"Se cortas ou roubas a bola ao Pelé tens o currículo feito, mas eu fui mais do que isso"

É a maior referência viva do Belenenses. Irmão de Matateu (o maior jogador da história para ele), ficou conhecido por ter marcado exemplarmente Pelé e por roubar bolas aos adversários sem falta. Conseguiu a proeza de acabar a carreira sem ver um cartão em 11 anos.
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Um acidente de carro, depois de ter brilhado no Mundial 1966, roubou-lhe um olho e o sonho de continuar a jogar futebol. Passou por momentos tristes. Ainda passa. A vida seria ainda mais madrasta e roubou-lhe uma perna de cada vez. Agora, mesmo numa cadeira de rodas e a viver num lar, as memórias continuam intactas e falam com orgulho do irmão Matateu, de Otto Glória, de Pelé e do Belenenses, sempre o Belenenses... Estórias que os ouvidos dos amigos Afonso Sousa e Carlos Iura fazem questão de ouvir semanalmente. O Pezinhos de Lã, como ficou conhecido, pode orgulhar-se de ter sido contratado por Américo Tomás, o ex-presidente da República.

Comecemos pelo mais mediático. Aquilo que toda a gente retém até hoje, mesmo passados mais de 40 anos, é a marcação a Pelé no Portugal-Brasil do Mundial 1966. Correu mundo e rompeu gerações...

Isso do Pelé não tem história. Foi uma coincidência marcar o Pelé. Acha que nessa altura (anos 60-70) não havia isso da tática. Havia a marcação homem a homem e era o jogador muitas vezes que decidia quem marcava. O Otto Glória, que treinava o Belenenses e conhecia o Pelé, disse-me assim: "Fica de olho nele, se ele for à casa de banho tu vais com ele." Eu tentei, ele fugia pela esquerda, pela direita, pelo meio... Um jogador daqueles não se podia marcar, era difícil, um jogador extraordinário que não tinha um lugar certo para jogar. Marquei-o e não me saí mal. Não sei como o fiz, mas fiz. E nós ganhámos por 3-1. Mas digo-lhe uma coisa: nem Pelé nem Eusébio se comparavam ao Matateu. E não digo isto por ser meu irmão, mas porque era um jogador do caraças.

A carreira de Vicente Lucas foi mais do que marcar o Pelé ou não?

Oh... então não. Primeiro fui o irmão do Matateu, depois fui "o gajo que era bom", e só depois o Vicente Lucas ou o Pezinhos de Lã. Acabei a carreira sem ver um único cartão em 11 anos. Depois fui o Corta Vicente. Na altura, o futebol era rei na rádio. Nos relatos, quando iam descrever um lance meu, era sempre a mesma coisa: "Corta, Vicente." Ainda hoje é uma forma carinhosa de me lembrarem o jogador que fui. Se cortas ou roubas a bola ao Pelé tens o currículo feito, mas eu fui mais do que isso.

Li algures que trocou de camisola com o Pelé nesse jogo. Ainda a tem?

Não. Isso foi uma coisa que alguém escreveu e virou verdade, mas não. Troquei de camisola com o Zito. No final do jogo com o Brasil, ele veio ao pé de mim, deu-me um abraço e pediu para trocar a camisola.

Foi ao Mundial 1966, mas esteve para não ser chamado...

Pois foi. O Otto Glória apostou comigo que eu não ia, que havia muitos jogadores do Benfica e do Sporting para irem...

A verdade é que foi chamado e acabou por jogar quatro jogos...

Sim, depois frente a Inglaterra não joguei.

Porquê?

Tinha partido um dedo da mão e disseram que não podia jogar...

E isso impediu-o de jogar?

Impediu. Jogou o José Carlos...

Isso, agora, dito assim, soa a desculpa, não é?

Pois... Jogar no Benfica tinha e tem um peso muito grande. Se jogasse basquetebol estava certo, agora para jogar futebol não precisava do dedo da mão. Mas o Otto tinha razão quando dizia que ser do Benfica ajudava.

Otto Glória e o Chevrolet para ir às meninas

O Vicente Lucas tem aí muitas histórias com o Otto...

E vou morrer sem as contar todas. O homem era uma figura. Ele é que revolucionou o futebol português, com as ideias e métodos dele. Quando saiu do Benfica e foi para o Belenenses ficou com um pó ao Benfica, queria tanto ganhar que nos prometeu emprestar o Chevrolet para irmos às meninas [risos]. Disse-nos: "Se ganharem ao Benfica podem levar o carro e ir ao Fontória, champanhe, mulheres, pago eu." Já não sei se fomos mas acho que sim.

Mas o que ele tinha de especial e de revolucionário?

