Perfeitos (ou não) para o papel

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Há dias morreu no Brasil, aos 96 anos, um grande ator: Leonardo Vilar. Os portugueses não o conheceram, exceto os que, um dia, assistiram a O Pagador de Promessas, de 1962, que levou a Palma de Ouro no Festival de Cannes naquele ano. O filme se baseava numa peça de Dias Gomes, mais famoso no futuro como o principal autor de novelas da Globo, entre as quais Roque Santeiro. Era dirigido por Anselmo Duarte, que não fazia parte da turma de jovens cineastas comandados por Glauber Rocha e, por isso, eles o consideravam antiquado e desprezível. Pois imagine a surpresa que tiveram ao saber que O Pagador de Promessas acabara de ganhar o grande prémio em Cannes - e num ano em que concorriam O Eclipse, de Antonioni, O Anjo Exterminador, de Buñuel, Duas Horas na Vida de Uma Mulher, de Agnès Varda, Os Inocentes, de Jack Clayton, Divórcio à Italiana, de Pietro Germi, Tempestade sobre Washington, de Otto Preminger, e O Processo de Joana d'Arc, de Robert Bresson! Era como se uma modesta equipa brasileira de futebol de praia, o Lá Vai Bola, concorresse e vencesse a Champions League!

Em O Pagador de Promessas, ambientado na Bahia, Leonardo Vilar interpreta um camponês que, diante da doença do seu asno, faz uma "promessa" aos deuses do candomblé. Se o animal se salvar, ele dividirá a sua pequena propriedade com os pobres e levará nas costas uma cruz de madeira, de sua casa, a quilómetros de distância, até à igreja de Santa Bárbara, em Salvador, e a depositará aos pés do altar. A história trata da luta de Zé do Burro, o camponês, contra o padre que, dado o motivo da "promessa" e onde ele foi feita - um território da religião negra -, tenta impedir que ele entre na igreja. Era um grande papel para Leonardo Vilar e só agora, ao ler os obituários, sabemos que quase lhe escapou. Por razões comerciais, o produtor preferia em seu lugar um cómico famosíssimo no Brasil, Amacio Mazzaroppi, especialista em interpretar o equivalente brasileiro do saloio, ainda mais rústico e primitivo. Seria impossível ver Mazzaroppi arrastar aquela cruz pelas ruas da Bahia sem ter vontade de rir. Por sorte, Anselmo Duarte lutou pela permanência de Vilar no papel, e só por isso saiu vitorioso em Cannes.

Assim como aconteceu com O Pagador de Promessas, muitos filmes escaparam por pouco de ter o ator, digamos, menos indicado para o papel principal. O Rick inicialmente escalado para Casablanca (1942), por exemplo, não era Humphrey Bogart, mas Ronald Reagan. Quarenta anos antes de eleger-se presidente dos Estados Unidos, Reagan já era um canastrão.

Se dependesse de Billy Wilder, a estrela decadente de Crepúsculo dos Deuses (1950) teria sido a lendária Mae West. Mas ela não se interessou - não se achava decadente -, e Billy chamou a veteraníssima Gloria Swanson, já quase aposentada. Swanson brilhou no papel e só aí se imortalizou como atriz. E o papel duplo feminino de Vertigo -A Mulher Que Viveu Duas Vezes (1958) foi criado por Hitchcock para a competente Vera Miles. Só que ela se distraiu e engravidou, e Hitchcock, contrariado, substituiu-a por Kim Novak. O mundo agradeceu.

Em 1959, Jean-Luc Godard já namorava Anna Karina e a queria para o papel de Patricia em O Acossado. Mas Patricia teria de ficar nua em cena, mesmo que de costas. A jovem Karina não aceitou. Godard então convidou a americana Jean Seberg e, por isso, fez de Patricia a garota que vende o Herald Tribune nos Champs-Élysées. Foi melhor assim.
O primeiro James Bond, desde Dr. No (1962), já era para ter sido Roger Moore. Mas ele não estava disponível e, por isso, Sean Connery se tornou - para sempre - 007. Moore, como se sabe, assumiria depois o papel. E, ao estrear-se como diretor, com O Inimigo Público (1969), Woody Allen sonhava com Jerry Lewis no protagonista. Como Lewis nem respondeu ao convite, Woody escalou a si próprio, e o resto é história.

Como teria sido O Padrinho (1972) com Laurence Olivier no lugar de Marlon Brando como D. Vito Corleone? A Paramount queria Olivier; já o diretor Francis Ford Coppola insistia em Brando. Mas Brando, notório criador de problemas, estava queimado em Hollywood, e só ganhou o papel porque se ofereceu para fazer um teste sem compromisso - teste esse que (a Paramount teve de concordar) encerrava o assunto. Suponha agora que o fascínio de Corleone estivesse no personagem, mais do que no ator. Alguém duvida de que Olivier seria um Corleone tão magnético quanto Brando e, talvez, com melhores bochechas?

Eliza Doolittle, a florista de My Fair Lady, deveria ter sido Julie Andrews, que a fizera no palco em Londres e em Nova Iorque. Mas, ao filmar a peça, a Warner preferiu Audrey Hepburn, mais experiente. Temporariamente desempregada, Julie Andrews foi chamada para Música no Coração. O resto, todos sabemos.

E se, em vez de Vivien Leigh, a Scarlett O'Hara de E Tudo o Vento Levou (1939) tivesse sido uma das muitas atrizes que disputaram o papel, como Paulette Goddard, Susan Hayward, Bette Davis, Katharine Hepburn, Tallulah Bankhead? Para mim, Goddard e Hayward, também jovens, bonitas e petulantes, seriam tão marcantes quanto Leigh. Mas é irresistível imaginar Clark Gable vivendo aqueles arranca-rabos com Davis, Hepburn ou Bankhead - alguém levaria vantagem com elas?

E o que pode acontecer quando um ator dispensa um papel? Em 1967, George C. Scott recusou ser o polícia racista de No Calor da Noite. Rod Steiger aceitou o papel e ganhou o Óscar. Em 1970, Steiger recusou Patton. Scott aceitou o papel e não só também levou o Óscar como passou a ganhar todos os papéis que eram para ser de Steiger.

Falando em Marlon Brando, o diretor Stanley Kramer convidou-o em 1958 para fazer Os Audaciosos, um filme antirracista em que dois presidiários que se odeiam, um branco e um negro, escapam ligados por uma corrente nos pulsos. Brando respondeu: "OK. Quem vai fazer o branco?"

Jornalista e escritor brasileiro

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