"Portugal não terá nesta década problemas de disponibilidades de água para consumo humano"

O papel vital da água e a necessidade de conservar, proteger e utilizar racionalmente este recurso motiva em setembro e outubro um ciclo de conferências sob a égide da Academia das Ciência de Lisboa e do seu programa Ao Encontro da Sociedade. O ciclo "A Água - Um Bem Essencial à Vida" agenda um primeiro momento a 20 de setembro (18h00) com a presença de Alexandra Serra, administradora executiva da Águas de Portugal. O tema a debate, "Água - A Gestão do Recurso Essencial", dá-nos pretexto para conversar com a gestora.
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Vai levar à conferência "A Água - Um Bem Essencial à Vida" uma abordagem que se centrará no tema "uma só água". Trata-se de um alerta para a premência de gerirmos racionalmente este recurso precioso?
A visão "uma só água" baseia-se no conceito de que para o equilíbrio entre a procura sustentável e as disponibilidades de água dos territórios, é essencial caminhar para um novo modelo de gestão holística dos recursos hídricos, no contexto de um novo "normal" - alterações climáticas cada vez mais evidentes no seu impacto nos territórios, na sociedade e nas atividades económicas. Neste novo paradigma, há que gerir de forma integrada as disponibilidades geradas pelas origens de água convencionais com as chamadas origens de água "não convencionais" como seja a água residual tratada para reutilização e a água dessalinizada. Temos várias origens de água, mas uma só água no sentido de que a água que temos terá de servir todos os seus utilizadores, sejam eles cidadãos, agricultores, empresários. Todos os utilizadores partilham o recurso e por isso a água tem de ser tratada como um bem comum, seja ela água que corre nos rios, que pode ser encontrada nos aquíferos, água do mar que dessalinizamos, água residual que tratamos para reutilização.

Que retrato faz à "saúde" da água disponível para consumo urbano em Portugal?
A água disponível para consumo urbano está de "boa saúde" em termos de qualidade, e isso é assegurado por uma rede de monitorização da qualidade da água nas torneiras dos consumidores, como pode ser comprovado pelos relatórios da ERSAR. Em termos de quantidade, Portugal não tem nem terá nesta década problemas de disponibilidades de água para consumo humano. Mesmo em situação de seca, não faltará água na torneira dos portugueses. A questão é mais ampla. Temos de criar quadros de compromisso entre todos os sectores utilizadores de água, de modo a garantir resiliência e fiabilidade no fornecimento de água para os diferentes usos, incluindo os usos ambientais. Em Portugal, apenas 20% das necessidades de água são para consumo urbano. 80% são necessidades dos setores económicos: agricultura, indústria e turismo. A escassez estrutural de água está a fazer-se sentir com maior impacto a sul do Tejo, onde os efeitos das alterações climáticas, a par do aumento da utilização dos recursos hídricos pelos setores económicos, agravam os desequilíbrios entre oferta e procura de água. Os diferentes utilizadores de água nos territórios, incluindo o setor urbano, têm mesmo de cooperar e trabalhar em conjunto para encontrar soluções sustentáveis que garantam uma utilização racional e eficiente deste recurso, que é hoje mais do que nunca um fator crítico para o desenvolvimento.

O nosso país conta atualmente com uma estratégia global para a água capaz de responder à emergência de ação que o tema impõe?
Estão em curso em Portugal vários programas de ação para combater a escassez de água. Os Planos de Eficiência Hídrica do Algarve e do Alentejo e o Plano do Tejo são exemplos das estratégias em curso para responder ao crescente impacto das alterações climáticas na gestão da água. A Estratégia de Adaptação dos Territórios à Escassez de Água desenvolvido pela Agência Portuguesa do Ambiente e pela Águas de Portugal (AdP) define os programas de ação em curso e a desenvolver nas regiões mais vulneráveis do território nacional.

