Se Portugal os salvar deles próprios

Publicado a
Atualizado a

Já alguém vos perguntou: "Onde estavas no dia 22 de novembro de 1963?"

Provavelmente não. Foi o dia do assassinato de John F. Kennedy. Eu tinha 9 anos e nunca me hei de esquecer do momento em que ouvi a notícia transmitida pela rádio Voice of Israel.

Sei que em Portugal se pergunta: "Onde estavas no 25 de Abril de 1974?"

Ora bem, eu era um jovem soldado e, por causa do papel fulcral de Portugal e da base das Lajes na salvação de Israel, apenas uns meses antes, recebi a notícia com uma imensa alegria.

Acontece-me o mesmo com outros marcos.

Com o 11 de Setembro, como diplomata colocado em Nova Iorque, vi da minha janela o fumo que serpenteava das Torres Gémeas.

Eu e os meus coetâneos perguntamos muito esses "onde estavas em..." com o 6 de Outubro de 1973, quando estalou a guerra do Yom Kippur apanhando Israel de surpresa, atacado pelo Egito e pela Síria. Quando Israel teve a sua tenra existência em risco, quando nos foi colocado um grande ponto de interrogação à frente tinha eu 18 anos e cumpria o serviço militar obrigatório.

Ou com o 4 de Novembro de 1995, quando o nosso PM Yithzak Rabin foi assassinado por um terrorista judeu. Eu estava lá, seu apoiante indefetível e dos seus esforços para atingir a paz com os palestinianos, nessa manifestação de paz na praça que hoje tem o seu nome.

Mas há uma pergunta similar que se refere a um evento positivo e até formativo nas nossas vidas: "Onde estavas no 19 de Novembro de 1977?"

Essa foi uma noite mítica em que o inacreditável aconteceu. Abriu-se a porta do avião da República Árabe do Egito no Aeroporto de Ben Gurion e Anwar Sadat, o presidente egípcio, assomou. O primeiro líder do mais poderoso Estado árabe a visitar oficialmente Israel concretizaria connosco um acordo de paz. Era o maior dos inimigos de Israel até então.

Quis o destino que, nesse dia, eu fosse um convidado pessoal na residência do então presidente israelita, professor Ephraim Katzir, cientista internacionalmente renomado e amigo da família. De acordo com o protocolo, o nosso presidente seria o anfitrião do presidente egípcio. É claro que o primeiro-ministro Menachem Begin e todos os grandes oficiais do Estado foram receber Sadat ao aeroporto, mas foi o próprio Katzir que o conduziu ao Hotel King David, em Jerusalém, e foi o primeiro a poder privar mais intimamente com ele.

Quando Katzir regressou à residência, nós, família e amigos, impacientes de curiosidade, perguntámos o que de mais interessante tinha ele ouvido de Sadat: "É um homem corajoso, um líder com uma visão", disse-nos. E citou-o:

"Todos os meus irmãos, líderes dos Estados árabes, desprezam-me e amaldiçoam-me em uníssono por causa da minha decisão de cá vir fazer a paz com Israel. Mas, mais cedo ou mais tarde, seguir-me-ão e aos passos que o Egito está a dar", afirmou profeticamente.

E Sadat não era um sionista. Sadat era um militar, um patriota egípcio e um muçulmano crente que, após a guerra de 1973, entendeu que Israel não podia ser aniquilado, que era forte, conquanto não representasse nenhuma ameaça para o grande Egito. Sadat sabia ter de encarar desafios muito mais prementes e que o primeiro deles era dar pão ao seu povo. Saberia Sadat que iria pagar com a sua vida o atrevimento de fazer a paz connosco e que seria assassinado pela Irmandade Muçulmana?

Presumo que, em algum momento, tenha tomado isso em consideração. O Médio Oriente está cheio de inimigos da paz. Ainda nesta última terça-feira, durante a assinatura do Acordo de Abraão, em Washington, os terroristas do Hamas - versão palestiniana da Irmandade Muçulmana - que controlam a Faixa de Gaza lançaram mísseis contra Israel com o intuito de matar cidadãos israelitas.

No fim de contas Sadat tinha razão. Em 1994, o rei Hussein da Jordânia seguiu-lhe as pisadas e assinou um tratado de paz entre o Reino Hachemita e o Estado de Israel.

E, ultimamente, na mesma senda, estão os Emirados Árabes Unidos, o Bahrein e outros Estados árabes juntar-se-ão em breve.

