revelou uma amaurose congénita de Leber (ACL). Marta Paço tem apenas uma percentagem muito residual de visibilidade na vista esquerda, que lhe permite ter perceção da luz. Ou seja, perceber quando está claro e quando está escuro.

As investigações mais recentes permitiram descobrir alguns genes associados à ACL, "o que abre um raio de esperança sobre uma possível cura no futuro", diz Dulce Paço, que em 2009 cofundou a associação Íris Inclusiva, da qual é presidente, para ajudar a "promover a plena inclusão comunitária e social das pessoas cegas e com baixa visão". Marta não perde muito tempo a pensar numa possível cura para a sua cegueira e reage com humor: "Se eu não fosse cega não tinha ganho esta medalha."

Além do surf, do cavaquinho, do piano e de cantar num coro, Marta Paço é ainda aluna de mérito na sua escola, onde frequenta atualmente o oitavo ano. Fã da série Anatomia de Grey, é quando fala do futuro profissional que surge o único lamento pela sua deficiência. "Gostava de seguir Medicina, mas sei que não pode ser." Ainda assim, não é isso que a faz perder o espírito positivo. "Não tenho ainda um objetivo definido, mas há outras coisas interessantes na área de ciências", diz.

Quanto ao surf: "Vou continuar a treinar para melhorar cada vez mais. Se conseguir chegar a campeã mundial será muito bom, mas se não conseguir também não é o mais importante", diz Marta, que espera poder servir de motivação para outros jovens com deficiência não desistirem de "ser felizes".