Nesse sentido, de que forma podem os Planos de Eficiência Hídrica contribuir para mitigar os problemas de falta de água/utilização da água em regiões com escassez deste bem?
Os Planos de Eficiência Hídricas são instrumentos de planeamento que analisam os desequilíbrios existentes entre a procura e a oferta de água e os riscos potenciais de intensificação desses desequilíbrios e definem um conjunto de medidas infraestruturais e de governância para aumentar a resiliência dos sistemas e assegurar a eficiência no uso da água por todos os sectores utilizadores. Ao nível de medidas estruturais a adotar destacam-se a interligação entre sistemas de abastecimento, a ativação de origens alternativas, a otimização dos sistemas de tratamento, a reutilização de água e a dessalinização. O Algarve é a região do país onde as alterações estão a ser mais rápidas e intensas, e é também a região onde as medidas do Plano de Eficiência Hídrica estão mais avançadas. O sotavento algarvio, desde o último verão e com as medidas já realizadas, dispõe hoje de mais 15 hm3 de água para consumo urbano. As medidas em curso, financiadas pelo PRR, representam um investimento de 200 milhões de euros. Pressupõem a redução das perdas no setor urbano e agrícola. Permitem transportar a água entre o Sotavento e o Barlavento. Garantem mais água nas origens: 30 hm3 no Pomarão, 24 hm3 de dessalinização de água do mar e 8 hm3 de água tratada das estações de tratamento de águas residuais (ApR). Com estas medidas, a região do Algarve terá serviços de águas mais resilientes e menores riscos de conflitos pelo uso da água.

Hoje, a inovação tecnológica é um fator primeiro para a implementação de programas de utilização racional/eficiente da água. Como avalia este parâmetro nos serviços de águas?
A inovação é absolutamente instrumental na evolução de paradigma da gestão da água. A nível tecnológico, e não só. Efetivamente, nunca antes a inovação teve um papel tão decisivo. Estamos a viver um período de transição, de modelos lineares para modelos circulares. Já não basta despoluir os meios hídricos, esse objetivo está alcançado. Dos desafios da proteção ambiental e da sustentabilidade, evoluímos para os desafios da Resiliência, da Circularidade, da Regeneração e da Descarbonização. É um processo estimulante, mas exige mudanças profundas nas formas de fazer. Exige inovação em diferentes dimensões. Desde a institucional até aos modelos de parceria, de financiamento e de negócio, passando pela tecnologia. A título de exemplo destaco a utilização de algoritmos de Inteligência Artificial, a criação de Digital Twins, a adotação de tecnologias da IoT, Estes são alguns dos exemplos tecnológicos que temos de introduzir na cadeia de valor dos serviços de águas. Uma cultura de Inovação é um driver na aceleração destas mudanças.

Atualmente impõem-se modelos de utilização da água circulares ao invés de anteriores modelos lineares. Neste âmbito cai a questão da água reciclada, cuja reutilização retira pressão sobre sistemas de consumo humano. Como tem evoluído a utilização da água reciclada no nosso país e quais as áreas/setores que mais estão a beneficiar?
Portugal tem ainda níveis reduzidos de reutilização de água, cerca de 1,5% do total de águas residuais tratadas nas instalações de tratamento. Não estamos muito longe da média europeia, que é cerca de 2,4%. Há um enorme potencial para aumentar a reutilização nesta década, nos usos agrícolas, industriais e municipais, principalmente a sul do Tejo onde é critico reforçar as disponibilidades de água através de origens não convencionais. As metas fixadas para a década são exigentes, mas necessárias. O objetivo é atingir 20% de reutilização de água até 2030. Atualmente, o Grupo AdP já utiliza cerca de 90% de água reutilizada para os seus usos internos. Nos usos externos, destaco alguns exemplos: em Lisboa, numa parceria com a Câmara Municipal, estamos a fornecer água reutilizada para a rega dos jardins do Parque das Nações. Estamos a fornecer água reutilizada a campos de golfe. No Algarve, existem já vários campos de golfe a utilizar água reutilizada para rega e estão em desenvolvimento novos projetos. A modernização do perímetro hidroagrícola da Várzea de Loures contempla a utilizada de água reutilizada para a rega, a partir da ETAR de Frielas. Em Sines, estamos a preparar a ETAR industrial para fornecer água reutilizada a várias indústrias do polo industrial.