Como escreveu ainda esta semana Walter Russell Mead, no Wall Street Journal: "(...) Os árabes começam a entrever as vantagens de trabalharem com Israel. Israel não é, como muitos acreditavam, uma frágil sociedade artificial mantida pela cola americana. É, claramente, o Estado mais bem-sucedido em todo o Médio Oriente, o mais avançado tecnológica e economicamente. Na região (...) Israel é demasiadamente valioso para o mundo árabe para ser relegado a um estatuto de pária regional. Ganhou, em definitivo, o seu lugar no Médio Oriente."

E os palestinianos perante tudo isto?

Bom, digamos que estão amuados e não querem brincar connosco. Estão frustrados por terem perdido o seu poder de veto na normalização das relações entre Israel e os seus vizinhos.

Os pragmáticos regimes sunitas não podem comprometer-se a esperar pela inação, divisão e falta de liderança que grassa entre os palestinianos. Afinal, aqueles encaram ameaças existenciais imediatas: o regime iraniano dos ayatollahs que personifica o Islão radical xiita por um lado e a Turquia de Erdogan, patrono da Irmandade Muçulmana no Médio Oriente, que representa o Islão radical sunita, por outro.

Uma prova cabal da perda do seu poder de veto é o facto de que depois do comunicado conjunto dos EAU e Israel sobre a normalização das suas relações, a Autoridade Palestiniana, que detém a presidência rotativa da Liga Árabe, emitiu prontamente uma resolução a condenar a iniciativa dos Emirados numa conferência Zoom de Ministros de Negócios Estrangeiros árabes. Num incrível volte-face da prática costumeira, a moção não passou.

O famoso comentário: "Os palestinianos nunca perdem a oportunidade de perder uma oportunidade" da autoria do já falecido Abba Eban, o diplomata número 1 de Israel, é - infelizmente para eles e para nós - sempre atual.

Disseram não ao plano de partição das Nações Unidas de 1947 que permitia a fundação de um Estado árabe em parte da Palestina (termo romano) - Eretz Israel (termo hebraico para Terra de Israel);

Depois da Guerra dos Seis Dias, em 1967, quando o governo de Israel ofereceu um acordo de troca de terra por paz, pressionaram a Liga Árabe a declarar-nos três nãos: ao reconhecimento de Israel; às negociações com Israel; à paz com Israel.

No contexto do acordo de paz com o Egito, por Begin e Sadat, foi-lhes oferecida uma autonomia. Se a tivessem aceitado e provado a Israel que eram capazes de viver pacificamente, lado a lado connosco, já teriam, muito provavelmente, um Estado. Preferiram rejeitá-la.

Ainda assim, foram surgindo outras oportunidades.

Líderes israelitas como Rabin e Shimon Peres permitiram-lhes, dentro da estrutura dos Acordos de Oslo, o estabelecimento da Autoridade Palestiniana nos territórios da Cisjordânia e Gaza e terem Arafat como seu presidente. Mas este arquiterrorista - que sempre declarou aguardar um de Gaulle israelita - sobrepôs sempre o terrorismo à paz.

Apareceram-lhe, aliás, dois de Gaulle israelitas que lhe deram a possibilidade de terminar o conflito e chegar a uma paz definitiva:

O primeiro, o primeiro-ministro Yitzhak Rabin que pagou com a vida, entre outras razões, a perda da legitimidade do processo de Oslo. A opinião pública israelita testemunhava que as concessões israelitas não asseguravam a paz quando viam autocarros cheios de civis explodirem diante dos seus olhos.

O segundo, o primeiro-ministro Ehud Barak, pagou o preço com a sua vida política. Em Camp David, em 2000, sob os auspícios do presidente Clinton, Barak estava disposto a levar as cedências da parte israelita muito longe, mesmo no assunto tremendamente delicado que é Jerusalém.

Diante destes dois homens estava um líder cobarde que, ao invés de usar o carisma e estatuto icónico que detinha junto do seu povo, trazendo-lhes uma paz histórica, regressou de Washington com duas mãos cheias de nada que se apressou a encher de ódio para encorajar a matança de mais israelitas.

O seu sucessor, Abu Mazen, entendeu que o massacre de mais de mil israelitas na 2.ª Intifada (há 20 anos) não trouxe benefício algum à causa palestiniana. Os palestinianos perderam a "rua" israelita. Esmagaram o campo da paz. E, sem a confiança do cidadão comum israelita, do eleitor, a paz nunca será atingida.

