Compareceu muito povo e, disseram as crónicas, muita mulher formosa. A jornada era de festa e a cerimónia solene, presidida por Sua Alteza Real el-rei D. Carlos I, o Diplomata. Instalou-se a pompa toda na colina de Santana, onde até há pouco existira uma praça para lides de toiros e, em tempos mais recuados, um matadouro de animais (por ironia da história, não longe do actual Instituto de Medicina Legal). Começou então a função. Discursos e saudações, homenagens com ditos de glória, era dia de inaugurar a tão aguardada estátua, oferta de admiradores e amigos. D. Carlos dirigiu-se gravemente ao local de estilo, pegou na borda do pano, puxou por ele, descerrou o monumento. A multidão ficou horrorizada com o que viu. Ali postado, defronte do edifício da Escola Médico-Cirúrgica, um vulto atarracado, que parecia estar de cócoras, tendo aos pés uma mulher do povo, que logo os críticos trataram por "sirigaita". O pior de tudo eram as duas bicas de água que ladeavam o casal, motivo de chacota em toda a Lisboa. Chamaram-lhe "chafariz do Campo de Santana", proliferaram os adágios populares contra o fontanário, as caricaturas nos jornais, os versos impiedosos ("Quem assim faz padrões para os heróis / Antes fizesse planos de urinóis"). A imprensa, sempre cruel e mazinha, carregou na tecla, e cedo circulou nos meios jornalísticos e literários uma campanha para despachar a infeliz estátua pela borda fora. Fialho de Almeida escreveria que "a escultura portuguesa não achou materialização mais lúcida do que um poste de pedra sobre o qual destacaria um boneco de casaca ou beca de lente, tendo aos pés uma palma, uma velhaca nua, um chafariz, um cabaz ou uma bandeira! Ah, raça espúria, raça de pinta-monos e de loiceiros, desmemoriada, insensível, poluindo a glória dos outros, levando à posteridade os nomes ilustres como os galegos levam fretes de baús!" A intenção do artista era representar um sábio pensativo e sentado, com uma rapariga do campo aos seus pés, figuração alegórica do povo rendido à virtude e à ciência do médico homenageado. No final, saiu mal..Do escultor, coitado, não se ouviu um pio. Era fino aristocrata, primeiro-conde de Santa Eulália, com um nome comprido: Aleixo de Queiroz Ribeiro de Sotomaior de Almeida e Vasconcelos. Nascido em 1868, filho de um bacharel, Aleixo fez poucos estudos mas teve grandes ambições de vida. Depois de uma fugaz passagem por Paris, foi para a América em busca da fama e da fortuna. Foi cônsul de Portugal em Chicago, adoptou um nome artístico fulgurante, Alexis Santa Eulalia, mas a fama não singrou, gorando-se os planos para erigir uma estátua a Napoleão na exposição internacional de St. Louis. Quanto à fortuna, fez o pleno, casando com Sarah Elizabeth Stetson, roliça viúva do milionário das confecções John B. Stetson, que enriquecera graças a uma invenção prodigiosa, os chapéus de cowboy, celebrizados por Buffalo Bill, Calamity Jane ou Tom Mix. Sim, leram bem: o português Aleixo Ribeiro casou-se com a viúva do lendário criador dos chapéus de cowboy, ainda hoje conhecidos por stetsons - porque é que a nossa imprensa, sempre queixosa da crise, não pega mais nestas histórias? Adiante. Com a fortuna americana (ou assim o suspeitamos), Aleixo comprou em sucessão rápida o Paço da Glória, em Arcos de Valdevez, e, pouco depois, o Mosteiro de Refoios, em Ponte de Lima, sua terra natal. Foi aí que faleceu em Maio de 1917, aos 49 anos, vítima de um desastre com um carro de cavalos..Com isto já nos desviávamos da estátua, da estátua do doutor Sousa Martins, pois é dele que hoje falamos. A desastrada escultura de Queiroz Ribeiro foi demolida em 1904, para evitar uma "revolta popular", diziam, e em seu lugar foi erguida outra, mais do agrado do povo