"É impossível dar à Rússia como presente a Crimeia ou o Donbass"

A embaixadora da Ucrânia crê que o tempo joga a favor do seu país para se alcançar um acordo de paz sem cedências, mas lembra que é difícil negociar com a Rússia. Inna Ohnivets defende um processo de entrada mais rápido na União Europeia.

Inna Ohnivets, de 59 anos, recebe o DN na embaixada de lenço com as cores da bandeira ucraniana ao pescoço. Os tons alegres contrastam com o ar grave da diplomata, ao serviço de Kiev há quase três décadas, e desde 2015 em Lisboa. Começa por fazer uma declaração antes da entrevista arrancar: "(...) As tropas russas continuam a atacar a Ucrânia a partir de cinco territórios. Gostaria de sublinhar que isso é uma guerra em grande escala desencadeada pela Rússia contra a Ucrânia e não é um conflito na Ucrânia, como às vezes se lê nos jornais e se diz na televisão (...). Defendemo-nos não só a nós mesmos, mas a toda a Europa da Rússia de Putin (...). Precisamos urgentemente de uma zona de exclusão aérea, de sistemas de defesa aérea e aviões de combate. Isto aceleraria significativamente o fim da guerra."

O presidente Zelensky tem reiterado o apelo para que se feche o espaço aéreo, só que o Ocidente crê que esse passo iria agravar a situação ao ponto de poder culminar numa guerra nuclear. Apesar de toda a solidariedade internacional que tem recebido, a Ucrânia já compreendeu que tem de combater a Rússia sozinha?
A Ucrânia não é membro da NATO e percebemos muito bem as consequências desta situação. E por isso a Ucrânia está a lutar com os seus próprios meios, mas também temos ajuda com equipamento militar por parte dos membros da NATO. De Portugal já recebemos uma parte de equipamento militar e agora estamos à espera da segunda.

Os Estados Unidos vão contribuir com mais sistemas antiáereos e drones, mas o pedido de aviões continua por atender.
Estamos à espera de uma resposta positiva sobre os aviões de combate e este anúncio sobre a possibilidade de receber dos EUA os sistemas de defesa aérea é um sinal forte para a Ucrânia de que os parceiros não nos deixam nesta situação dramática.

Foi anunciado um acordo entre a União Europeia e a Ucrânia ao nível da energia. Além do simbolismo, que traz de novo?
Este acordo é muito importante. O nosso sistema de eletricidade estava ligado à Rússia e à Bielorrússia. Há aproximadamente um mês a Ucrânia realizou uma experiência independente do sistema russo e bielorrusso e foi realizada com sucesso. Claro que os resultados não são só simbólicos, mas práticos, concretos. É um primeiro passo para a integração total da Ucrânia na UE.

Ainda que sendo um processo longo, acredita que devido a estes acontecimentos pode ser dado um estatuto especial à Ucrânia para aceder de forma mais rápida à UE?
Sim, precisamos da criação de um procedimento especial mais rápido porque a Ucrânia está a defender os valores democráticos da Europa e pagamos com o nosso sangue. Morreram e estão a morrer muitas crianças. Se a UE decidir que esta possibilidade é real isso é um sinal claro para a Rússia e esta vai parar esta guerra. Ao contrário do que disse Putin, a Ucrânia não é uma parte do mundo russo e ortodoxo. Não é verdade, temos pessoas de cem nacionalidades, e no nosso país há católicos, ortodoxos, muçulmanos, e crentes de outras igrejas.

"Precisamos de um procedimento especial mais rápido [de adesão à União Europeia] porque a Ucrânia está a defender os valores democráticos da Europa e pagamos com o nosso sangue."

As notícias de que a guerra de Putin está a correr mal e que devido às sanções terá de terminá-la rapidamente dão à Ucrânia uma posição mais forte nas negociações em curso. Porém, há quem defenda que esta situação é a mais perigosa porque Putin tem de salvar-se a si e ao seu regime. Concorda?
As negociações entre a parte ucraniana e a parte russa continuam com eficácia, sim, porque temos novas conquistas. O exército ucraniano conseguiu reconquistar algum território e o exército russo demonstrou incapacidade para capturar o território ucraniano e Putin quer a capital, mas fracassou. Pensava que era possível capturar a Ucrânia em três dias, mas conseguimos recuperar uma parte do território e estabilizar a situação. Agora o exército russo precisa de defender as suas posições e não pode avançar. Isso significa que a parte ucraniana tem a possibilidade de negociar com posições mais fortes. Tenho experiência nas negociações, participei em negociações com a Rússia e posso dizer que negociar com os russos é bastante difícil, mas a posição ucraniana também é forte. Por isso não perdemos tempo, mas o tempo apoia a nossa posição e pouco a pouco podemos melhorar e fortalecer a nossa posição e forçar a Rússia a parar a guerra.

O presidente Zelensky disse que neste momento a NATO está fora dos objetivos...
...Peço desculpa, os planos da Ucrânia como membro da UE e da NATO estão consagrados na nossa constituição e por isso depois das negociações vão realizar-se procedimentos no parlamento ucraniano. Claro que as negociações podem ajudar a parar a guerra, e relativamente à adesão à NATO tivemos durante muitos anos as portas abertas, mas infelizmente não podemos entrar. Podemos concordar com a NATO de que precisamos de 10 ou de 20 anos para realizar este plano. E pode ser que na Rússia alguém não vá viver para sempre.

O que estava a perguntar é que Zelensky deu um sinal para Moscovo de que a NATO não era uma questão e que estava disponível a discutir as regiões de Donetsk e Lugansk, mas sem ceder na integridade do território. O que há para negociar? E a Crimeia?
Posso dizer que a questão do território, por exemplo, dar como presente a Crimeia ou o Donbass para a Rússia, na minha opinião é impossível. O povo ucraniano está a lutar e muita gente já morreu, é possível discutir a posição sobre a NATO, não sei exatamente como vão concordar, mas sobre o território a questão não é discutível.

