Londres e Washington têm caminhado lado a lado na política internacional. Feita de ciclos mais coincidentes do que desalinhados, têm abordado a construção da ordem no pós-guerra através de grelhas imperiais intermitentes, culturas políticas liberais e institucionalizadas, sociedades vibrantes, um soft power catalisador e um compromisso minimamente estabilizado com as duas grandes organizações que têm acomodado a expansão da democracia no Ocidente: a NATO e a União Europeia. A partir de 2016, Londres e Washington decidiram, por expresso mandato popular, alinhar-se na progressiva quebra desse compromisso. O Reino Unido iniciou uma rutura com a UE sem saber como irá terminar; os EUA, através do círculo presidencial, foram deixando escapar o desinteresse pela NATO. Esta semana voltou a alinhar Londres e Washington num mesmo patamar: o da oferta ao mundo de um triste espetáculo de autoflagelação política, para deleite dos dois principais interessados nas muitas microrruturas acumuladas em série pelo Ocidente: Vladimir Putin e Xi Jinping..Em Londres descobriram-se de repente os méritos dos acordos entre partidos sobre questões de interesse nacional. Com dois anos e meio de atraso, ter-se ia evitado danos aos dois principais partidos e uma fadiga dos cidadãos com a respetiva falta de competência. Qualquer que seja o roteiro, nada ficará igual na política britânica. Nem os partidos do sistema congregarão com consistência as múltiplas fações internas, nem a confiança dos eleitores será restituída, nem o debate público regressará tão cedo à normalidade. Agora imagine-se tudo isto num quadro de saída desordenada, com riscos tremendos nas empresas, nas famílias e nos serviços públicos. Mais uma vez insisto: os efeitos de um Brexit (ou de um Bremain) serão mais profundos e duradouros na política britânica e europeia do que imaginamos. No dia 29 de janeiro saberemos como será o fim do princípio de uma das suas fases..Também a 29 de janeiro (se o apelo ao adiamento não vingar) vai Donald Trump fazer o habitual discurso do estado da União no Congresso. Sem surpresas, pintará o quadro de cor-de-rosa num sem-número de autoelogios, dando uma pincelada de negro para ilustrar uma realidade que forçosamente quer construir para responsabilizar, exclusivamente, os democratas. Falo, evidentemente, do shutdown provocado pela defesa milionária de mais um troço no muro da fronteira com o México para travar aquilo que o presidente apelida de "invasão", fazendo crer que a grande ameaça à segurança dos americanos vem de uma fuga desesperada de milhares de crianças fugidas de países da América Central em alta insegurança, sobre as quais autoriza o uso de gás pelas forças armadas ou legitima a separação dos pais. Os números, porém, retêm-nos na realidade certa e não na paralela: a imigração ilegal atingiu o pico mais baixo nos últimos 50 anos..O que seria de Trump junto da base de indefetíveis se a grande promessa de campanha fosse abandonada? Que seria da sua aura politicamente incorreta se esta fosse finalmente assumida pelas suas hostes com um monumental logro? Que seria da sua postura negocial, bradada aos céus como vencedora em série e sabedora em dose inesgotável, se baixasse a guarda precisamente agora que os democratas estão em maioria na Câmara dos Representantes? Claro que o egocentrismo de Trump se sobrepõe ao interesse nacional, nem que para isso incorra no risco emitido pelo presidente da Reserva Federal sobre a contração económica que o shutdown provocará. Mas a semana em Washington não está apenas refém de números ou de realidades alternativas. Há factos mais graves a disputar a arena política..De um lado, novo ruído entretanto desmentido sobre a retirada americana da NATO, o que adensa novamente a volatilidade da Casa Branca na defesa dos interesses de segurança permanentes na Europa, em ano de eleições europeias e especialmente na Ucrânia, mais uma oportunidade para a Rússia se mostrar. Por outro, fecha-se o cerco a Trump, desta vez sob suspeita de ter pressionado o seu advogado Michael Cohen (já condenado) para mentir ao Congresso sobre favores russos atribuídos a projetos imobiliários do grupo fundado pelo presidente, acrescentando mais dados à tese de conluio com o Kremlin com vista ao sucesso eleitoral em 2016. Se o primeiro caso pode implicar Trump numa acusação de conspiração, obstrução à justiça e perjúrio, razões para iniciar um processo de impeachment na Câmara dos Representantes, no segundo caso as acusações podem apenas contemplar um período pré-presidencial, esfriando assim a tentação de o derrubar. De qualquer forma, a semana reabriu o argumentário pró-impeachment, mesmo que a aritmética do Senado o inviabilize: sobrepõe a verdade dos factos às teorias da conspiração, paralisa a agenda disruptiva do presidente, inicia a clarificação por um regular funcionamento das instituições e faz cumprir uma Constituição em defesa do bom nome da Casa Branca e da República..Se o caos político em Londres e Washington interessa a Moscovo e a Pequim, acelera a erosão do Ocidente político tal como o temos garantido. Vale a pena dizer que é sobre as suas estacas que as democracias europeias se têm sustentado. Nada nos garante que as mesmas se mantenham sem uma "comunidade de segurança pluralista" como Londres e Washington desenharam a partir de 1949. É isto que está em causa..Investigador universitário