Esta reutilização da água pode mitigar a escassez já evidente nalguns municípios no que toca ao ciclo urbano da água?
Embora a disponibilidade de água para consumo humano esteja assegurada, a reutilização de água para usos municipais não potáveis é uma medida que contribui para a sustentabilidade no uso da água. Não faz sentido utilizar água potável para a rega de espaços verdes ou para a lavagem de ruas. Acresce que a reutilização contribui também para preservar a água nos meios hídricos, permitindo a sua mobilização para outros usos. Um caso paradigmático é o caso da região do Algarve, em que está em curso um programa integrado de reforço da resiliência no fornecimento de água aos diferentes utilizadores. Este programa inclui a mobilização de água reutilizada para o setor do turismo, designadamente para a rega de 18 campos de golfe, a construção de uma central de dessalinização e a redução das perdas de água nos sistemas municipais.

O Grupo Águas de Portugal tem em curso um programa nacional para a reutilização de águas residuais tratadas. Quer falar-nos desse programa?
Efetivamente, o Grupo AdP tem em marcha um Plano de Ação para a Reutilização, cujo principal objetivo é acelerar a concretização de projetos de reutilização, em todo o país. Em média, anualmente são descarregas para os rios e para o mar cerca de 460 milhões de m3 de águas residuais tratadas. O Plano de Ação integra um conjunto de ETAR na área de influência de potenciais utilizadores que serão sujeitas a reforço de tratamento para que a água para reutilização tenha uma qualidade compatível com os respetivos usos. Com as medidas em curso, prevê-se que em 2026, a reutilização de água atinja mais de 10%. Este Plano de Ação está já em curso. Por exemplo, no Algarve nos últimos meses deu-se início ao fornecimento de água reutilizada a mais dois campos de golfe. Está em curso uma parceria com a DGADR para o desenvolvimento dos sistemas que permitirão o fornecimento de água reutilizada ao perímetro hidroagrícola da Várzea de Loures.

De que forma a presença internacional da Águas de Portugal capitaliza para o contexto nacional?
Os desafios da gestão da água que falámos anteriormente não são apenas nacionais, são regionais e mundiais. A cooperação e a troca de experiências entre países e entre entidades gestoras de diferentes geografias inspiram a adoção de novas soluções. Acresce que, a dimensão e a transversalidade da ação do Grupo AdP em Portugal e no mundo contribuem para a internacionalização de toda a cadeia de valor do setor da água nacional. Quando nos apresentamos a concursos internacionais, procuramos incorporar outras empresas portuguesas para maximizar a proposta de valor aos concursos e para levar para outros mercados empresas portuguesas de pequena e media dimensão. Um aspeto também a destacar na estratégia de internacionalização do Grupo AdP é a capitalização do know-how dos profissionais que trabalham nas várias empresas do Grupo, mobilizando as diferentes competências nas múltiplas missões internacionais. É motivador e estimulante para estes profissionais, fazerem parte de projetos transformadores de melhoria da qualidade dos serviços de água e saneamento noutras regiões do mundo. Um exemplo claro da importância da nossa presença internacional é a Águas de Portugal ser um parceiro de referência do Banco Mundial. Precisamente nesta semana estará connosco uma missão internacional de alto nível, com líderes do Banco Mundial e de empresas publicas operadoras de serviços de água dos vários continentes (Angola, Brasil, Botswana, Índia, Jamaica, Paquistão, Peru, Senegal, Espanha e Turquia) para uma reflexão conjunta sobre soluções mais circulares para a gestão da água.

O ciclo "A Água - Um Bem Essencial à Vida" prossegue a 4 de outubro (18h00) com o tema "Água - Um Bem Seguro" e a participação de Rui Neves Carneiro, Diretor de Laboratório da EPAL.

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