e das elites bem-pensantes. Da autoria de Costa Mota, a estátua ainda hoje lá está, com a base pejada de flores, velas e placas de mármore com dizeres que, segundo o sociólogo José Machado Pais, autor do interessantíssimo livro Sousa Martins e Suas Memórias Sociais, agradecem curas e graças recebidas do famoso médico mas raramente, em menos de 2% dos casos, se atrevem a chamar-lhe "santo". Em Alhandra, onde Sousa Martins viu a luz em 1843, há outra estátua em sua memória, e até já tentaram roubá-la para a vender aos bocados pelos devotos que o clínico milagreiro teve, e continua a ter, no país e no estrangeiro..Filho de um carpinteiro e de uma doméstica, órfão de pai em menino, Sousa Martins teve uma infância difícil. Como queria prosseguir os estudos, aos 12 anos a mãe aconselhou-o a ir trabalhar para Lisboa, na botica de um tio, estabelecimento que ainda hoje existe: Farmácia Ultramarina, n.º 99 da Rua de São Paulo. Sousa Martins estudou Humanidades no Liceu Nacional de Lisboa e, depois, Ciências Naturais na antiga Escola Politécnica. Durante dez anos, trabalhou na botica do tio enquanto concluía com brilho os cursos de Farmácia, em 1864, e de Medicina, em 1866. Com o dinheiro das explicações dadas aos colegas da farmácia alimentava o vício do tabaco, que se prolongou até ao fim da vida, e, segundo alguns, mesmo depois da morte (por causa disso, muitos devotos ainda deixam cigarros e maços de tabaco junto à estátua dos Mártires da Pátria). Professor venerado por discípulos e colegas (Ricardo Jorge, Júlio de Matos, Egas Moniz, etc.), às vezes sustentava teses consideradas esotéricas e bizarras, como a que postulava a reacção à luz das pupilas dos mortos (!), mas nunca se desviou dos caminhos da medicina convencional da época e foi um estrénuo adversário da homeopatia, a que chamava "prostituição médica", e de outras formas de charlatanismo clínico. Ao contrário do que por vezes se pensa, nunca foi crente nem praticante do espiritismo, pelo menos que se saiba. Convivia com gente de todas as origens sociais e de todos os credos, monárquicos e republicanos, católicos e maçons, e como homem público integrou a comissão executiva da Subscrição Nacional aquando do Ultimato inglês (baptizou de Adamastor o torpedeiro então adquirido com a colecta), foi sócio das mais distintas agremiações científicas nacionais e estrangeiras, teve papel preponderante na fundação do Jardim Zoológico de Lisboa, esteve na génese dos sanatórios de Sant'Ana e da Guarda, participou na célebre expedição à serra da Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia em 1881, na sequência da qual se tornaria um dos principais impulsionadores do Club Hermínio, associação humanitária que visava a construção de casas de saúde e de socorro às gentes pobres da serra, prevendo, inclusive, a aplicação de medidas de "polícia higiénica"..Mas foi como "médico dos pobres" que Sousa Martins se celebrizou e conquistou a aura de santidade que ainda hoje tem. Percorria em visitas os bairros populares e as vilas operárias da cidade, abraçou com entusiasmo o projecto filantrópico da Policlínica Gratuita de Lisboa, as escadas do seu consultório na Rua de São Paulo estavam sempre apinhadas de gente humilde, em busca de amparo e esperança. Trabalhador infatigável, celibatário convicto (ainda que não casto, segundo várias versões), Sousa Martins reservava um dos dias da sua preenchida semana para dar consulta aos mais carenciados e distribuía esmolas e conselhos pelos desvalidos de Lisboa inteira. Tratava também gente ilustre, a quem cobrava caro, para com o dinheiro ajudar os pobres. Camilo foi seu paciente, recordando-o mais pela afabilidade de trato do que pela eficiência terapêutica: "As drogas que ele me