Constantino Sakellarides: "Reação dos privados à ADSE foi desproporcionada"

O ex-diretor-geral de Saúde e professor da Escola Nacional de Saúde Pública continua a intervir numa área que conhece. Na entrevista DN/TSF diz que a base da crise entre o setor privado e o SNS está na lei de 1990, e aponta caminhos para resolver o problema da ADSE e da greve dos enfermeiros.
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Há cerca de um ano disse que o SNS não acaba de repente, mas vai-se esvaindo. Estamos em que fase desse processo?
Estamos numa fase, diria eu, perigosa. Há problemas acumulados que são de difícil solução, e que se agravam em períodos como estes que são conjunturas pré-eleitorais, em que os ânimos se alteram, em que as agendas afloram e em que é difícil fazer grandes transformações. Portanto, este momento é difícil porque há problemas acumulados complexos que não são de resposta imediata e que entram para uma conjuntura política propícia ao ruído, à confrontação e, às vezes, à falta de senso.

Que parte destas convulsões que estamos a viver mais recentemente - a greve cirúrgica dos enfermeiros, a questão da ADSE, a luta entre o privado e o público - considera política e que parte é conjuntura?
As coisas misturam-se. Há várias questões que se articulam de uma forma em que é difícil, às vezes, distinguir o que são factos, o que são agendas dos atores sociais, o que são necessidades reais, o que é teatro político. É necessária análise, aliás, é necessária uma coisa que a saúde e o SNS não têm - e não têm por razões históricas - que é a chamada inteligência estratégica. Nos tempos heroicos do SNS, quando se tratava de construir mais hospitais, mais centros de saúde, de ter mais médicos, mais enfermeiros, não era preciso grande sofisticação de gestão, mas esse mundo mudou radicalmente nos últimos 40 anos. Hoje precisamos de algo que incorpore a análise das agendas dos atores sociais - porque é que se comportam dessa forma, quais são as expectativas legítimas e aquilo que não é tão razoável - e, a partir disso, criar uma visão sobre o futuro e, decorrente dessa visão, um discurso que seja explicativo e mobilizador e que seja acompanhado depois de um planeamento estratégico. Essa função falta-nos, não foi desenvolvida, e neste momento nota-se mais.

A quem é que caberia essa função?
Essa é uma função que cabe a todos um bocado, para não deitar culpas, como acontece às vezes.

Mas depois não é de ninguém?
Pois, exatamente. Essa é uma função de que o sistema político devia tomar conta, ou seja, nos tempos atuais não dá para fazer isto a olho. O tempo foi passando, a sociedade tornou-se mais complexa, envelhecida, mais exigente, com mais atores interagindo entre eles e, portanto, não pode ser olhar e ver, tem de se aprofundar, tem de se dar novos instrumentos, e isso faz muita falta.

Para isso era provavelmente preciso um pacto de regime em que os maiores partidos se entendessem.
Eu devo dizer que isso não me parece muito realista, pelo seguinte: um pacto de regime implica pactuantes estáveis, ora nós sabemos, se olharmos para dentro dos partidos, que há vários Partidos Socialistas, há vários PSD. Quem é que pactua com quem? Essa ideia, que é uma ideia generosa e atraente e interessante, falece pelo facto de não ser claro quem são os pactuantes estáveis que podem assegurar que esse pacto tem estabilidade.

Mas então quando o Presidente da República, na altura da discussão da Lei de Bases da Saúde, pede um pacto mais alargado está a pedir o impossível, na sua opinião?
Não. Uma coisa é numa dada conjuntura haver uma sensibilidade especial para que é preciso ser pragmático e é preciso dar passos reais para resolver problemas que há para resolver, mas isto é circunstancial.

É diferente de uma conceção estratégica que possa servir as necessidades do setor da saúde, por exemplo?
Exatamente. Isso é possível englobando às vezes umas forças políticas, outras vezes outras. Agora, a ideia de pacto de regime a mim parece-me desinteressante porque é uma espécie de utopia sempre a paralisar. As pessoas quando não têm mais nada que dizer dizem: olhem, façamos um pacto. Isso faz-nos ficar sempre com a esperança de que havia uma solução que, afinal, não conseguimos e portanto ficamos como estamos. Não me parece que seja uma ideia útil, até me parece que tem alguns inconvenientes devido ao seu irrealismo.

