Trump devia ler… Mia Couto
É cada vez mais recorrente o uso da palavra "narrativa" como conceito associado à ação política. Já não é de agora, mas tem ganho continuamente mais relevo. Tal como houve (e há) necessidade de refletir sobre fake news, é altura de começarmos a ponderar também os efeitos reais das "narrativas políticas" como algo mais abrangente e igualmente nocivo.
Mia Couto, num dos seus livros, escreve a frase: "Toda a estória se quer fingir verdade." À partida, poderá parecer só mais uma frase bonita do autor, que de facto é, mas também uma conclusão algo ingénua e até inócua. "Fingir a verdade" em política pode ter motivações bem menos ingénuas e trazer implicações nefastas aos cidadãos, ao fomentar a dificuldade em distinguir, de facto, o que é facto do que é fake. Donald Trump continua o exemplo mais global e atual deste fenómeno. Quais as verdadeiras motivações do conflito com o Irão? Onde estão as provas dos planos de ataque de Soleimani? A única coisa certa em todo este processo é a incerteza do que na verdade se passa. Noutro livro, Mia Couto também escreve: "A guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder." O problema é que, como se sabe e como a história ensina, o medo e a mentira nem sempre se viram só contra o feiticeiro.
Na tipologia destas "narrativas", a mais perigosa é mesmo a do medo, aquela que estimula o preconceito e a xenofobia, como a que ajudou, por exemplo, ao Brexit. Quanto custará (ou já custou) ao Reino Unido, em termos sociais e financeiros, esta aventura? Cá, também há quem use esta estratégia para, atacando grupos étnicos, conseguir notoriedade.
Em Portugal, a fantasia de que à esquerda não se governava com contas responsáveis, desvalorizando até uma crise financeira mundial, implicou para os portugueses um período de contração e de austeridade. Com poesia e pela voz de Mário Centeno, foi, no entanto, um governo socialista que agora apresentou um Orçamento do Estado 2020 superavitário, com contas certas e sem ficção. A direita portuguesa enfrenta neste momento uma crise de liderança. Mas não será esta crise, afinal, de identidade? O certo é que é originada, também, pela incapacidade de abandonar um discurso que os portugueses recusaram sufragar. Ao maior reforço de sempre no orçamento inicial da Saúde, o PSD responde com a propaganda populista do caos nos serviços. Perante os progressos na resposta aos incêndios e às alterações climáticas, imediatamente a direita invoca o mérito do São Pedro. E por aí adiante. Ao fazê-lo, esqueceram-se de que estão a negar sobretudo o mérito de todos os portugueses. A credibilização da própria democracia exige não só menos narrativa eleitoralista, mas mais lucidez e responsabilidade.
Deputada do PS