São poucas as "fugas", poucos os desvios à honestidade intelectual que irritem mais do que a apropriação do alheio em conluio com a apresentação do mesmo com outra "assinatura". É vulgarmente referido como plágio e, em muitos casos, serve para disfarçar a preguiça, para fintar a falta de inspiração (ou "bloqueio", se preferirem), para funcionar como via rápida para um destino em que parece não importar o património alheio. No meio jornalístico, tive a sorte de me deparar com poucos casos dessa prática repulsiva - e alguns deles até apresentavam atenuantes profundas. Mas também tive o azar de me cruzar, por alguns meses, tempo ainda assim demasiado, com um diretor que tinha amealhado créditos ao publicar como sua uma tese universitária, revertido para (longo) artigo de jornal. A tese e a história "passaram", o diretor foi ficando. Até hoje, porque muitos desconhecem essa nódoa e outros preferiram olhar para o lado enquanto o promoviam..Recentemente, ficámos a saber que o filme Peregrinação, realizado por João Botelho, foi o escolhido para representar Portugal na "corrida" aos Óscares, na categoria reservada à "língua estrangeira", por oposição ao inglês. E voltámos a ter notícias de Deana Barroqueiro, escritora que há praticamente um ano reclama ser a autora, não reconhecida, de uma parte do "argumento" trabalhado pelo cineasta. A explicação - que me parece equivaler a prova, nestas circunstâncias - afigura-se simples: o filme é baseado nos escritos de Fernão Mendes Pinto mas acaba por extravasá-los e por se aproximar do que a autora passou a algumas páginas de O Corsário dos Mares - Fernão Mendes Pinto, editado em 2012 (o filme é de 2017), apresentando sequências não contempladas no legado do autor seiscentista. Pergunta-se: não valeria a pena reconhecer esse "empréstimo" que, não admitido, acabará certamente por ganhar outras designações, menos amigáveis e mais drásticas?.Julgo saber que Deana Barroqueiro pretende apenas isso: figurar entre aqueles que, de uma forma visível, contribuíram para moldar a obra de João Botelho. Até por se tratar de "suportes" distintos, o filme poderia acabar por ajudar o livro, como parece já ter acontecido o contrário. Esta escolha para uma representação internacional poderia motivar uma reflexão, e uma emenda de mão, a Botelho, para evitar que a sua Peregrinação se transforme num calvário e que, ao atravessar fronteiras, seguisse carregado com uma mancha, com uma nódoa, com uma porta aberta para a polémica que não aproveita a ninguém..O realizador, que "descobri" muito lá atrás, em Conversa Acabada (1981), é um dos valores mais sólidos do cinema nacional, ainda por cima com uma obra em que os mergulhos na literatura - de Tempos Difíceis (Dickens) a Os Maias: Cenas da Vida Romântica (Eça), de Filme do Desassossego (Pessoa) a A Corte do Norte (Agustina) - são uma constante saudável e invulgar. Poderá evitar ainda o travo amargo de ver questionados os méritos de um filme que, salvo melhor opinião, é dos melhores que já assinou. Além de, com uma qualquer iniciativa de aproximação, poupar Portugal e o cinema português a mais um episódio que levará a franzir sobrolhos quando os olhos deviam estar bem abertos... para o filme. Por isso, talvez tenha chegado o momento de recorrer ao tira-nódoas, antes que esta cresça e tinja o trabalho de Botelho, com cores que este seguramente nunca quis mostrar.
São poucas as "fugas", poucos os desvios à honestidade intelectual que irritem mais do que a apropriação do alheio em conluio com a apresentação do mesmo com outra "assinatura". É vulgarmente referido como plágio e, em muitos casos, serve para disfarçar a preguiça, para fintar a falta de inspiração (ou "bloqueio", se preferirem), para funcionar como via rápida para um destino em que parece não importar o património alheio. No meio jornalístico, tive a sorte de me deparar com poucos casos dessa prática repulsiva - e alguns deles até apresentavam atenuantes profundas. Mas também tive o azar de me cruzar, por alguns meses, tempo ainda assim demasiado, com um diretor que tinha amealhado créditos ao publicar como sua uma tese universitária, revertido para (longo) artigo de jornal. A tese e a história "passaram", o diretor foi ficando. Até hoje, porque muitos desconhecem essa nódoa e outros preferiram olhar para o lado enquanto o promoviam..Recentemente, ficámos a saber que o filme Peregrinação, realizado por João Botelho, foi o escolhido para representar Portugal na "corrida" aos Óscares, na categoria reservada à "língua estrangeira", por oposição ao inglês. E voltámos a ter notícias de Deana Barroqueiro, escritora que há praticamente um ano reclama ser a autora, não reconhecida, de uma parte do "argumento" trabalhado pelo cineasta. A explicação - que me parece equivaler a prova, nestas circunstâncias - afigura-se simples: o filme é baseado nos escritos de Fernão Mendes Pinto mas acaba por extravasá-los e por se aproximar do que a autora passou a algumas páginas de O Corsário dos Mares - Fernão Mendes Pinto, editado em 2012 (o filme é de 2017), apresentando sequências não contempladas no legado do autor seiscentista. Pergunta-se: não valeria a pena reconhecer esse "empréstimo" que, não admitido, acabará certamente por ganhar outras designações, menos amigáveis e mais drásticas?.Julgo saber que Deana Barroqueiro pretende apenas isso: figurar entre aqueles que, de uma forma visível, contribuíram para moldar a obra de João Botelho. Até por se tratar de "suportes" distintos, o filme poderia acabar por ajudar o livro, como parece já ter acontecido o contrário. Esta escolha para uma representação internacional poderia motivar uma reflexão, e uma emenda de mão, a Botelho, para evitar que a sua Peregrinação se transforme num calvário e que, ao atravessar fronteiras, seguisse carregado com uma mancha, com uma nódoa, com uma porta aberta para a polémica que não aproveita a ninguém..O realizador, que "descobri" muito lá atrás, em Conversa Acabada (1981), é um dos valores mais sólidos do cinema nacional, ainda por cima com uma obra em que os mergulhos na literatura - de Tempos Difíceis (Dickens) a Os Maias: Cenas da Vida Romântica (Eça), de Filme do Desassossego (Pessoa) a A Corte do Norte (Agustina) - são uma constante saudável e invulgar. Poderá evitar ainda o travo amargo de ver questionados os méritos de um filme que, salvo melhor opinião, é dos melhores que já assinou. Além de, com uma qualquer iniciativa de aproximação, poupar Portugal e o cinema português a mais um episódio que levará a franzir sobrolhos quando os olhos deviam estar bem abertos... para o filme. Por isso, talvez tenha chegado o momento de recorrer ao tira-nódoas, antes que esta cresça e tinja o trabalho de Botelho, com cores que este seguramente nunca quis mostrar.