Abandonou o exercício de consultor do ministro da Saúde em desacordo com as políticas seguidas, mas também porque a tarefa não seria propriamente fácil. Estamos a discutir ou não a possibilidade de não existir um Serviço Nacional de Saúde tal como nós o conhecemos, universal e tendencialmente gratuito?
Nós, para sermos realistas, temos de pôr sempre essa hipótese por mais indesejável que seja, por mais sofrimento que vá provocar numa camada alargada da população portuguesa. Não podemos deixar de ler as ameaças reais, os riscos reais que existem na sociedade em relação a essa matéria. Para passar a aspetos, digamos, construtivos devo dizer que há aqui uma questão de fundo que é a seguinte: por razões conhecidas, na última década, e principalmente nos últimos anos, o SNS sofreu uma grande erosão de recursos. Não vale a pena descrevê-los porque esse fenómeno é conhecido.

Podemos descrevê-los um bocadinho: por exemplo, entre 2010 e 2015 a despesa dos hospitais públicos diminuiu cerca de 270 milhões de euros.
Exatamente. Houve um corte substancial no financiamento, mas mais do que um corte houve uma sangria importante de profissionais e isso conta muito porque, no fundo, é esse capital humano o fundamental no SNS. Houve um desinvestimento em equipamento e instalações que não se manifesta logo, manifesta-se só uns anos depois, ou seja, agora. Não só houve efeitos imediatos que criaram um mau ambiente, como esses efeitos foram acumulados e manifestaram-se fortemente anos mais tarde. Não há dúvida de que o SNS precisa de mais recursos e precisa de uma política mais profissional. Não é propriamente de uma política de recursos humanos, é de uma política para as profissões para evitar esta sangria contínua. Mas há outro fenómeno que é importante: nós não podemos simplesmente repor recursos e acrescentá-los sem transformar. O SNS há 40 anos era um serviço de um país para uma elevada natalidade, elevada mortalidade infantil, elevada mortalidade materna, com a necessidade urgente de ter planeamento familiar, com a necessidade urgente de ter cuidados médicos espalhados pelo país. Esse primeiro SNS evoluiu de uma forma extraordinária. Hoje temos uma população envelhecida, baixa natalidade, pessoas com muitos problemas de saúde persistentes, que precisam de recorrer frequentemente aos cuidados de saúde.

Portanto, o atual SNS não está preparado para as circunstâncias atuais do país?
Exatamente. Portanto, nós temos, sim, de acrescentar e repor - isso é necessário -, mas transformando ao mesmo tempo. Senão vamos pôr recursos numa rede disfuncional e estamos, de facto, a pôr recursos no SNS de 2010 ou de 2008 e não no SNS de 2020 ou 2025. Esse é o ponto crítico, por um lado, assegurar mais recursos, mas isso significa transformar ao mesmo tempo.

Este SNS + proximidade que de alguma forma tutelou seria um caminho?
Essa é a intenção.

Mas não temos grande notícia dele.
Não. De facto, o que acontece é que esse ensaio, essa experiência, essa iniciativa, só pode resultar se ao mesmo tempo desenvolvermos a tal inteligência estratégica e o discurso que a enquadra.

Discurso político?
Discurso político, fundamentalmente. Ou seja, não pode haver um discurso político ligado a apagar fogos, ao imediato e, ao mesmo tempo, tem de haver um processo de transformação que não cabe nessa agenda política - as duas coisas são necessárias. É difícil fazê-lo, e eu reconheço. É difícil mudar um sistema que está sob tensão, mas não podemos desistir de o fazer porque não temos solução sem mudar. O SNS que ainda temos é muito episódico e fragmentário, responde a esta situação e àquela, mas não tem continuidade, não tem a capacidade de gerir o percurso das pessoas através dos serviços que necessitam de forma a assegurar oportunamente resultados, perde as pessoas na malha, as pessoas caem.

