Adeus, futuro: "O outro e o mesmo"
No tempo em que se punha pimenta na língua dos meninos que diziam asneiras, estudar Gil Vicente era uma lufada de ar fresco: ultrapassados os obstáculos iniciais daquela língua com borrifos de castelhano, sabia bem poder ler em voz alta numa aula coisas como "caganeira" e soltar outras tantas inconveniências pela voz das personagens. Foi, aliás, com o mestre do teatro em Portugal que aprendi a vestir a pele do outro: ao interpretar numa peça da escola uma das suas alcoviteiras, eu - que detesto arranjinhos, leva-e-traz e coscuvilhice - tive de esquecer tudo isso para emprestar credibilidade à minha Lianor Vaz. E talvez um bom actor seja justamente o que consegue despir-se de si mesmo e transformar-se, se necessário, no seu avesso. Na época que me coube viver, tive, aliás, o privilégio de assistir ao desempenho de actores geniais que souberam sempre ser outros (e o outro) a cada nova personagem.
Que tinham, por exemplo, em comum o repelente Ratso de O Cowboy da Meia-Noite, o prisioneiro de barrete e lentes grossas de Papillon, o rapaz inexperiente diante da futura sogra em A Primeira Noite ou a simpática Tootsie, que obrigou Dustin Hoffman a depilar as pernas e usar cabeleira? E em que se parecia a analfabeta que fora guarda de um campo de concentração em O Leitor com a rapariga que sobrevivera ao naufrágio do Titanic ou a chefe de família com pendor para o álcool de Roda Gigante - todas três encarnadas por Kate Winslet? E que dizer da fabulosa Meryl Streep, que vestiu Prada, cantou os ABBA, foi amante de um tenente francês e dona de uma fazenda em África, tomou banho com Clint Eastwood, cozinhou, desafinou, mandou uma filha para a morte e não conseguiu evitar o suicídio de um amigo? Ou de Robert De Niro, que - entre comédia e drama - foi padre, mafioso, pinga-amor, pugilista, bom rapaz... e convincente em todos os papéis?
Parece, porém, que nem todos pensam como eu. A actriz Ruby Rose, por exemplo, foi duramente criticada no Twitter por ter aceitado fazer de Batwoman numa série de TV. (A personagem, criada em 1956 para namorar com Batman e o livrar da suspeita de ter um caso com Robin, regressou recentemente aos ecrãs como homossexual assumida - Batman não a deve ter tratado lá muito bem.) Mas, embora Ruby Rose não tenha uma orientação sexual rígida (define-se como gender fluid), os seus seguidores no Twitter acusam-na de não ser suficientemente lésbica para o papel. O actor condenado a fazer de si mesmo? Adeus, futuro.
Editora e escritora. Escreve de acordo com a antiga ortografia