fez ingerir deixaram-me na mesma", disse, "mas ao menos gozo todos os dias do melhor quarto de hora de cavaco que tenho encontrado.".Os tempos eram propícios à idealização sacral da profissão médica e a patologia específica do grande mal da época - a tuberculose - prestava-se particularmente à criação de estórias e lendas em seu redor. O catedrático dos Mártires da Pátria destacou-se no tratamento dessa doença, que combateu enquanto clínico e administrador do Hospital de São José, e ao que parece acabou ele próprio vitimado pela tuberculose. Sobre as causas da sua morte, no entanto, pairam as mais desencontradas hipóteses, falando-se em envenenamento por umas ostras que lhe haviam servido em Veneza, quando aí se deslocou para participar na Conferência Sanitária Internacional, de que era vice-presidente. Outros garantem que foi uma gripe em Paris, contraída numa visita ao colega Charles Bouchard, na altura adoentado. Culpa-se ainda um banho frio tomado em Madrid, em viagem de regresso a Lisboa, e o ponto curioso é que todas estas explicações atribuem a morte do venerado médico a doenças contraídas no estrangeiro, como se em Portugal não pudesse adoecer, por uma qualquer razão sobrenatural e fantástica. Em Alhandra, o povo insiste que morreu de fadiga, no afã de cuidar dos pobres. Há quem assevere que foi envenenado, outros dizem que se suicidou com uma injecção de morfina, baseando-se esta hipótese numa alegada confidência a um amigo, a quem terá dito, já acamado, que "a morte não é mais forte do que eu" e que "um médico ameaçado por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se a si mesmo". Sentindo-se doente, Sousa Martins partiu para a serra da Estrela e, ao melhorar, foi convalescer para Alhandra, sua terra natal. Pediu a um médico próximo que o substituísse nas visitas clínicas aos seus amigos e aos pobres, deu-lhe a lista dos pacientes, disse-lhe para não se preocupar com os abastados, que facilmente arranjariam quem cuidasse deles. Na véspera de morrer, pediu um copo de água e uma colher de conhaque, que ingeriu com bicarbonato de soda, para acalmar as fadigas do estômago. Faleceu com 54 anos, às duas da madrugada de 18 de Agosto de 1897. Ao saber da infausta notícia, D. Carlos terá dito: "Apagou-se a luz mais brilhante do meu reinado." Apesar de ser baptizado, José Tomas de Sousa Martins não recebeu a extrema-unção, segundo dizem por ser ateu e maçon, facto não inteiramente comprovado mas que para muitos é o motivo que explica nunca ter sido beatificado ou canonizado..Ainda assim, muitos chamam-lhe "santo" e a devoção que desperta entre os desesperados deste mundo - por doenças terminais, desastres de vária ordem, tragédias íntimas, dramas terríveis - é algo que emociona e comove. Ninguém consegue ler com indiferença o que dizem as placas do Campo de Santana - melhor dizendo, dos Mártires da Pátria, pois nunca um nome foi tão apropriado a um local. No livro atrás citado, Machado Pais fala das duas representações de Sousa Martins, uma como "santo homem", outra como "homem santo". Há quem o veja como um progressista laico, um livre-pensador que coleccionava amantes e fustigava o catolicismo e o poder de Roma, um crítico social que, pouco antes de falecer, publicou um cáustico retrato da vida portuguesa com o pseudónimo Zehobb Cervador (soletrado, dá Zé Observador). Outros encaram-no como um homem santo, igualzinho ao dos altares, uma alma pura e dedicada ao bem, alguém que nunca se casou nem teve vícios, e que em vida só amou perdidamente sua mãe - e os pobres. Entre as explicações profanas e místicas do doutor Sousa Martins, cada um que escolha a sua. Ele agradece. E, com jeito, até retribui a prece..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia
