Ui, o André Ventura!
Esta semana correu bem. Confirmou-se a radiografia que nos fazem e fazemos de nós: pegamos de cernelha. Vocês sabem, lá fora mata-se o touro, caça-se imigrantes ou vota-se por isso... Já nós somos um povo uno, sem guerras internas vai para dois séculos, somos, enfim, uns suíços que ainda por cima não são maçadores. Nesta semana, uma anunciada extrema-direita morreu na praia como uma alforreca. Nem era uma man-of-war, daquelas de tentáculos com poderes urticantes, era, afinal, só gelatina.
Recapitulemos, então, a boa nova, a que fora precedida do repetido mas escusado susto. Ui, o André Ventura! "O nosso Viktor Orbán do pé em riste", temível comparação húngara, de onde, há tempos, nos chegaram vídeos de uma jornalista (em serviço) a rasteirar e a pontapear imigrantes. Mas, lá está, a húngara rasteirava mesmo e pontapeava até. Já Ventura era "nosso" porque português, era "Viktor Orbán" para evocar a Hungria pasto de populistas radicais, e não era "do pé em riste", era do Pé em Riste, programa sobre futebol e de chutos na língua, na CMTV.
Ora no Pé em Riste, onde pontifica André Ventura, não há rasteiras ou pontapés, só algazarra. Era isso, a só algazarra barata, que nos devia ter alertado para o carácter radical, sim, mas manso, do referido Ventura. Pé em Riste, no anúncio do programa; tangas gritadas, ao longo dele. Quando Ventura migrou para a política continuou com a sua inclinação pelos gritos vazios. Quando fundou um partido, chamou-me Chega, quando fez uma coligação, chamou-lhe Basta... Um dia, se entrar numa geringonça vai querer que ela se chame Alto Aí. Para ele, ideologia política é agitar palavras de cabo-de-esquadra que parecem acabar numa exclamação mas, atenção à subtileza, nunca têm ponto de exclamação.
Fui estudar-lhe o programa: eu passava nas rotundas e lia as frases dos seus cartazes. Sempre bombásticas, sempre tão nada. Uma: "Cem deputados chegam e sobram". Ou: "Tantos deputados para quê?" Uma sugestão contra a democracia parlamentar?, buzinei-lhe numa rotunda. Ele, nada. "Apenas 25 anos de prisão para monstros", dizia outro cartaz. E eu: porquê, 43 anos já estava bem? E 55?... Ele na foto, de braços cruzados, sempre impávido: "Eh, eh, queres que eu diga pena de morte mas não digo..."
Esse é o Ventura, um extremista comedido. Ele nunca diz, ele torneia. Se calhar é por isso que frequenta as rotundas. Olhem outro cartaz: "Andamos a sustentar quem não quer fazer nada?" Não percebo o ponto de interrogação. André Ventura já declarou aos jornais: "Eu só digo alto o que as pessoas dizem nos cafés." Nos cafés há muita cambada que julga saber quem são os calaceiros sustentados. A cambada, por costume, generaliza e faz juízos errados que são injustos para muita gente. Essa muita gente é quase sempre pobre, o que quer dizer fraca. Daí a políticas criminosas é só dar gás e votos aos populistas.
Ventura é um populista, mas também um português suave. Fala alto mas não diz, só sugere o que a cambada diz e ele reproduz acrescentando uma interrogação. Ventura é um radical de cernelha. Se a cambada diz "mata!", ele não diz "esfola!", sugere que se anestesie antes de matar. Há quem diga que falar de André Ventura, mesmo mal, acaba por lhe dar gás. Eu não me importo, comove-me a cobardia política dele, o passo que ele ainda não deu, prudência que é uma homenagem ao bom senso português.
Esta semana correu bem, já disse. No começo dela, André Ventura devia estar na RTP, no debate dos candidatos europeus, representando o Basta, que ele encabeça. Ser eleito significaria participar também ele na tomada do Parlamento Europeu que muitos outros candidatos populistas europeus pretendem. Mas Ventura não foi ao debate, trocou-o pela peixeirada do Pé em Riste. Era como se Mussolini, em 1922, havendo já televisão, tivesse preferido abandonar a Marcha sobre Roma para ir mentir descaradamente para a Itália inteira sobre um jogo de calcio...
Ventura trocou a Europa pelo Pé em Riste, onde comentou imagens de vídeo, passadas, repassadas e esmiuçadas. Ele negou a falta de um jogador do Benfica que ninguém, nem eu, benfiquista, posso negar; e negou ser falso o falso golo do Benfica que se seguiu. Um escândalo a montante e a jusante no campo, que sem vergonha André Ventura aplaudiu em público. Ele mentiu sobre factos, imagens, corridas e lentas, claramente expostos aos portugueses. E ele escolheu correr esse risco porque somos assim.
Em 1881, o compositor francês Charles Lecocq levou à cena a ópera-bufa Le Jour et la Nuit (O Dia e a Noite), onde se cantaram os versos Les Portugais sont toujours gais/ Qu"il fasse beau, qu"il fasse laid (Os portugueses são sempre alegres/ Faça bom tempo ou mau). Foi por facilidade de rima, em francês, que se nos pegou a fama. Há cem anos, Alice Rey Colaço, uma pintora esquecida, até pela sombra da sua irmã Amélia, pintava-nos assim, suaves e a tons pastel. Pode não ser bom em tudo, mas se ocorre também entre extremistas, se os amolece, assim seja.