"Se [Lugansk e Donetsk] tiverem um estatuto especial podem organizar um referendo e a Rússia pode manipular este instrumento. Por isso a Ucrânia tem um estatuto de país não federal."

Poder-se-á discutir um estatuto de autonomia?
Não. Já tivemos essa alternativa e as duas partes discutiram durante muito tempo, mas isso significa que Lugansk e Donetsk, que não foram reconhecidos como independentes pelo mundo, se tiverem um estatuto especial podem organizar um referendo e a Rússia pode manipular este instrumento. Por isso a Ucrânia tem um estatuto de país não federal e isso é a única possibilidade de reunificar o nosso país e fortalecê-lo, porque temos muito perto o vizinho agressor. Não posso acreditar nas palavras de Putin, nem nos acordos. A Rússia assinou o Memorando de Budapeste [em 1994, quando Kiev abdicou do armamento nuclear], garantiu a segurança da Ucrânia e temos agora uma guerra. Isso significa que Putin pode assinar e depois desencadear nova guerra.

De que vale à Ucrânia negociar se os ucranianos não acreditam na palavra de Putin?
Não temos outra alternativa. Todas as guerras acabaram com negociações e com um acordo de paz. Precisamos também que os outros países ajudem a garantir um acordo. Temos uma nova realidade. Existe um país agressor e o direito internacional, que funcionou durante muitos anos, agora não funciona. Isso significa que o mundo precisa de criar um novo sistema de segurança e a possibilidade de castigar os países e não temer nomear um país de agressor com consequências muito severas. Os países da UE e de outros países introduziram sanções à Rússia, mas não é suficiente. Continua a vender gás e algumas empresas europeias romperam e outras não. Também apelamos a cidades portuguesas para romperem com as cidades geminadas russas, Évora com Suzdal e Lisboa com Moscovo.

As indemnizações da guerra fazem parte das negociações?
A parte ucraniana está a abordar a questão das reparações pela Rússia devido à arruinação das infraestruturas e dos edifícios da população. É um objetivo obrigatório no acordo da paz, temos um grande interesse em incluir este ponto. E também, na minha opinião, é necessário incluir as reparações relacionadas com destruições à infraestrutura roubada em Donetsk e Lugansk. Sabemos que fábricas inteiras foram trasladadas da Ucrânia para a Rússia, roubaram os nossos meios de produção.

"O povo ucraniano quer viver numa Europa unida e não num império russo. Temos uma história e cultura antiga e Moscovo quer apropriar-se dessa história."

No debate público português há quem concorde com o argumento de Putin de que a Ucrânia tem um problema com o neonazismo. Que perigo representa a extrema-direita e os neonazis na Ucrânia?
Posso dizer que na Ucrânia não temos nazis ou fascistas. Muitos dos nossos pais ou avós participaram na II Guerra Mundial. Com 18 anos, o meu pai participou e lutou contra os nazis alemães e ficou gravemente ferido. Participou nas operações do Exército Soviético no território da Ucrânia e da Polónia. Não existe essa ideologia na Ucrânia. Putin disse que os ucranianos que gostam da pátria são nazis, e quando os russos gostam da pátria é normal. Isso é desinformação e mentira, tenta enganar o mundo sobre os ucranianos. O povo ucraniano quer viver numa Europa unida e não num império russo. Temos uma cultura e história antiga e Moscovo quer apropriar-se dessa história. Ele construiu em Moscovo [em 2016] um monumento a Volodymyr, o Grande, o nosso rei, e não o de Moscovo. Temos uma diferença grande na nossa cultura e na nossa história. A língua ucraniana é muito antiga, mais do que a russa.

Para clarificar: o famoso batalhão Azov é ou não composto por elementos da extrema-direita?
Na Ucrânia temos o exército e a guarda nacional. Este batalhão surgiu quando foi a revolução [de 2014] e eles defenderam por exemplo Mariupol contra as tropas russas, e muito efetivamente, mas não têm nada com o fascismo ou o nazismo como disse a Rússia. Os propagandistas russos inventaram isso para lançar esta guerra bárbara.

Chegaram a Portugal para cima de 14 mil ucranianos em mais de 3 milhões de refugiados. Portugal pode receber mais? E que medidas tomar para a integração destes cidadãos?
Durante a minha reunião com o primeiro-ministro António Costa, perguntei sobre uma quota de refugiados que Portugal poderia acolher, mas disse-me que não há quota, o que significa que os ucranianos estão a ser bem recebidos e podem pedir o estatuto de pessoas sob proteção sem limitações. Os ucranianos que vão chegar vão receber o estatuto de refugiados em Portugal e têm oportunidade de integrar-se muito bem porque o governo português está a realizar um projeto bem desenvolvido para acolher os refugiados. Os nossos canais da TV ucraniana já informaram que em Portugal existe um sistema exemplar.

Essa integração passa também pela escolaridade das crianças. Como está a correr esse passo?
Em Portugal há 14 escolas com língua ucraniana, são escolas que funcionam ao domingo. A nossa preocupação é que a Rússia tem em Portugal o seu sistema escolar e tentam aceitar as crianças ucranianas nas suas escolas. Claro que isso afeta negativamente a nossa população porque os ucranianos fugiram do mundo russo que Putin tenta levar à Ucrânia e agora podem encontrar esse mundo russo nessas escolas. Têm também um programa especial ucraniano mas com propaganda pró-russa, que defende a política de Putin. Por isso a nossa embaixada está a considerar estes factos e vamos reagir claramente.

cesar.avo@dn.pt

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