Um dia, em 1958, numa crónica sobre futebol, Nelson Rodrigues mencionou uma figura da psicologia que não ocorrera a Freud: o "complexo de vira-lata". E, para poupar o leitor de ter de ir aos clássicos da especialidade - onde não encontraria a expressão -, foi logo explicando: "Por complexo de vira-latas entendo a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo. Isto em todos os setores e, sobretudo, no futebol.".Nelson, como se sabe, às vezes usava o futebol como metáfora para explicar o Brasil, o mundo e a vida. Ao criar o "complexo de vira-lata" - numa crónica na revista Manchete Esportiva, de 31/6/1958 -, estava apenas desenvolvendo a sua tese de que "o subdesenvolvimento não se improvisa, é um trabalho de séculos". Nossa própria atitude diante do futebol estrangeiro refletia, segundo ele, a dubiedade com que nos víamos e víamos os outros. Para qualquer torcedor brasileiro dos anos 1950, o jogador europeu era "duro de cintura", não tinha habilidade com a bola e só sabia valer-se de sua saúde e força física, superior ao nosso raquitismo, para se impor. Ou seja, em condições normais, nenhum clube do futebol brasileiro, e muito menos a seleção, cogitaria perder para um europeu..E, no entanto, trilado o apito e iniciado o jogo, parecia baixar sobre nossos jogadores o peso de um secular atraso cultural. Os jogadores europeus sabiam que, em seus países, uma reles xícara tinha 2000 anos de idade e que seus mais cínicos piratas haviam sido condecorados por suas rainhas. Nós, os vira-latas, ressentíamo-nos de tal superioridade. Assim, ficávamos paralisados, não desenvolvíamos nosso potencial, e éramos superados por italianos, ingleses e húngaros, que não jogavam nem sombra do nosso futebol..Mas, em 1958, o Brasil começava a sentir os eflúvios do otimismo e da euforia que marcariam a segunda metade dos anos 1950. Na época, já havia quem atribuísse ao governo do presidente Juscelino Kubitschek a causa daquela euforia. Para outros, já tantos anos depois da guerra, com a Europa recuperada e a quantidade de dinheiro que voltara a circular pelo mundo, o Brasil, com ou sem Juscelino, seria beneficiado. Isso significava que, na prática, os dias do Brasil como vira-lata estavam contados..Mas era preciso que o fim da viralatice acontecesse também no futebol. Nelson foi o primeiro a exortar a seleção brasileira a deixar essa viralatice para trás. Fez isto numa crónica no dia do embarque do Brasil para a Copa do Mundo da Suécia, que estava por começar - e, 40 dias depois, com o Brasil pela primeira vez campeão do mundo, foi quem melhor traduziu o novo sentimento nacional:."Do presidente da República ao apanhador de papel, do ministro do Supremo Tribunal Federal ao pé-rapado", ele escreveu, "todos aqui percebemos o seguinte: ninguém tem mais vergonha de sua condição nacional. As moças na rua, as datilógrafas, as comerciárias, as colegiais, andam pelas calçadas com um charme de Joana d'Arc. O povo já não se julga um vira-lata. Sim, amigos: o brasileiro tem de si mesmo uma nova imagem. Ele já se vê na generosa totalidade de suas imensas virtudes pessoais e humanas"..Bem, isso foi há mais de 60 anos. Desde então, o Brasil teve fases de grande impulso na economia - até hoje, bem ou mal, é uma das dez maiores do mundo - e outras péssimas, como a atual, mas, de tantas vezes ser campeão mundial, deixou de ser vira-lata no futebol. Só que a situação mudou de novo, e para pior. A antiga viralatice futebolística converteu-se numa espécie de menoridade irreversível. Deixámos de ser adultos em campo e tornámo-nos menores de idade. Só servimos agora para abastecer o bilionário mercado europeu. E nossos jogadores, que até há pouco só eram descobertos pelo futebol internacional lá pelos 25 anos, quando já se tinham tornado queridos pelos adeptos dos nossos clubes, agora vão embora mal despontam nas categorias de base..No passado, isso aconteceu com Ronaldo, Deco, David Luiz, Douglas Costa, Marcelo, Hulk - nenhum deles marcou época em seus clubes brasileiros de origem. Não tiveram tempo. Mal surgiram, foram vendidos para a Europa e só passámos a conhecê-los quando vestiram as cores da seleção. Mais recentemente, foi a mesma coisa com Gabriel Jesus, Wallace, Douglas Santos, Luan, Thiago Maia, Richarlison, Philippe Coutinho. A única exceção foi Neymar - o Santos conseguiu segurá-lo por quatro ou cinco anos antes de, finalmente, ter de vendê-lo para o Barcelona..Hoje isso não seria mais possível. Vinicius Jr., que se revelou nos infantis do Flamengo, já era cobiçado pelo futebol espanhol desde os 16 anos. O Real Madrid entrou em acordo com os seus pais e ele foi contratado aos 17. O máximo que o Flamengo conseguiu foi que permanecesse no Brasil até os 18 anos. Pois Vinicius Jr. jogou pouco mais de 30 partidas pelo Flamengo, encantou os mais de 40 milhões de adeptos do clube carioca e teve de ir embora. E, como ele, muitos outros já foram e irão. Em 2016, o Brasil vendeu 439 jogadores. Em 2017, 514. A maioria partiu sem ter sido percebida por aqui - e só no futuro ouviremos falar deles..Neste momento, em cada rua de cada cidade do Brasil onde haja um garoto correndo atrás de uma bola, um olheiro brasileiro ou internacional estará preparando-se para "descobri-lo" e efetuar uma venda milionária. Esse garoto pode ter até menos de 12 anos. Fomos reduzidos a exportadores de craques mal saídos das cuequinhas de bebé..Jornalista e escritor brasileiro, autor de, entre outros, O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).