O que está a acontecer é que as pessoas estão a abandonar o SNS. No seu entender, esta questão que se tem colocado entre público e privado, articulação ou não articulação, um depender do outro, como a vê?
Ora bem, há várias formas de fazer e nem sequer é difícil fazê-lo. O setor público tem a sua função central. Temos depois o setor social, que é muito importante em relação àquelas populações mais vulneráveis, porque associa uma parte de saúde com uma parte de ação social que é fundamental para as pessoas dependentes, para as pessoas mais velhas, tem portanto um papel insubstituível, e a articulação entre um e outro tem muitos bons exemplos no país. O setor privado tem o seu papel, é importante, permite que pessoas que querem outro tipo de comodidades e querem acesso a certos aspetos que têm um pouco valor acrescentado em termos de custo/benefício usufruam disso pagando o respetivo preço. Portanto, ao fazerem isso também descongestionam de alguma foram o SNS. Uma articulação virtuosa entre os três setores é indispensável para um bom progresso do sistema de saúde português. Agora, o que inquinou isto foi a Lei de Bases de 1990. Inquinou estas relações e tornou-as desnecessariamente polémicas.

Como?
Que o Estado é omisso na sua principal obrigação. Não consta. Depois, o Estado, o setor social e o setor privado são postos ao mesmo nível, fazendo parte de um mercado competitivo. Como é que o Estado vai pôr o SNS - uma política pública - no mercado? Vai desaparecer ou aparecer no mercado? Não faz sentido. Essa rede competitiva, ao mesmo nível, acrescenta o seguinte: o SNS dá aos seus competidores - não aos seus parceiros, mas aos seus competidores - a gestão das suas unidades. Não faz nenhum sentido. Se são seus parceiros dentro de uma lógica de parceria é uma coisa, se são de facto, como a lei prescreve, seus competidores, não faz sentido dar aos seus competidores as melhores unidades e mais modernas. Mas faz mais: diz que o governo deve proporcionar ao setor privado uma reserva de camas hospitalares em todas as regiões, o que não faz sentido numa perspetiva competitiva. É talvez o documento mais ideológico produzido nos últimos 40 anos e criou este antagonismo entre o setor público e o setor privado, que conseguiu vantagens nessa lei e não as quer perder. Eu julgo que a tentativa, tão dramatizada sem necessidade, de rever aquela lei é uma tentativa lógica que ia repor a harmonia entre setores.

É a isso que atribui esta guerra da ADSE?
Nós quando fazermos a análise somos muito suspeitos em relação às teorias da conspiração, não queremos inventar elações que não existem. Portanto, eu não iria ao ponto de relacionar uma coisa com a outra, explícita ou fortemente. Agora, devo dizer que há uma coisa que me surpreendeu: é evidente que a ADSE é uma história antiga, com muitas dificuldades e muito que contar. Foi sempre uma gestão estranha, foi um seguro, digamos, de má qualidade de forma geral. Pagava sem saber bem o que pagava. Ultimamente tem tido novas preocupações, tem sofrido alterações, está a procurar recuperar isso e, com algum atraso, descobriram que havia um desfasamento de 38 milhões de euros, um ajuste que, aparentemente, é legal e até quase obrigatório.

Foi caucionado judicialmente.
Ora bem, acho que isso é normal, e se há discordâncias sobre isso é uma questão de as discutir para que no futuro não aconteçam. Agora, a reação dos privados também foi desproporcionada. Perante uma coisa que é obrigatória, que resulta de acordos feitos no passado - bons ou maus, primitivos ou sofisticados -, a propósito disso ameaçar beneficiários de descontinuar o tipo de serviço que tinham, isso tem um efeito tremendo. Por um lado cria insegurança nas pessoas mais envelhecidas que dependem muito da ADSE e, pior do que isso ou tão mau como isso, é criar nos mais novos, que têm maior capacidade económica, a pergunta de se devem pertencer à ADSE ou não. É de facto um tiro na ADSE e um tiro no acesso ao SNS desproporcionado e injustificável.