Ainda assim, os palestinianos tiveram mais uma oportunidade.

Nas conversações que teve com o primeiro-ministro Ehud Olmert, este ofereceu-lhe mais de 90% das suas exigências territoriais. Abu Mazen não teve coragem para assinar. O pretexto - tem de haver sempre um pretexto - foi que Olmert estava no fim da sua carreira política

Finalmente, em novembro de 2009, o primeiro-ministro Netanyahu congelou qualquer atividade de construção de colonatos na Judeia e Samaria (Cisjordânia) durante quase um ano, em consonância com o presidente Barack Obama que acreditava que tal iria conduzir Abu Mazen à mesa negocial. Nada.

O leitor que tenha chegado até aqui irá perguntar o que tem tudo isto a ver com Portugal.

Tem tudo. Daqui a poucos meses, em janeiro de 2021, Portugal inicia o seu meio ano na Presidência da UE.

Alguém duvida, neste momento, que a paz no Médio Oriente e que a estabilidade na região é também um assunto europeu? Que o fim do conflito israelo-palestiniano é um assunto de todos?

Os palestinianos veem Portugal como um país imparcial - definitivamente não um dos países mais próximos de Israel no quadro da UE - e isto constitui uma vantagem. Portugal pode ajudar os palestinianos a salvarem-se deles mesmos, a encararem a realidade.

Ser-lhes-á dada, pois, uma oportunidade - quiçá a última - de entrarem no comboio da paz, de participarem nos processos de desenvolvimento da região, de escaparem à miséria e à frustração.

No passado dia 15 de agosto, neste mesmo jornal, Augusto Santos Silva publicou um artigo por ocasião do 75.º aniversário da fundação da ONU. Ainda que sobejamente conhecidos, o ministro sublinhou que os princípios basilares que nortearam a sua fundação continuam a fazê-lo hoje. E o reconhecimento do direito à autodeterminação dos povos é, aqui, incontornável.

O movimento nacional palestiniano, que reivindica o seu direito à autodeterminação recusa reconhecer o mesmíssimo direito ao povo judeu.

Abu Mazen declarou mais do que uma vez que nunca reconhecerá Israel como o Estado do povo judeu e é este, precisamente, o núcleo duro, o coração do conflito. Enquanto a liderança palestiniana reclamar a sua legitimidade no direito à autodeterminação mas for incapaz de o fazer numa lógica de reciprocidade, nunca veremos um fim a este conflito.

Enquanto continuarem a olhar-nos como estrangeiros, colonizadores sem ligação àquela terra e não reconhecerem que as nossas pretensões são, também elas, legítimas, nunca teremos paz.

Enquanto se agarrarem ao falso mito e continuarem a cultivar uma identidade fundeada no ethos da vitimização, nunca vão curar as feridas ou ficar prontos para um compromisso de coexistência.

Portugal é um país amante da paz. Não é agressivo, não é ameaçador. Poderá ajudar a conduzi-los, qual terapeuta bem treinado, a mudar o foco.

Não pensem que estou a ironizar. Acredito que sem um processo profundamente transformador, continuando a semear o ódio contra Israel e a plantar ilusões de que netos, bisnetos e trinetos de palestinianos desenraizados há mais de 70 anos vão regressar a Israel ‑ o que per se constituiria a aniquilação de Israel ‑ a questão palestiniana nunca será resolvida.

Portugal poderá ajudá-los a compreender que chegaram ao término de um processo no qual, ao fim de cada recusa a uma iniciativa de paz e ao fim de cada onda de terrorismo e morte, não estão a melhorar a sua posição negocial connosco.

Portugal poderá ajudá-los a compreender a realidade, a perceber que quando Ben Gurion aceitou o plano de partição de 1947 não o fez porque o seu povo ficou exultante com a exígua parcela de terra que lhe fora destinada. Pelo contrário, houve muita frustração e muita resistência a este compromisso doloroso mas ele entendeu, na sua sabedoria e pragmatismo, que uma recusa naquele momento seria perder uma oportunidade que poderia nunca mais reproduzir-se e conseguiu, nesse momento, fundar o Estado de Israel.

Se os palestinianos continuarem a dizer não a todas as iniciativas perderão mais e mais, dia após dia.

A retirada de oito mil israelitas de Gaza - os vivos, porque retirámos os nossos mortos e cemitérios também -, em 2005, levou Israel à beira de uma guerra civil.

Ultrapassámo-lo. Mas aprendemos enquanto caminhamos.

Não há nem haverá um governo em Israel, seja de direita ou de esquerda, que retire os quase 500 mil israelitas que vivem na Judeia e Samaria, nomeadamente após o precedente de Gaza que provou que uma terra evacuada pode tornar-se rapidamente o teatro de operações de uma organização terrorista.

As linhas de 1967 não são sagradas. A vida é.

As linhas de 1967 podem, sim, ser a referência para negociar mas há factos no terreno que não podem ser ignorados e não resta alternativa senão reconhecê-los.

Somos vizinhos. Nós, judeus e palestinianos. Vivemos e viveremos sempre juntos. Mais de 20% dos cidadãos de Israel são árabes-palestinianos.

Abu Mazen declarou que nenhum judeu viveria em solo palestiniano. Cheira a antissemitismo. Lembra-me aqueles regimes que outrora, depois de pogroms e deportações, declaravam certas regiões "limpas de judeus".

Todos os governos israelitas prometeram até à data, e assim será no futuro, livre acesso em Jerusalém aos lugares sagrados para todos os crentes, de todas as religiões. Não há nem haverá, contudo, governo israelita que abandone a Cidade Velha de Jerusalém e repita o trauma de ver as pedras do antigo cemitério judaico do Monte das Oliveiras e das sinagogas tornadas chão de campos militares e casernas árabes.

Também não haverá governo israelita que arrisque o acesso dos judeus ao Muro das Lamentações, como aconteceu durante a ocupação da Cidade Velha entre 48 e 67.

A minha casa, em Telavive, fica a dez minutos de carro da região da Samaria, parte da Cisjordânia. Pois, não há nem haverá nenhum governo israelita que abra mão da sua segurança, monitorização e prevenção de atividades terroristas daqui provenientes para território israelita.

Foi, aliás, graças a esta capacidade de monitorização que Abu Mazen ainda não caiu na mão de extremistas do Hamas, como sucedeu em Gaza, e ele é o primeiro a reconhecê-lo.

A monitorização do vale do Jordão, a este, também não será abandonada por nenhum governo nosso.

O Reino Hachemita da Jordânia prefere ter um tampão israelita seguro entre si e a futura entidade palestiniana. E nós não deixamos esta fronteira de acesso quase direto ao Iraque e Irão noutras mãos que não as nossas.

Os palestinianos não vão conseguir tudo o que querem. Nem nós. Ben Gurion viu-se obrigado a desistir de vastos territórios da nossa histórica Terra de Israel.

Os curdos, aos quais foi tantas vezes prometido um Estado, e tantas vezes viram essa promessa traída pelo mundo, diriam não se lhes fosse dada a oportunidade de se governarem, ainda que numa pequena parcela da sua pátria histórica?

Portugal, na presidência da UE, pode ajudar os palestinianos a entenderem que têm uma oportunidade para fazer parte de um novo alinhamento pragmático no Médio Oriente que traz desenvolvimento económico, prosperidade, progresso e desafios partilhados como o das alterações climáticas, da diminuição dos recursos, da sustentabilidade e, sem dúvida, o do coronavírus.

Têm outra opção. A do extremismo. A Faixa de Gaza é o exemplo vivo dessa decisão em que todos os recursos são canalizados para a guerra e o terrorismo ao passo que o povo se afoga na miséria.

O que o diário palestiniano Al Quds, de Jerusalém Oriental, publicou nesta semana, num exercício impressionante de autoerreflexão, não consegue escamotear a profundidade da crise palestiniana. O editorial pergunta: "O que devemos fazer? Continuamos com deplorações e em negação enquanto a terra desaparece? A liderança palestiniana tem de reunir agora, sem mais delongas, examinando realisticamente o que está a acontecer."

"Examinando realisticamente" são as palavras-chave.

O artigo que aqui vos escrevo está a ser publicado no primeiro dia do Ano Novo Judaico. E é sempre uma oportunidade para desejar a todos um ano bom, melhor do que aquele que deixamos para trás.

Só que, se pedimos ao próximo para ser realista, temos a obrigação de também o ser. Não creio que vá ser um ano fácil.

Trabalhemos juntos. Israelitas, palestinianos, portugueses, todos. Invistamos esforços e recursos naquilo que é de facto importante. Na vida, na sua melhoria, na sua qualidade. Sempre, e sem nunca pôr em causa o que de mais precioso nos foi dado.

Embaixador de Israel

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt