Angola, o renascimento de uma nação

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A guerra do Kosovo foi das raras seguras para os jornalistas. Os do poder, os kosovares sérvios, não queriam acirrar ainda mais a má vontade insana que a outra Europa e a América tinham contra eles, e os rebeldes, os kosovares muçulmanos, viam nas notícias internacionais o seu abono de família. Um dia, 1998, 1999, não sei ao certo, eu e o fotógrafo Luís Vasconcelos íamos de carro por um vale ladeado, à direita, por colinas - de Mitrovica para Pec, perto da fronteira com o Montenegro. E foi então que vi a esteira de sucessivos fumos, adiantados a nós, numa estrada paralela que parecia haver nas colinas.

Já disse, os jornalistas, ali e então, não se sentiam ameaçados. Apesar de sozinhos, virámos para procurar a tal estrada, encontrámo-la e fomos por ela. Apareceram vivendas fumegantes ou já em cinzas, isoladas ou no meio de outras - aparentemente escolhidas pelos incendiários que nos levavam vantagem. Parámos numa que se destacava por ter à volta casas incólumes e algumas pessoas que pareciam desinteressar-se do drama. Portas escancaradas, vidros das janelas partidos e no quintal havia mobília que tinha sido pasto do fogo. Dentro e fora, espalhava-se a imagem comum na década da guerra dos Balcãs: documentos e fotos, rasgados e semiqueimados. Era uma guerra civil e o próprio desta é a incivilidade de apagar o outro lado.

Os vizinhos olhavam a nossa curiosidade com indiferença. Eles eram muçulmanos e a vivenda era de sérvios: "Ele era médico", disse alguém que estivera a ver pegar fogo à casa do vizinho pela patrulha incendiária que seguira, à nossa frente, pela estrada fora. E o nosso informador achou ter de dizer: "Um bom médico..." Os vizinhos não fizeram nada para proteger a casa nem, como vimos quando chegámos, não quiseram saqueá-la. Aquele era só um ato de guerra civil. Apagar o outro.

Chegámos a Pec, um cidadezinha bonita e uma sensação de filme de terror. Vazia. Numa pequena praça, o silêncio era quebrado pelas portadas das janelas que batiam e pela água de duas torneiras públicas que jorravam. À saída de Pec, o mosteiro ortodoxo, protegido por altos muros e tropas italianas da ONU. Lá dentro, refugiados sérvios, famílias inteiras, gente acabada de chegar... Grupos à volta de aparelhos que, por rádio, comunicavam com as quintas vizinhas assaltadas e incendiadas. Conversas angustiadas pelo silêncio, do outro lado a não resposta, só o som mecânico da rádio, um grrrr..., que punha os olhares dos presentes a fugir aos olhares à volta.

Um homem grande agarrou-me num braço e puxou-me para um canto do jardim e olhou-me nos olhos. Ele falava um pouco de inglês, era dali, de Pec, da cidade mesmo, de onde, nessa manhã, fugira com os seus - mas deixara em casa um irmão. Este era um bocado, fez-me o sinal universal do dedo pela testa, maluco. Nós, eu e o Luís, éramos jornalistas, tínhamos carro, não podíamos ir buscá-lo? Não me importei, mas como, se não conhecíamos Pec, e o irmão dele era..., era... fiz também o sinal do dedo na testa, como íamos encontrar o irmão?... O sérvio deu-se conta da tolice. Disse-me para esperar e foi ter com um grupo, a família. Logo, a mulher agarrou-se a ele, gritando que não. O homem regressou: "Ela não me deixa ir", disse-me, com os olhos no chão. Levar os homens à cobardia não é o pior dos vícios das guerras civis.

Anos antes, em 1992, eu estava em Luanda. A cidade tinha vivido uma novidade e uma grande esperança, as suas primeiras eleições - mas tudo dera para o torto. A UNITA não aceitara o resultado e o país voltou a partir-se em dois. As forças militares do Galo Negro abandonaram a cidade, foram postar-se para lá do rio Dande, e a capital, mais uma vez, sentiu-se cercada. Um cortejo de carros da UNITA foi atacado e morreram altos dirigentes, como Jeremias Chitunda, que Savimbi pretendia para primeiro-ministro, caso vencesse, e Salupeto Pena, sobrinho do líder. Angola ainda não sabia - aos quase 20 anos de guerra civil que vivera desde a independência ainda iria juntar mais uma década fratricida.