Acha que houve uma ação concertada por parte dos privados?
Não sei se foi concertada, mas foi simultânea e foi claramente desproporcionada. Foi a tal ponto desproporcionada que o primeiro-ministro, a ministra da Saúde, o Presidente da República, todos vieram a terreno acalmar as pessoas, dizer-lhes que não vale a pena sentirem essa insegurança e que o problema se vai resolver, para não saírem da ADSE que lhes pode proporcionar benefícios no futuro.

A ADSE constitui à volta de 20% ou mais das receitas gerais. Acha que os privados conseguem, de facto, sobreviver sem a ADSE, que há condições para os privados poderem dispensar este entendimento com o Estado?
Em primeiro lugar penso que esse problema não se deve pôr. Não se põe realmente. A ADSE tem de persistir e, portanto, essa questão não se põe. Quanto à sobrevivência do privado, não é tanto uma questão de sobrevivência como de dimensão. É legítimo que o setor privado queira crescer, não há nenhum agente económico que não queira crescer, agora, o seu crescimento depende em certa medida da qualidade do SNS.

Ou da falta dela...
Ou da falta dela. Por isso, ao mesmo tempo que temos de apostar e transformar o SNS naquilo que precisamos para os nossos dias, não devemos hostilizar, antes pelo contrário, é preciso que isso se faça de acordo com o setor social e respeitando as oportunidades que o mercado deve oferecer à atividade privada - isso é o normal. Continuo a dizer que esse equilíbrio foi desfeito há 30 anos para prejuízo de todos.

A ministra disse aqui, a propósito da Lei de Bases, que os privados deviam ser bastante mais úteis naquelas áreas em que o SNS não tinha capacidade de resposta. Concorda com este princípio?
Claro. O setor privado e até o social são mais rápidos, o setor público tem regras a que não pode fugir. Acho que podia ser muito mais adaptável se nos transformássemos. Agora, é evidente que as parcerias têm de ser, digamos, olhos nos olhos, eu não posso desconfiar do meu parceiro, se eu fizer um acordo com o meu parceiro e ele me quer substituir - por um lado é parceiro e por outro é meu concorrente -, é evidente que isso inquina o espírito de parceria. Aquilo que deve ser essa complementaridade útil para todos, as tais estratégias em que todos ganham - win-win -, passa a ser uma desconfiança que resultou exatamente dessa ideia da concorrência. Eu não posso confiar naquilo que está a concorrer comigo para me tornar mais fraco, e esse devia ser o pensamento que devíamos tentar anular no nosso sistema de saúde.

Acha que a ADSE ainda faz sentido? E se o setor público absorvesse esse valor que a ADSE paga neste momento aos privados?
Isso pode acontecer num horizonte de dez anos, talvez. Não é provável nos próximos dez anos. Porquê? Porque o reforço do setor público não está a acontecer na medida em que precisa. A transformação no sentido de termos um SNS do nosso século vai fazer-se sempre lentamente e sem isso acontecer até certo ponto, essa absorção não é realista, portanto vamos ter a ADSE pelo menos mais uma década.

Qual é a sua previsão para os próximos tempos, acha que a despesa, com tudo isto que está a acontecer, vai aumentar para o SNS?
Isso, feliz ou infelizmente, não depende do nosso arbítrio, dos nossos desejos, mas depende de um instrumento que não tem sido aproveitado e que se chama Orçamento Geral do Estado, ou melhor, estratégia orçamental. O país aprova, o Parlamento aprova, para três anos - não é ano a ano - uma estratégia orçamental. Essa estratégia orçamental, infelizmente, não contempla metas de bem-estar, não contempla os problemas do país. Quais são eles? A melhor notícia da saúde é a diminuição do desemprego, mas há más notícias que são: a pobreza infantil que persiste; o isolamento social que cresce; a violência de género e outras que têm influência na saúde; o envelhecimento de má qualidade; e, depois, os aspetos do próprio SNS. Esses aspetos merecem o mesmo relevo e a existência de metas, de objetivos, na estratégia orçamental. Se não existirem, são um afterthought, são o que resta.

