D. Manuel Linda, bispo do Porto, e Abdul Rehman, líder do Centro Cultural Islâmico, estão convidados para a inauguração do Museu do Holocausto do Porto, que estava para ser amanhã e que fica adiada até ao levantamento das restrições santárias. Na cidade da tradição liberal e de todas as tole- râncias, a concórdia inter-religiosa apadrinhará o espólio dos guetos, dos campos de concentração e do extermínio brutal de seis milhões de judeus, a que presidirá, primordialmente, a função de lembrete e de permanente vigilância a qualquer tentação de retorno ao passado de tantas cicratizes e que tanto dói aos judeus portuenses descendentes das vítimas de Auschwitz, de Treblinka e de tanta barbárie nazi..O Porto é a primeira cidade ibérica a ter um memorial da deportação e do genocídio de seis milhões de judeus. No museu da "Shoá", ali ao Campo Alegre, nas cercanias da sinagoga que congrega a Comunidade Judaica do Porto (CJP) desde 1938, também se persegue uma certa reconciliação da Estrela de David com Miragaia, S. Nicolau, Vitória e todas as vielas da História, na encruzilhada da Inquisição e da expulsão dos judeus que ajudaram a fundar os alicerces do Porto nuclear, bem antes dos da própria nacionalidade.."Retrata a vida judaica antes do Holocausto, a expansão nazi, os guetos, os refugiados, os campos de concentração, a Solução Final, as marchas da morte, a libertação, a população judaica no pós-guerra, a fundação do Estado de Israel, os justos entre as nações", anuncia a CJP. "É uma experiência sensorial, da industrialização da morte", acrescenta Hugo Vaz, curador do museu, a ciceronear o JN entre as memórias do choque, dos corpos esqueléticos, das câmaras de gás e dos crematórios..Está tudo arquivado na sala dos nomes, em milhares de documentos e outras tantas fichas de refugiados que deram ao Porto nos anos 1940. A grande maioria chegou da Europa de Leste, a suspirar pelo visto para o sonho americano. Mas também houve quem ficasse de vez pela foz do Douro e deixasse descendência tripeira.."O meu avô fugiu de Treblinka e a minha avó foi resgatada com tifo do campo de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, onde faleceu Anne Frank. Contarei sempre a história deles", afirma Jonathan Lackman. No mesmo registo, sobram outros testemunhos de membros da CJP descendentes de vítimas da Shoá: "Para alguns membros da minha família, a vida acabou em campos de extermínio. Outros foram fuzilados por pelotões, após terem sido obrigados a cavar a própria campa", conta Luísa Finkel-stein, a mais antiga associada da comunidade hebraica do Porto; "Os meus avós eram bons patriotas alemães. Amavam o país. Dois dos meus tios-avós deram a vida pela pátria na I Guerra. Quando os nazis tomaram o poder, os meus avós tornaram-se estrangeiros indesejados. Em 1943, foram levados como gado para Ausch-witz, submetidos a todos os abusos e assassinados", afirma Michael Rothwell, da Direção da CJP..Naqueles tempos de ódio, de antissemitismo declarado e de ainda mais ambiguidade do regime salazarista, que tratava a questão a flutuar entre alegados interesses de Estado, dar guarida a estes refugiados era, além de um ato de altruísmo, uma prova de generosa coragem, como conta a neta do fundador da CJP. "Alguns membros da comunidade foram diversas vezes buscar refugiados aos Pirenéus e trouxeram-nos para a segurança do Porto. O meu avô, capitão Barros Basto [ver caixa], convidava muitos refugiados para almoçar e jantar. Ele dizia à minha avó: "cabe sempre mais um!"", recorda Isabel Lopes, vice-presidente da CJP..A uma semana do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (dia 27), a instalação do museu da "Shoá" é também a junção das pontas da história da própria Comunidade Israelita do Porto/Comunidade Judaica do Porto, fundada e registada no Governo Civil, em 1923, por um militar de carreira, herói da I Guerra e do Corpo Expedicionário Português..Na mesma reconhecida e condecorada bravura com que entrou nos campos de batalha, foi também o capitão Barros Bastos quem mandou construir a sinagoga Kadoorie, assim registada em homenagem a Laura Kadoorie, uma judia de origem portuense, casada com um filantropo judeu iraquiano, cujos herdeiros concederam um avultado donativo para o templo da Rua Guerra Junqueiro, concluído em 1938..Republicano convicto e militante - foi ele que hasteou a bandeira vermelha e verde na Câmara do Porto, a 5 de outubro de 1910 -, o intrépido capitão também andou por Trás-os-Montes e pelas Beiras a localizar e mobilizar as comunidades de cripto-judeus para a prática pública da fé hebraica, o que não demorou a causar-lhe problemas com o regime salazarista. O capitão foi expulso do Exército, após um processo disciplinar de clara retaliação antissemita..Nessa altura, ainda nos prêambulos da II Grande Guerra, a fundação da sinagoga do Porto deu a Barros Bastos e à comunidade judaica ainda mais sentido de missão e de ação filantrópica, na ajuda aos judeus refugiados da Europa Central. O capitão faleceu em 8 de março de 1961. Tinha 73 anos. Foi sepultado na terra natal, Amarante..almiro.g.ferreira@jn.pt