O meu hotel, o Tivoli, quase só de jornalistas, ficava numa rua íngreme que dos morros da cidade conduzia à Mutamba, a praça mais movimentada da Baixa. Quando eu era garoto (sou luandense), mesmo antes da adolescência, frequentava a biblioteca da câmara a dois passos do hotel. Desde os doze anos eu insistia num tema, "Angola", tudo. Acho que me convenci que um dia iria ler todos os livros em que esse tema tinha ficha naquela biblioteca. Assuntos como "porquê os muros do Cemitério Velho são em meia-lua", "os primeiros candeeiros de ferro-forjado da Fortaleza vieram do Dondo" ou "as bessanganas da Ilha do Cabo"... Tudo, mas confesso que desconsegui esse objetivo. Percebo hoje, porém, o que andei a fazer: procurava regar as raízes breves que me ligavam à terra.

Então, já com a guerra regressada, estava eu no bar do Tivoli quando um negro com roupas pobres veio ter comigo. Perguntou-me: "O chefe lembra de mim?" Lembrava-me, era um dos guarda-costas de um dirigente da UNITA, com quem eu me encontrara algumas vezes, no vizinho Hotel Trópico, nas semanas ainda da esperança. Como a todos os guarda-costas, de origem militar, só o conhecera calado, olhar aparentemente impassível mas pronto. Agora era um homem do Sul, na cidade estranha e olhos de medo. Foi o que ele me disse: "Chefe, tenho medo." Estava escondido "desde as confusões" e queria ajuda. Disse-lhe para aguardar, fui telefonar a um amigo e, ao voltar, já não o encontrei. Não teve confiança em mim.

Há dias, pelo aniversário da independência de Angola, foram condecorados vários angolanos. Alguns, gente maior do país que, por isto ou aquilo, não estiveram nas boas graças do regime. Mesmo quando este, se existe, foi porque o homenageado existiu: por exemplo, Viriato da Cruz, que foi dos homens-chave dos primórdios do MPLA, mas afastou-se da linha oficial e morreu exilado e solitário na China. Mesmo quando, terminada a insensatez da longa guerra civil, já não faz sentido que soldados como o falecido general Ben Ben da UNITA, não sejam lembradas pelo seu país inteiro. Pois, agora, Viriato, dissidente do MPLA, e Ben Ben, UNITA, foram honrados oficialmente por Angola.

De todos, porém, deixem-me lembrar o simbolismo de uma das homenagens deste 11 de Novembro: Liceu Vieira Dias. Ele foi o pai da música angolana e esteve na construção do que foi o moderno nacionalismo angolano e do MPLA. Ele é da "família" MPLA e, por o ser, esteve preso dez anos no Tarrafal no tempo colonial. Mas, em Angola, das mais terríveis guerras civis foram travadas no interior de cada um dos partidos - uma guerra interna ainda mais guerra civil do que as outras. Liceu Vieira Dias foi ostracizado depois da independência, mas este ano, a título póstumo, foi condecorado.

Para perceber melhor este meu relambório, vão ao YouTube, e oiçam Lourdes Van Dunem a cantar com os Ngola Ritmos, que Liceu criou antes de ser preso no Tarrafal. Há uma gravação da RTP, em 1964. Lourdes Van Dunem canta em quimbundo Monami. Não vão perceber as palavras, mas percebem que ela mostra dois dedos e depois um. É uma mãe que teve dois filhos e perdeu um... "Já tive dois filhos meus"... "Fiquei com um"... Tão triste. Tão triste.

Os filhos começam, enfim, a ser todos. Esta semana chega a Lisboa o presidente João Lourenço, este texto não é para lhe agradecer, ele não fez mais do que a sua obrigação: os filhos começam, enfim, a ser todos.

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