O jeito de ver o futebol e olhar para o jogador. Uma vez, também frente ao Benfica, para a Taça de Portugal, o Matateu disse-lhe que ia marcar. Depois, no intervalo desse jogo, estávamos a ganhar 1-0, o Matateu virou-se para o Otto e disse: "Tenho uma cerveja a gelar no autoclismo, preciso dela." E o treinador respondeu: "Se te dou uma cerveja morres em campo." E o meu irmão disse "não morro nada, se ma der eu marco um golo". "Mas tu nunca marcaste ao Costa Pereira", disse-lhe o Otto. O Matateu garantiu que, desta vez, ia marcar. Acabou por beber a cerveja e na segunda parte fez um golo impossível ao Costa Pereira. Ganhámos por 3-1. Ele era assim, nunca vi igual, nem Pelé, nem Cristiano Ronaldo, ninguém. Foi o maior jogador que vi jogar.

Então o que faltou para se falar no Matateu como se falava no Eusébio?

Jogar no Benfica! O Belenenses era grande, mas não era o Benfica...

Como começou a história de Vicente no Belenenses?

Foi culpa do Matateu. Eu estava em África e tinha 17 anos quando recebi uma carta dele a dizer que o Belenenses estava interessado em mim. Eu pensei que fosse um Belenenses lá de Lourenço Marques (Maputo), mas não, era o dele, o de Lisboa. Um dia foi lá o Américo Tomás (presidente do Belenenses, que viria a ser presidente da República Portuguesa) e o capitão Soares da Cunha, que era diretor do Belenenses e viria a ser o presidente responsável pela construção do Estádio do Restelo. Depois de ouvirem algumas vozes dizer "o gajo é bom", trouxeram-me para Lisboa. Assim, sem pagar ou pedir licença ao clube onde eu jogava. Deram 30 contos à minha mãe , um dinheirão, pediram para eu estar pronto no dia X e ir ter ao barco para vir para Lisboa. Quase nem me despedi da família. Fui eu e outro meu irmão mais velho. O barco estava cheio, e éramos cinco num camarote, mas lá cheguei a Lisboa. Tinha o Matateu à minha espera. Ele era um bom irmão, a alegria em pessoa, o brincalhão do balneário.

E como foi a adaptação a Lisboa e ao Belenenses?

Não foi fácil. O Belenenses jogava nas Salésias e tinha o único relvado de Lisboa, e eu estava habituado a jogar no pelado, descalço ou de botas. Tive de me adaptar a jogar num campo fofinho e de chuteiras. Apesar disso, o Riera viu-me a treinar com o meu irmão e disse "gajo é bom, é para ficar". Se não fosse ele eu tinha sido recambiado no mesmo barco que me trouxe a Lisboa. A bola era dura na mesma. Acabava os jogos com uma dor de cabeça...

Ainda se lembra do primeiro jogo pelo Belenenses?

O primeiro jogo foi em Pina Manique, com o Casa Pia, na inauguração do estádio de Pina Manique. Entrei na segunda parte e parece que não joguei mal. Depois joguei com o Benfica no Estádio Nacional num jogo de homenagem ao Rogério Pipi. O primeiro jogo a sério foi com o FC Porto, na primeira jornada do campeonato de 1954-55, e dizem que marquei o golo da vitória.

Dizem?

Sim. Porque eu só meti a canela à bola e marquei [risos]. O resto foi mérito do meu irmão. Nesse jogo eu já mostrei qualquer coisa. Jogava como médio interior. O jogo estava empatado quando ele (Matateu) pegou na bola e fugiu por ali fora. Como ninguém o parou, levou a bola até à linha de fundo e cruzou... a bola bateu-me na canela e entrou. Vencemos por 2-1. Foi giro, ainda não havia bancadas e os adeptos estavam à volta do campo, e só ouvia dizer "o gajo é bom, o irmão do Matateu é bom, pá". Ainda hoje isso me faz rir. Um golo de canela fez de mim bom jogador.

Nesse ano o Belenenses quase foi campeão...

O FC Porto naquele tempo ficava no quarto lugar e o Belenenses disputava os primeiros lugares com o Benfica e o Sporting. Perdemos esse campeonato na última jornada. Empatámos com o Sporting (2-2) num jogo em que anularam um golo ao meu irmão, dizendo que a bola não passou a linha. Empatámos com o Sporting , nas Salésias, e esperámos quatro minutos para saber o resultado do Benfica... Foram quatro minutos muito intensos. Houve sócios a desmaiar com a emoção no fim do jogo. Fomos campeões por quatro minutos. Mas depois chegou a notícia de que o Benfica [que ganhara ao Atlético] era campeão pela diferença de golos. Já o disse antes e volto a dizer: se ganhasse esse campeonato, se calhar o Belenenses não estava como está hoje. Depois deu-se o 25 de Abril e isso tramou-nos.