D. Manuel Linda, bispo do Porto, e Abdul Rehman, líder do Centro Cultural Islâmico, estão convidados para a inauguração do Museu do Holocausto do Porto, que estava para ser amanhã e que fica adiada até ao levantamento das restrições santárias. Na cidade da tradição liberal e de todas as tole- râncias, a concórdia inter-religiosa apadrinhará o espólio dos guetos, dos campos de concentração e do extermínio brutal de seis milhões de judeus, a que presidirá, primordialmente, a função de lembrete e de permanente vigilância a qualquer tentação de retorno ao passado de tantas cicratizes e que tanto dói aos judeus portuenses descendentes das vítimas de Auschwitz, de Treblinka e de tanta barbárie nazi..O Porto é a primeira cidade ibérica a ter um memorial da deportação e do genocídio de seis milhões de judeus. No museu da "Shoá", ali ao Campo Alegre, nas cercanias da sinagoga que congrega a Comunidade Judaica do Porto (CJP) desde 1938, também se persegue uma certa reconciliação da Estrela de David com Miragaia, S. Nicolau, Vitória e todas as vielas da História, na encruzilhada da Inquisição e da expulsão dos judeus que ajudaram a fundar os alicerces do Porto nuclear, bem antes dos da própria nacionalidade.."Retrata a vida judaica antes do Holocausto, a expansão nazi, os guetos, os refugiados, os campos de concentração, a Solução Final, as marchas da morte, a libertação, a população judaica no pós-guerra, a fundação do Estado de Israel, os justos entre as nações", anuncia a CJP. "É uma experiência sensorial, da industrialização da morte", acrescenta Hugo Vaz, curador do museu, a ciceronear o JN entre as memórias do choque, dos corpos esqueléticos, das câmaras de gás e dos crematórios..Está tudo arquivado na sala dos nomes, em milhares de documentos e outras tantas fichas de refugiados que deram ao Porto nos anos 1940. A grande maioria chegou da Europa de Leste, a suspirar pelo visto para o sonho americano. Mas também houve quem ficasse de vez pela foz do Douro e deixasse descendência tripeira.."O meu avô fugiu de Treblinka e a minha avó foi resgatada com tifo do campo de Bergen-Belsen, no norte da Alemanha, onde faleceu Anne Frank. Contarei sempre a história deles", afirma Jonathan Lackman. No mesmo registo, sobram outros testemunhos de membros da CJP descendentes de vítimas da Shoá: "Para alguns membros da minha família, a vida acabou em campos de extermínio. Outros foram fuzilados por pelotões, após terem sido obrigados a cavar a própria campa", conta Luísa Finkel-stein, a mais antiga associada da comunidade hebraica do Porto; "Os meus avós eram bons patriotas alemães. Amavam o país. Dois dos meus tios-avós deram a vida pela pátria na I Guerra. Quando os nazis tomaram o poder, os meus avós tornaram-se estrangeiros indesejados. Em 1943, foram levados como gado para Ausch-witz, submetidos a todos os abusos e assassinados", afirma Michael Rothwell, da Direção da CJP..Naqueles tempos de ódio, de antissemitismo declarado e de ainda mais ambiguidade do regime salazarista, que tratava a questão a flutuar entre alegados interesses de Estado, dar guarida a estes refugiados era, além de um ato de altruísmo, uma prova de generosa coragem, como conta a neta do fundador da CJP. "Alguns membros da comunidade foram diversas vezes buscar refugiados aos Pirenéus e trouxeram-nos para a segurança do Porto. O meu avô, capitão Barros Basto [ver caixa], convidava muitos refugiados para almoçar e jantar. Ele dizia à minha avó: "cabe sempre mais um!"", recorda Isabel Lopes, vice-presidente da CJP..A uma semana do Dia Internacional em Memória das Vítimas do Holocausto (dia 27), a instalação do museu da "Shoá" é também a junção das pontas da história da própria Comunidade Israelita do Porto/Comunidade Judaica do Porto, fundada e registada no Governo Civil, em 1923, por um militar de carreira, herói da I Guerra e do Corpo Expedicionário Português..Na mesma reconhecida e condecorada bravura com que entrou nos campos de batalha, foi também o capitão Barros Bastos quem mandou construir a sinagoga Kadoorie, assim registada em homenagem a Laura Kadoorie, uma judia de origem portuense, casada com um filantropo judeu iraquiano, cujos herdeiros concederam um avultado donativo para o templo da Rua Guerra Junqueiro, concluído em 1938..Republicano convicto e militante - foi ele que hasteou a bandeira vermelha e verde na Câmara do Porto, a 5 de outubro de 1910 -, o intrépido capitão também andou por Trás-os-Montes e pelas Beiras a localizar e mobilizar as comunidades de cripto-judeus para a prática pública da fé hebraica, o que não demorou a causar-lhe problemas com o regime salazarista. O capitão foi expulso do Exército, após um processo disciplinar de clara retaliação antissemita..Nessa altura, ainda nos prêambulos da II Grande Guerra, a fundação da sinagoga do Porto deu a Barros Bastos e à comunidade judaica ainda mais sentido de missão e de ação filantrópica, na ajuda aos judeus refugiados da Europa Central. O capitão faleceu em 8 de março de 1961. Tinha 73 anos. Foi sepultado na terra natal, Amarante..almiro.g.ferreira@jn.pt