Compareceu muito povo e, disseram as crónicas, muita mulher formosa. A jornada era de festa e a cerimónia solene, presidida por Sua Alteza Real el-rei D. Carlos I, o Diplomata. Instalou-se a pompa toda na colina de Santana, onde até há pouco existira uma praça para lides de toiros e, em tempos mais recuados, um matadouro de animais (por ironia da história, não longe do actual Instituto de Medicina Legal). Começou então a função. Discursos e saudações, homenagens com ditos de glória, era dia de inaugurar a tão aguardada estátua, oferta de admiradores e amigos. D. Carlos dirigiu-se gravemente ao local de estilo, pegou na borda do pano, puxou por ele, descerrou o monumento. A multidão ficou horrorizada com o que viu. Ali postado, defronte do edifício da Escola Médico-Cirúrgica, um vulto atarracado, que parecia estar de cócoras, tendo aos pés uma mulher do povo, que logo os críticos trataram por "sirigaita". O pior de tudo eram as duas bicas de água que ladeavam o casal, motivo de chacota em toda a Lisboa. Chamaram-lhe "chafariz do Campo de Santana", proliferaram os adágios populares contra o fontanário, as caricaturas nos jornais, os versos impiedosos ("Quem assim faz padrões para os heróis / Antes fizesse planos de urinóis"). A imprensa, sempre cruel e mazinha, carregou na tecla, e cedo circulou nos meios jornalísticos e literários uma campanha para despachar a infeliz estátua pela borda fora. Fialho de Almeida escreveria que "a escultura portuguesa não achou materialização mais lúcida do que um poste de pedra sobre o qual destacaria um boneco de casaca ou beca de lente, tendo aos pés uma palma, uma velhaca nua, um chafariz, um cabaz ou uma bandeira! Ah, raça espúria, raça de pinta-monos e de loiceiros, desmemoriada, insensível, poluindo a glória dos outros, levando à posteridade os nomes ilustres como os galegos levam fretes de baús!" A intenção do artista era representar um sábio pensativo e sentado, com uma rapariga do campo aos seus pés, figuração alegórica do povo rendido à virtude e à ciência do médico homenageado. No final, saiu mal..Do escultor, coitado, não se ouviu um pio. Era fino aristocrata, primeiro-conde de Santa Eulália, com um nome comprido: Aleixo de Queiroz Ribeiro de Sotomaior de Almeida e Vasconcelos. Nascido em 1868, filho de um bacharel, Aleixo fez poucos estudos mas teve grandes ambições de vida. Depois de uma fugaz passagem por Paris, foi para a América em busca da fama e da fortuna. Foi cônsul de Portugal em Chicago, adoptou um nome artístico fulgurante, Alexis Santa Eulalia, mas a fama não singrou, gorando-se os planos para erigir uma estátua a Napoleão na exposição internacional de St. Louis. Quanto à fortuna, fez o pleno, casando com Sarah Elizabeth Stetson, roliça viúva do milionário das confecções John B. Stetson, que enriquecera graças a uma invenção prodigiosa, os chapéus de cowboy, celebrizados por Buffalo Bill, Calamity Jane ou Tom Mix. Sim, leram bem: o português Aleixo Ribeiro casou-se com a viúva do lendário criador dos chapéus de cowboy, ainda hoje conhecidos por stetsons - porque é que a nossa imprensa, sempre queixosa da crise, não pega mais nestas histórias? Adiante. Com a fortuna americana (ou assim o suspeitamos), Aleixo comprou em sucessão rápida o Paço da Glória, em Arcos de Valdevez, e, pouco depois, o Mosteiro de Refoios, em Ponte de Lima, sua terra natal. Foi aí que faleceu em Maio de 1917, aos 49 anos, vítima de um desastre com um carro de cavalos..Com isto já nos desviávamos da estátua, da estátua do doutor Sousa Martins, pois é dele que hoje falamos. A desastrada escultura de Queiroz Ribeiro foi demolida em 1904, para evitar uma "revolta popular", diziam, e em seu lugar foi erguida outra, mais do agrado