Ir à escola dentro de casa: há mais de 600 crianças em ensino doméstico em Portugal

Há 10 anos não chegavam a 100, há três anos chegaram a ser quase 1000. São atualmente 623 os alunos registados nesta modalidade de ensino, a maioria na Grande Lisboa e na Região Centro. Há especialistas a defendê-lo, por oposição à escola que ainda hoje temos, herdada da Revolução Industrial.
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Aprender sem pressas, sem testes, sem o toque estridente da campainha, sem professor, com a mãe ou o pai a fazer esse papel. Esta é a realidade de 623 crianças e jovens em Portugal, a maioria na Área Metropolitana de Lisboa, seguida de perto pela Região Centro. Os números do Ensino Doméstico em Portugal já foram mais elevados, mas um decreto-lei de 2021 - que estipulou a obrigatoriedade de a mãe ou pai terem grau académico de licenciatura - fez descer os números nos últimos três anos. Ainda assim, há uma década eram apenas pouco mais de 300. Os números refletem apenas os alunos matriculados em Portugal, com tutoria de uma escola ou agrupamento nacional. Porque haverá muitos mais que, vivendo cá, estão matriculados nos países de origem, como é o caso da maioria dos filhos das comunidades estrangeiras.

O que leva, afinal, uma família a optar pelo ensino doméstico, onde as crianças estão sujeitas apenas a prestar provas anuais à tutela do Ministério da Educação? Na maioria dos casos, são razões de profunda discordância com o Sistema de Ensino. Foi o caso de Anabela Cordeiro, mãe de duas crianças, com 9 e 4 anos.

Ao cabo de uma carreira profissional na área dos Recursos Humanos em grande empresas, em 2019 trocou Lisboa pela terra natal, uma aldeia da Freguesia de Marinha das Ondas, Concelho da Figueira da Foz. "Desde que pensei em ter filhos sabia que não queria vê-los enclausurados num edifício que, na maioria das vezes, tem grades à volta. Como se fosse uma prisão", conta ao DN, numa manhã de outubro em que o filho faz uma pausa nas atividades que ela própria define. "Para não cair na tentação de seguir um "guião", nos anos anteriores nem sequer fui levantar os manuais", recorda. O certo é que, logo no 1.º ano, quando ele chegou à escola onde a professora da tutoria o aguardava, em Paião, sabia ler como nenhum dos outros.

Anabela tentou criar uma comunidade de aprendizagem na aldeia, mas acabou por desistir, perante a falta de entusiasmo e aderentes. À volta, familiares, vizinhos e amigos continuam a rotulá-la de "louca", por não levar os filhos à escola. A ela cresce-lhe a certeza de "estar a fazer o melhor, respeitando e estimulando a criatividade e a formação a diversos níveis " do filho, agora no 4º ano.

Desde que ele nasceu, sabia o que não queria para ele. "O Sistema de Ensino está completamente desajustado, é castrador. À criança é imposto que aprenda o que o professor quer. No fundo, está a dizer-lhe que não tem outra capacidade", considera Anabela, que não compreende como é que a escola continua a funcionar nos mesmos moldes em que foi criada, ao tempo da Revolução Industrial, então com outros intuitos: "A ideia, na altura, era formar gente que fosse capaz de entrar numa linha de produção. Até a própria campanha simboliza isso. Hoje precisávamos de uma escola com liberdade de movimentos e de pensamento", sublinha, ela que estimula e treina o(s) filho(s) para aprenderem experienciando.

As viagens de comboio pelo país, as visitas aos monumentos, as idas às compras, tudo está envolto em exercícios de Matemática, História, Geografia ou Ciências. Antes disso, preparou-se. "Fiz uma formação em alfabetização quântica", revela ao DN. Mas, ao cabo destes quatro anos, acredita que a grande diferença está na liberdade individual do menino. "Uma criança só aprende quando se apaixona. E a primeira paixão é a família. Por isso, partimos da árvore genealógica. Quando ela sente que tem o seu lugar e está segura, tudo é mais fácil."

Álvaro Ribeiro começou a interessar-se pelo tema em 2008, ainda antes do doutoramento em Ciências da Educação na Universidade do Minho. "Conhecia pessoas que faziam este tipo de ensino, sobretudo no mundo religioso, conservador", mas à medida que foi avançando no processo de estudo acabou por se cruzar com as mais diversas famílias, com várias inspirações, até chegar àquelas que se assumem como a negação da própria escola (mais do que do Sistema de Ensino), seja em termos curriculares ou de organização administrativa.

Ao longo destes 15 anos, o investigador acompanhou centenas de casos e testemunhou a evolução: Em 2006/07 havia apenas seis crianças em ensino doméstico em Portugal. No ano seguinte 44, depois 67, 82, 97, 76, 330. "Sei que o número cresceu quase até aos 1000, antes de haver o Decreto-lei 70/2021".

Num enquadramento histórico, lembra que, no início, "o ensino (de maneira geral) era feito pela religião católica, comunidades episcopais - claro que era orientado por, e para, um pequeno número de pessoas." A escola "trouxe a massificação e a democratização, trouxe o movimento enorme de docentes, carreiras e contratações". O ensino doméstico "o que tenta fazer é recuperar aquilo que um dia já foi dele".

"Ora, é o que a escola não tem conseguido: há pessoas que têm fontes de inspiração distintas daquelas que a escola tem e dá. Se a escola funciona bem para um conjunto de alunos que já são bons e sê-lo-iam em qualquer escola, já não funciona bem para a maioria, que tem dificuldades e precisava de um outro tipo de apoio", acrescenta.

"A grande conclusão a que chego é que a escola não consegue acomodar diferentes aspirações e inspirações. É preciso que se diga: as pessoas que recorrem ao ensino doméstico são pessoas com formação. Que sabem o que querem, para que querem, e como executar. O ensino doméstico acaba por ser uma forma de eles concretizarem a sua maneira de ver o mundo", explica.
Álvaro Ribeiro já acompanhou famílias cujos filhos frequentam os mais diversos níveis de ensino, desde o 1.º Ciclo até ao Superior. "As coisas andam normalmente. Aquilo que eu vejo é que eles tendem a ter classificações ligeiramente mais altas. Se pensarmos bem, chega a ser óbvio, porque o ensino é individualizado, as formas, as técnicas e os tempos são outros."

O especialista passou muito tempo com várias famílias e isso permitiu-lhe observar realidades diversas, embora todas elas com algo em comum: o tempo e o modo. "Há uma disponibilidade por parte do educador - que, em muitos casos, é a mãe - para proporcionar uma linha de tempo de ensino ao sabor do interesse e necessidade que o aluno tem", sublinha Álvaro Ribeiro, invocando "uma flexibilidade e plasticidade grande". "E isso faz com que as crianças e adolescentes gostem, porque as suas questões têm resposta no momento. Estes miúdos vão crescendo sempre com a noção de que, para as questões deles, tem de haver resposta. E não há ninguém que os impeça de colocar questões."

Foi precisamente esse travão que sentiram os dois filhos dos atores Catarina Santana e André Louro, quando este ano ingressaram no 5º e 8º anos, em Penela, ao cabo dos últimos anos letivos em ensino doméstico - acompanhado pelo professor Adriano Félix, na Comunidade Educativa das Cerejeiras, instalada no antigo Jardim de Infância do Rabaçal. "Ao fim de duas semanas já não podiam pôr o dedo no ar, porque estavam sempre a fazê-lo", conta ao DN esta mãe, que chegou a coordenar o projeto das Cerejeiras. Mas no ano passado a comunidade "sofreu alterações, enveredou por um caminho que não nos agradou, e perdeu profissionalismo. O Adriano saiu, e certo é que há muitos projetos a nascer, mas não há profissionais da Educação a refletir sobre o ensino e a aprendizagem", considera a atriz.

Perante essa perda de confiança, e não sendo uma "purista defensora do ensino doméstico", este ano matriculou os filhos no Agrupamento de Escolas Infante D. Pedro. Havia ainda outra razão : "Eles viviam na bolha. É certo que contactaram com uma grande diversidade de culturas, e isso foi ótimo para a formação dos meus filhos. Mas em relação ao território, estavam numa situação excludente. Entendemos que era importante conhecerem o património humano daqui, criando esses laços de pertença, e também para se prepararem para o mundo", aponta Catarina Santana, que sentiu ser agora o momento certo de os "lançar" para tal, depois de um percurso em que "foram capazes de se construir, com a sua autonomia e autoconfiança para enfrentarem este mundo".

Nos primeiros dias assustavam-se com a campainha. Estranharam os gritos, as regras sem explicação, mas "tem corrido bem", admite a mãe. Quando olha para trás, acredita que os anos de ensino doméstico acompanhado foram o melhor que poderia ter feito por eles. "Uma oportunidade incrível de lhes poder dar ferramentas interessantes. Mas também me sinto muito feliz por haver esta possibilidade de reintegração". Com o resto, está a aprender a lidar.

Ao longo de anos de investigação - que resultaram no doutoramento - Álvaro Ribeiro desmontou a ideia "de que os miúdos ficam privados de sociabilização". "A maioria deles participa em variadíssimas atividades, e aí contacta com outras crianças, da mesma idade e não só". É o caso do filho de Anabela Cordeiro, entre um clube de futebol e a escola de música da Filarmónica.
Por outro lado, o investigador considera que "o ensino doméstico não é para toda a gente. Porque é caro. Além disso, conheço muitos casos em que o aluno tem o ensino em casa, mas depois tem a música, o futebol, o hipismo, uma panóplia de atividades. E as mães funcionam muito em rede. Há até um caso que conheço, na zona de Oeiras, em que num dia é uma mãe que faz o almoço para todos os que estão em ensino doméstico à volta, noutro dia é outra mãe, e assim vai rodando por todas. E isso permite que todas tenham algum tempo."