Como assim?

O Belenenses era o clube de gente do poder e dos militares. Eu jogava no Belenenses, na seleção portuguesa e na seleção militar. Fui chamado à tropa, mas nunca combati. O comandante do quartel-general era do Belenenses e era só ir, tirar a licença e jogar à bola. Não me podia magoar. Tenho ideia de que vencemos um campeonato do mundo militar numa final com a Turquia. A seleção militar era a seleção Nacional: o Hernâni e o Carlos Duarte (FC Porto), o Rocha (Académica). Estive uns dez anos na tropa e pagavam-me. Quando íamos jogar fora, o Santos Costa, que era o ministro da Guerra, dava-nos dinheiro para a gente comprar qualquer coisa. Eu não precisava, o Belenenses nessa altura pagava ao nível do Benfica e do Sporting. Depois o Belenenses perdeu força.

Será por isso que os adeptos falam desses tempos como o oásis do Belenenses?

Talvez. O Belenenses já teve grandes equipas, na altura do Quaresma, do Marinho Peres e do Jorge Jesus, mas como nessa altura nunca mais teve. Godinho, Peres, Cardoso, João Pereira, Castro, Feijão, Estêvão, Matateu, Vicente Lucas...

"Ouvir perguntar, 'és do Belenenses clube ou SAD?' É triste"

E hoje, como olha para o futebol? Gosta de ver o Belenenses jogar?

Já não ligo. Vejo na televisão, mas fico triste...

Fica triste porquê? Por já não o poder fazer?

Sim. O ano de 1966, que para muitos significa a presença no Mundial, é para mim um ano triste. Foi o ano em que sofri um acidente e tive de deixar de jogar. Ia ao clube buscar os bilhetes para ir ao cinema, que naquela altura ainda era uma raridade, quando bati com o carro. Tive de deixar de jogar e custou muito. Logo depois do acidente e de me dizerem que já não podia jogar mais, tentei ir ao Restelo umas cinco ou seis vezes, mas não consegui. Chegava lá e ia embora a chorar. Como podia ir para a bancada e não ir ao balneário equipar-me para jogar? Não aguentava, não suportava passar por aquilo tudo. Depois reagi, comecei a ser treinador, mas depois a vida voltou a mudar os planos que tinha para mim. Primeiro amputaram-me uma perna, depois a outra... [sofria de gangrena].

E isso fez-lhe reviver tudo, o não poder jogar, andar...

Nessa altura revivi tudo. Custou muito não poder jogar mais futebol. Ainda custa. Agora já me esqueci um pouco, mas ainda não me habituei. Ver outros a jogar e eu numa cadeira de rodas deixa-me triste. Felizmente, os amigos dos Veteranos do Belenenses animam-me um pouco, mas saber que não posso dar uns toques, nem andar com as minhas pernas... As pernas é que mandam, a cabeça dá ordem às pernas, mas de que vale ter uma boa cabeça apesar das cabeçadas que dei na bola dura e não ter pernas para andar e jogar à bola?

Ainda vai ao estádio ver os jogos do Belenenses?

O futebol de hoje já não tem nada que ver com o do meu tempo. Nem melhor, nem pior, apenas diferente. Muito diferente. Hoje é tática e mais tática, losango, triângulo ofensivo. O que é isso? E futebol? Hoje joga-se a pensar em bloquear o adversário em vez de pensar em jogar futebol e marcar golos. Ninguém ganha jogos sem marcar. E sem marcares não tens adeptos no estádio, não existes. Antes morrias no clube que te lançava, hoje os jogadores estão aqui, amanhã noutro clube e ainda fazem figuras tristes a dizer que são doclube X desde pequeninos. Os treinadores igual, mas a uma velocidade ainda maior. Eu sei que o futebol evoluiu, mas quem vai explicar a um jovem da formação do Belenenses o que é o Belenenses se não alguém que foi do clube e o viveu como se fosse o maior clube? Agora as notícias sobre o Belenenses são esta triste guerra entre clube e SAD.

Tem opinião sobre o diferendo do clube com a SAD?

Eu não gosto é de ver e ouvir gozar com o Belenenses. Ouvir alguém perguntar: "És do Belenenses clube ou SAD?" É triste. Eu não vou entrar nessa guerra. Eu sou Belenenses, ponto! Gosto muito do Silas (treinador da equipa da SAD na I Liga) e gosto muito do Taira (diretor desportivo da equipa do clube nos distritais de Lisboa). São dois homens do clube, que honraram esta camisola e merecem o meu respeito. O resto... Tenho uma certeza, ninguém vai ganhar com esta guerra e há tradições que se perdem, como o FC Porto ir colocar as coroas de flores no busto do Pepe no Restelo.

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