do povo e das elites bem-pensantes. Da autoria de Costa Mota, a estátua ainda hoje lá está, com a base pejada de flores, velas e placas de mármore com dizeres que, segundo o sociólogo José Machado Pais, autor do interessantíssimo livro Sousa Martins e Suas Memórias Sociais, agradecem curas e graças recebidas do famoso médico mas raramente, em menos de 2% dos casos, se atrevem a chamar-lhe "santo". Em Alhandra, onde Sousa Martins viu a luz em 1843, há outra estátua em sua memória, e até já tentaram roubá-la para a vender aos bocados pelos devotos que o clínico milagreiro teve, e continua a ter, no país e no estrangeiro..Filho de um carpinteiro e de uma doméstica, órfão de pai em menino, Sousa Martins teve uma infância difícil. Como queria prosseguir os estudos, aos 12 anos a mãe aconselhou-o a ir trabalhar para Lisboa, na botica de um tio, estabelecimento que ainda hoje existe: Farmácia Ultramarina, n.º 99 da Rua de São Paulo. Sousa Martins estudou Humanidades no Liceu Nacional de Lisboa e, depois, Ciências Naturais na antiga Escola Politécnica. Durante dez anos, trabalhou na botica do tio enquanto concluía com brilho os cursos de Farmácia, em 1864, e de Medicina, em 1866. Com o dinheiro das explicações dadas aos colegas da farmácia alimentava o vício do tabaco, que se prolongou até ao fim da vida, e, segundo alguns, mesmo depois da morte (por causa disso, muitos devotos ainda deixam cigarros e maços de tabaco junto à estátua dos Mártires da Pátria). Professor venerado por discípulos e colegas (Ricardo Jorge, Júlio de Matos, Egas Moniz, etc.), às vezes sustentava teses consideradas esotéricas e bizarras, como a que postulava a reacção à luz das pupilas dos mortos (!), mas nunca se desviou dos caminhos da medicina convencional da época e foi um estrénuo adversário da homeopatia, a que chamava "prostituição médica", e de outras formas de charlatanismo clínico. Ao contrário do que por vezes se pensa, nunca foi crente nem praticante do espiritismo, pelo menos que se saiba. Convivia com gente de todas as origens sociais e de todos os credos, monárquicos e republicanos, católicos e maçons, e como homem público integrou a comissão executiva da Subscrição Nacional aquando do Ultimato inglês (baptizou de Adamastor o torpedeiro então adquirido com a colecta), foi sócio das mais distintas agremiações científicas nacionais e estrangeiras, teve papel preponderante na fundação do Jardim Zoológico de Lisboa, esteve na génese dos sanatórios de Sant'Ana e da Guarda, participou na célebre expedição à serra da Estrela, organizada pela Sociedade de Geografia em 1881, na sequência da qual se tornaria um dos principais impulsionadores do Club Hermínio, associação humanitária que visava a construção de casas de saúde e de socorro às gentes pobres da serra, prevendo, inclusive, a aplicação de medidas de "polícia higiénica"..Mas foi como "médico dos pobres" que Sousa Martins se celebrizou e conquistou a aura de santidade que ainda hoje tem. Percorria em visitas os bairros populares e as vilas operárias da cidade, abraçou com entusiasmo o projecto filantrópico da Policlínica Gratuita de Lisboa, as escadas do seu consultório na Rua de São Paulo estavam sempre apinhadas de gente humilde, em busca de amparo e esperança. Trabalhador infatigável, celibatário convicto (ainda que não casto, segundo várias versões), Sousa Martins reservava um dos dias da sua preenchida semana para dar consulta aos mais carenciados e distribuía esmolas e conselhos pelos desvalidos de Lisboa inteira. Tratava também gente ilustre, a quem cobrava caro, para com o dinheiro ajudar os pobres. Camilo foi seu paciente, recordando-o mais pela afabilidade de trato do que pela eficiência terapêutica: "As drogas que ele me