Então é perigoso dizer que "somos todos Centeno", como disse, a determinada altura, o anterior ministro da Saúde?
Não, não devemos ser todos Centeno, por maior respeito que tenha pelo ministro das Finanças. Devemos introduzir uma estratégia orçamental com objetivos para a saúde e para o SNS. Porque se não o fizermos resta pouco. A contestação, depois desse facto, permite ganhar alguma coisa, mas é sempre muito pouco porque os traços fundamentais, as traves-mestras do Orçamento estão determinadas em função de metas que não contemplam o nosso bem-estar. Esse é que é o momento, e aí falta inteligência estratégica, ou seja, não existe uma função que chame a atenção que é este o momento em que nós conseguimos renegociar quais são as necessidades dos vários setores sociais, para além do défice, da dívida, da economia e das Finanças.

Falou da política para as profissões que se integra nessa estratégia. O que é que acha que o governo deve fazer perante esta greve cirúrgica dos enfermeiros?
Esse é um assunto delicado por três razões. Primeiro, a questão da enfermagem, uma profissão que tem sido muito maltratada nos últimos 40 anos, e o que pede é razoável. A questão é que não se pode fazer tudo ao mesmo tempo, não pode ser tudo para hoje ou para este ano. Julgo que, de facto, a administração do Ministério da Saúde fez um esforço grande para incorporar objetivos importantes para a profissão de enfermagem, quer no que diz respeito à carreira, que é uma coisa fundamental, quer em relação às suas vantagens profissionais. Penso que é difícil fazer mais neste ano. Agora, acho que também era importante fazer um calendário para quando é que a profissão de enfermagem tem o lugar que deve ter dentro do sistema de saúde. Isso não pode ser feito neste ano, mas pode ter um calendário para se fazer. A greve cirúrgica é uma greve muito especial, não deve ser só discutida em termos do direito à greve, porque é uma iniciativa de um sindicalismo recente e de outra natureza. Pareceu-me mais cruel em relação aos doentes, em relação ao sofrimento que causa às pessoas que não têm outra alternativa.

Em parte, o que está a dizer é que esta é uma greve mais terrorista?
Acho que "terrorista" é uma expressão muito dura, mas é uma greve cruel no sentido de dar pouca atenção à necessidade de pessoas que não têm outro recurso a não ser serem operadas no SNS. Por outro lado, também é uma greve maximalista, radical, porque está a pedir coisas que julgo que sabe que não pode ter. E é justificável que a razão da greve seja posta em causa. Portanto, quer pela sua insensibilidade em relação às pessoas que são atingidas quer em relação a pedir coisas que são obviamente impossíveis para além daquilo que já foi acordado, essa greve entra numa categoria que, pelo menos, está sob suspeita.


Estando num ano eleitoral, há margem para o governo fazer uma negociação real ou estará, de alguma forma, condenado a ceder neste como noutros protestos com objetivos idênticos?
Isso depende sempre das partes. Se os movimentos sociais são construtivos e conhecem os seus limites, é sempre possível chegar a um acordo; se os movimentos sociais têm motivações que se associam ao ruído, à instabilidade própria de um momento pré-eleitoral, é difícil negociar.

Se têm motivações políticas, por exemplo?
Que entram no teatro político, não sei bem de que forma. Nessa altura, o objetivo é a crispação, e o exagero está aí. É difícil negociar com quem aposta na crispação e aí o espaço é muito pequeno.

No caso da ADSE, o espaço de manobra também é muito pequeno?
Aí a situação é diferente, porque são entidades que já se conhecem há muito tempo e que estão em transformação. A ADSE está em transformação e acho que, felizmente, está a transformar-se para melhor. Aí o bom senso impera e é preciso encontrar soluções que sejam satisfatórias para os beneficiários e não prejudiquem aquilo que é a perspetiva do setor privado lucrativo de ter o seu negócio rentável.

Então este braço-de-ferro dos privados é uma espécie de bluff?
A mim surpreende-me esta reação desproporcionada e é preciso tentar compreendê-la. Porquê esta reação desproporcionada? Podemos especular, mas na nossa profissão não gostamos de especular, nós analisamos situações concretas.