"Depois fazem muitas "visitas de estudo". Enquanto na escola tradicional os miúdos estão a aprender História pelos livros, elas levam os filhos aos locais, e vão conjuntamente, em comunidade. Por isso convivem muito com outras pessoas", considera Álvaro Ribeiro, que distingue, ainda assim, públicos diferentes no ensino doméstico.

"Existe uma abordagem praticada por pessoas que não são de cá, nomeadamente na Zona Centro (Arganil, Oliveira do Hospital), que é completamente diferente. Recordo-me, por exemplo, de uma aldeia onde estive, com uma grande tenda onde praticavam ioga e outras atividades. São pessoas que estão cá a fazer ensino doméstico, mas estão registadas em escolas do estrangeiro. Alguns desses alunos que visitei há uma década já têm filhos, atualmente, e estão a fazer o mesmo que os pais fizeram com eles".

"É preciso perceber que há pessoas que têm uma visão do mundo diferente. Têm outras fontes de inspiração. Se lermos a Agenda 2030, encontramos muitas pessoas que são vegetarianas e vegan. Alguns porque têm um fundo religioso, outros um fundo filosófico e ético. E a educação dos filhos vem dessa linha."

Álvaro começou por ser professor de Educação Física. Durante 15 anos trabalhou na escola pública e no ensino particular, até enveredar pela investigação. Primeiro foi o mestrado em Administração Escolar, depois seguiu-se um conjunto de estudos que acabou por desembocar no doutoramento direcionado para o ensino doméstico. Também ele deixou de se identificar com a escola, "sobretudo com os processos administrativos". E perante a certeza de que o "elevador social" por vezes parece avariado, foi por outro caminho.

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Entrevista a Jan de Groof, presidente da European Association for Education Law and Policy e que esteve em Portugal a participar numa conferência sobre Direito e Política da Educação, organizada pela Faculdade de Direito de Lisboa.

Como é que encara o ensino doméstico? Que evolução tem observado nas últimas décadas a este respeito?
É certo que existem alguns artigos negativos acerca do ensino doméstico. A situação não é igual em todos os estados-membros. Por exemplo, na Bélgica, há toda uma legislação para estimular a educação em casa e esse tipo de ensino. Foram criadas condições de progresso, de igualdade, alguns normativos positivos para possibilitar essa via de aprendizagem, que os pais têm ao seu alcance. Trata-se, sobretudo, de uma escolha dos pais. O mesmo não acontece em locais como a Alemanha ou os Países Baixos, em que ainda há conceitos pejorativos, mas, de certa forma, os governos estão a trabalhar na legislação. Porém, o que constatámos durante a pandemia é que todos fomos forçados ao ensino doméstico! E isso foi a maior contradição que podíamos imaginar, e aconteceu.

E funcionou bem, na sua ótica?
Funcionou...os governos foram forçados a incentivar o ensino doméstico de uma forma inédita, na verdade - ainda que com enormes consequências, pela forma como aconteceu. Mas, por toda a parte, parece-me que há uma mudança de mentalidades entre os decisores, uma nova forma de encarar o homeschooling.

E considera que foi a pandemia que acabou por ser responsável por ela?
Há uma outra razão, que é o progresso tecnológico. Há países que registam um crescimento considerável da educação em casa, o que era impensável até à pandemia. É verdade que as escolas foram forçadas a organizar o ensino à distância em muito pouco tempo, mas ficou alguma coisa de positivo. E tudo isso me faz acreditar que existe uma evolução positiva do ensino doméstico.

Alguns especialistas apontam a falta de socialização entre crianças como um fator negativo do homeschooling. Partilha dessa opinião?
De todo. Lembro-me sempre da argumentação que existe na Alemanha, em que o Governo considera que um dos perigos é criarmos "sociedades paralelas", com um certo isolamento das crianças. Ora, isso não acontece, na maioria. É certo que existem algumas religiões, bastante ortodoxas, em que as crianças só convivem entre si. Mas na maioria dos casos - e são os dados que tenho - os pais organizam imensas atividades com os filhos, as crianças frequentam um sem número de iniciativas ligadas ao desporto e às artes. Além disso, os governos da maioria dos países - como acontece em Portugal - organizam um controlo da aprendizagem. Os alunos têm de prestar provas regularmente. E o importante é assegurar que os alunos progridem nos seus conhecimentos: não é pelo facto de uma família optar pelo ensino doméstico que é automaticamente competente para o fazer.

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