fez ingerir deixaram-me na mesma", disse, "mas ao menos gozo todos os dias do melhor quarto de hora de cavaco que tenho encontrado.".Os tempos eram propícios à idealização sacral da profissão médica e a patologia específica do grande mal da época - a tuberculose - prestava-se particularmente à criação de estórias e lendas em seu redor. O catedrático dos Mártires da Pátria destacou-se no tratamento dessa doença, que combateu enquanto clínico e administrador do Hospital de São José, e ao que parece acabou ele próprio vitimado pela tuberculose. Sobre as causas da sua morte, no entanto, pairam as mais desencontradas hipóteses, falando-se em envenenamento por umas ostras que lhe haviam servido em Veneza, quando aí se deslocou para participar na Conferência Sanitária Internacional, de que era vice-presidente. Outros garantem que foi uma gripe em Paris, contraída numa visita ao colega Charles Bouchard, na altura adoentado. Culpa-se ainda um banho frio tomado em Madrid, em viagem de regresso a Lisboa, e o ponto curioso é que todas estas explicações atribuem a morte do venerado médico a doenças contraídas no estrangeiro, como se em Portugal não pudesse adoecer, por uma qualquer razão sobrenatural e fantástica. Em Alhandra, o povo insiste que morreu de fadiga, no afã de cuidar dos pobres. Há quem assevere que foi envenenado, outros dizem que se suicidou com uma injecção de morfina, baseando-se esta hipótese numa alegada confidência a um amigo, a quem terá dito, já acamado, que "a morte não é mais forte do que eu" e que "um médico ameaçado por duas doenças, ambas fatais, deve eliminar-se a si mesmo". Sentindo-se doente, Sousa Martins partiu para a serra da Estrela e, ao melhorar, foi convalescer para Alhandra, sua terra natal. Pediu a um médico próximo que o substituísse nas visitas clínicas aos seus amigos e aos pobres, deu-lhe a lista dos pacientes, disse-lhe para não se preocupar com os abastados, que facilmente arranjariam quem cuidasse deles. Na véspera de morrer, pediu um copo de água e uma colher de conhaque, que ingeriu com bicarbonato de soda, para acalmar as fadigas do estômago. Faleceu com 54 anos, às duas da madrugada de 18 de Agosto de 1897. Ao saber da infausta notícia, D. Carlos terá dito: "Apagou-se a luz mais brilhante do meu reinado." Apesar de ser baptizado, José Tomas de Sousa Martins não recebeu a extrema-unção, segundo dizem por ser ateu e maçon, facto não inteiramente comprovado mas que para muitos é o motivo que explica nunca ter sido beatificado ou canonizado..Ainda assim, muitos chamam-lhe "santo" e a devoção que desperta entre os desesperados deste mundo - por doenças terminais, desastres de vária ordem, tragédias íntimas, dramas terríveis - é algo que emociona e comove. Ninguém consegue ler com indiferença o que dizem as placas do Campo de Santana - melhor dizendo, dos Mártires da Pátria, pois nunca um nome foi tão apropriado a um local. No livro atrás citado, Machado Pais fala das duas representações de Sousa Martins, uma como "santo homem", outra como "homem santo". Há quem o veja como um progressista laico, um livre-pensador que coleccionava amantes e fustigava o catolicismo e o poder de Roma, um crítico social que, pouco antes de falecer, publicou um cáustico retrato da vida portuguesa com o pseudónimo Zehobb Cervador (soletrado, dá Zé Observador). Outros encaram-no como um homem santo, igualzinho ao dos altares, uma alma pura e dedicada ao bem, alguém que nunca se casou nem teve vícios, e que em vida só amou perdidamente sua mãe - e os pobres. Entre as explicações profanas e místicas do doutor Sousa Martins, cada um que escolha a sua. Ele agradece. E, com jeito, até retribui a prece..Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia