A comissão da desonra
Em julho, a SIC e a TVI anunciaram que iam acabar com os programas sobre futebol nos quais os intervenientes eram "representantes" dos três "grandes" - Benfica, Futebol Clube do Porto e Sporting. A justificação apresentada pela SIC, a primeira a fazer o anúncio, foi a do "ambiente de toxicidade" propiciado por tais programas.
Já muita gente identificara no violento, sectário e frequentemente injurioso e calunioso discurso sobre futebol o modelo que tem vindo a infetar o discurso político (cá como em muitos outros sítios), sublinhando que um dos maiores expoentes dessa infeção, André Ventura, iniciou a sua "carreira" de comentador na Benfica TV, da qual passou para a CMTV, sempre arvorando a camisola do seu clube (e de Luís Filipe Vieira). Mas, infelizmente, nem o fim destes programas acaba com o discurso extremado sobre futebol nem a toxicidade desse universo se atém a esse tipo de discurso.
A verdade é que, como se passa com a Igreja Católica, cujo estatuto de intocabilidade e privilégio no país poucos se atrevem a reconhecer (como se constatou mais uma vez no confronto entre o ataque brutal à Festa do Avante! e o silêncio perante a enchente em Fátima), quanto mais afrontar, o universo do futebol goza de uma espécie de suspensão dos mínimos de exigência civilizacional, ética e até legal - suspensão que até já foi consagrada pela justiça quando quer na primeira instância quer no Tribunal da Relação de Lisboa se considerou que o dirigir a um treinador as palavras "Vai lá prá barraca, vai mas é pó caralho, seu filho da puta!" não tem, por ter nele ocorrido, dignidade penal.
Vale a pena revisitar a justificação do acórdão da Relação, de outubro de 2019. Segundo este, as expressões citadas correspondem a "um comportamento revelador de falta de educação e de baixeza moral e contra as regras da ética desportiva [mas] de alguma forma tolerado nos bastidores da cena futebolística", Numa "envolvência futebolística" não têm, assegura-se, "outro significado que não seja a mera verbalização das palavras obscenas, sendo absolutamente incapazes de pôr em causa o carácter, o bom nome ou a reputação do visado".
Trata-se afinal, para as juízas desembargadoras que assinaram a decisão - Maria do Carmo Ferreira e Cristina Branco -, de aceitar que "no mundo do desporto, e, em particular, do futebol, estão instituídas determinadas práticas que a generalidade das pessoas valora de uma forma mais permissiva". Como na altura escreveu, escandalizado, José Manuel Constantino, presidente do Comité Olímpico português, no seu Facebook, o que esta decisão judicial faz é estabelecer o mundo do futebol como "uma espécie de off-shore onde se pode praticar o que no exterior é criminalizado".
Um mundo de valores "diferentes", portanto, no qual, por imperarem as "paixões", há ações irracionais e inaceitáveis que devem não obstante ser "perdoadas", ou pelo menos entendidas como "naturais"; onde a ética se suspende. Muito o que a habitualmente ponderada e elegante ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, disse ao Observador ser o seu entendimento da posição do primeiro-ministro António Costa ao integrar a comissão de honra do atual presidente do Benfica à reeleição: tratar-se-ia, segundo ela, de uma "contradição íntima" do PM, que aceita como pertencendo ao "domínio das paixões".
Admitir que se trata de uma contradição é mesmo assim ir muito mais longe do que o próprio António Costa, cuja alegação sobre a sua presença na lista é, como se viu, de que estaria lá "como cidadão e não como PM". Foi no entanto como PM que foi de lá retirado por Vieira - o que levou um amigo meu a perguntar, com muita pertinência, se o cidadão Costa não ia recusar-se a sair -, assim como o presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, o do Seixal (do PCP) e vários deputados (Telmo Correia do CDS/PP e Duarte Pacheco, do PSD, por exemplo).
Não sabemos exatamente quem mais porque, depois de vários dias a discutir-se quem estava na dita comissão, e agora quem saiu e porquê, a lista completa nunca foi divulgada pela candidatura de Luís Filipe Vieira. Como se, para voltar às palavras de Francisca Van Dunem, estivéssemos perante um assunto "íntimo" e não público; como se uma comissão de honra não servisse supostamente para honrar, e portanto para ser exibida, ostentada - e como se cada um dos representantes de cargos públicos que nela estiveram e de lá foram chutados (por coincidência, na quinta-feira, dia anterior ao da publicitação da acusação a L.F.V.) não tivessem a obrigação de assumir isso e até de exigir a publicitação da lista.
Claro que a ausência de sindicância e da exigência de transparência designada por uma palavra inglesa sem tradução portuguesa satisfatória - accountability - não é um exclusivo do mundo do futebol; antes fosse. Mas também por este secretismo (que se quer afinal esconder?) o episódio é simbólico: as regras normais, ou que deviam ser normais, não se aplicam. A mesmas regras normais que naturalmente implicariam que representantes de cargos públicos se abstivessem de "apoiar" contendores a cargos que são na verdade o de CEO de empresas com inúmeras áreas de negócios que implicam decisões políticas.
Podem ser membros dos clubes, votar nas eleições - com certeza, era o que faltava que não pudessem. Mas emprestar o seu nome à campanha de um candidato é de uma ausência de noção espantosa - e não seria preciso que este particular candidato estivesse a dias de ser acusado num caso de tráfico de influências/corrupção, ou que seja um notório devedor do BES, ou que tenha em André Ventura um fiel escudeiro, mesmo se essas três condições deveriam tornar o apoio assim expresso ainda mais impensável.
Convém se calhar frisar que os clubes de futebol já não são as associações de utilidade pública sem fins lucrativos, alegadamente votadas aos ideais da prática desportiva, que subsistiram até aos anos 1990, quando passaram primeiro a empresas e depois a sociedades anónimas desportivas. Aliás já quando eram as tais associações supostamente sem fins lucrativos lucravam e bem com cedências de terrenos públicos cujas condições iam sendo alteradas conforme dava jeito (aos clubes) e com autorizações de urbanização e de exploração de negócios, como bombas de gasolina, cuja fundamentação no interesse público sempre deixou muito a desejar. Apesar de todas essas "ajudas", foram como se sabe acumulando dívidas ao fisco que o Estado entendeu "ter de resolver", tentativa que culminou no extraordinário Totonegócio - que correspondeu, para variar, a um perdão e portanto a mais financiamento público.
O off-shorismo essencial do universo do futebol - no sentido de se lhe aplicarem há muito critérios, ou a total falta deles, absolutamente específicos e não raro revoltantes - é pois uma característica enraizada; pode mesmo suspeitar-se de que se tornou numa natureza. De tal modo que o facto de pela primeira vez se levantar a questão da inclusão de representantes de cargos públicos numa comissão de honra de um candidato à presidência de um clube - facto evidenciado pela reação de Fernando Medina, estupefacto por ser hoje um problema quando há quatro anos "ninguém fez notícia" -, é um ótimo sinal. Pode ser que a partir de agora, e tantos anos depois de Rui Rio ter tido a coragem de se candidatar (ganhando) à Câmara do Porto sem prestar vassalagem ao FCP, os políticos portugueses decidam que as suas paixões, íntimas ou menos íntimas, não são para misturar com cargos de representação; que o poder, real e simbólico, que lhes conferimos não pode servir para favorecer esta ou aquela fação clubística, sob pena de desonra. Assim se aplique a todos.
Jornalista