Há muita gente que veio a terreiro falar desta questão e, nesta semana, numa crónica no Observador, Rui Ramos referia-se a uma ideologia do SNS que teria ódio ao negócio da saúde e uma velha obsessão do socialismo com a estatização dos setores básicos da economia.
[risos] É difícil encontrar tanto preconceito numa só frase! As pessoas não conhecem a história da saúde, não conhecem porque é que com a Revolução Industrial nós tivemos segurança social, porque é que a segurança social nos países mais avançados evoluiu de uma certa forma e nos países do sul da Europa evoluiu de uma forma diferente. O SNS não foi uma pessoa que num dia se sentou e disse "temos de ter um Serviço Nacional de Saúde". Não foi um pecador que numa noite de desvario se sentou e criou um monstro. Isso que me leu, tenho pena que tenha sido escrito por uma pessoa com um background académico.

Tendo em conta as circunstâncias do próprio país, nomeadamente financeiras, é possível pôr fim a este subfinanciamento crónico que o SNS tem registado nestes últimos anos?
É possível progressivamente, daí a importância da estratégia orçamental. Não pode ser oportunisticamente, não pode ser "agora dói-me e vou pedir mais dinheiro". É escusado pedir mais dinheiro aos ministros das Finanças, eles não dão dessa forma. Tem de se encontrar uma estratégia que permita harmonizar as políticas públicas. Nós, com a crise, estabelecemos um desequilíbrio nas políticas públicas. Primeiro as financeiras, depois as económicas e as sociais são o que resta. Temos de voltar a harmonizar as políticas públicas, e sem esta harmonização não temos uma solução para a progressiva melhoria do financiamento da saúde. Esse é o ponto, é aí que se faz a discussão e, para isso, o setor da saúde tem de ter a estratégia para ter uma interação muito diferente daquela que tem tido.

Vê alguém, neste momento, no teatro político com esse tipo de preocupações?
Não, a questão é esta: a política vive do momento, a política é demasiado dependente do eterno curto prazo. Tem de haver relações mais estáveis entre o conhecimento e a política. A política não pode flutuar ao sabor do imediato e, portanto, falta-nos isso. A culpa não é só dos políticos, é também da academia. Mas quando são momentos críticos em que é possível e necessário transformar, então sente-se que faz falta essa inteligência estratégica e, nessa altura, veja-se o caso da ministra Marta Temido: é uma pessoa inteligente, é uma pessoa bem-intencionada em relação ao SNS, mas entrou num momento conjunturalmente difícil e não tem essa função da inteligência estratégica, nem a pode construir a tempo, mas pode contribuir para a criar, acho que deve contribuir para a criar, não vai beneficiar diretamente dela porque não dá tempo. As acusações que lhe fazem neste momento são excessivas, nas circunstâncias atuais, o que pode fazer é tentar olhar para os fogos, perceber que conjunto de fogos constitui o incêndio, porque cada fogo não vem per se, faz parte de um conjunto que se chama incêndio, que pode ser atalhado até certo ponto e é preciso começar a contribuir para construir a tal inteligência estratégica sem a qual não conseguimos transformar, e sem transformação não temos resposta para as questões.

No entanto, há um político que tem um tempo que não é esse tempo e que tem uma margem de manobra que é maior do que essa, que é o Presidente da República. Como avalia o papel que ele tem desempenhado nestas crises e nesta área?
De uma forma geral, acho que o Presidente da República tem sido uma voz sensata. É muitas vezes acusado de falar com grande frequência, e isso é verdade, mas diz coisas sensatas. Julgo que na saúde houve períodos em que, pelo menos, esteve mal informado. Teve uma intervenção em relação à Lei de Bases que acho um pouco menos feliz, e menos feliz porque o Presidente da República é suposto resguardar, sendo um diploma que lhe vai chegar para aprovação, penso que é prejudicial opinar sobre ele antes de a discussão começar no Parlamento, mas acho que é um pequeno pecado, comparando.

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