Há muito, muito tempo, no dia 16 de outubro de 1923, um jovem Walt Disney e o seu irmão Roy O. Disney fundavam uma empresa chamada Disney Brothers Studio. O nome completo da marca sofreu pequenas mudanças ao longo do tempo, mas "Disney" tornou-se a palavra familiar a gerações e gerações que tiveram o seu primeiro contacto com o cinema de animação através de um filme dos estúdios. Estúdios esses que estabeleceram o seu simbolismo através de uma mascote, o Rato Mickey - autêntico fenómeno desde a primeira curta-metragem, Steamboat Willie (1928) -, e que se desenvolveram à medida do próprio crescimento da família de personagens à volta do roedor orelhudo. Vejamos: Minnie Mouse esteve ao seu lado desde o início, mas as posteriores criações de Pluto, Pateta, Pato Donald e a respetiva namorada, Margarida, vieram a firmar definitivamente um universo iconográfico..Nos primórdios, e não só, o que veio a definir o trabalho destes estúdios, a par de um gosto clássico, foi sempre uma abordagem pioneira dos desenhos animados. Desde logo, Steamboat Willie fez história com o seu som sincronizado, e não muito depois, em 1932, a Disney introduzia o processo Technicolor com a curta Flowers and Trees; apenas uma das mais de 140 produções que até agora se traduziram em Óscares, 22 dos quais atribuídos à pessoa de Walt Disney (para além das distinções honorárias). Foi ainda em 1937 que a inovação tecnológica dos estúdios deu outro salto, com The Old Mill, a primeira curta a usar uma câmara multiplanos, que oferecia profundidade às imagens..Mas então, de onde vinha toda esta magia? Num texto biográfico sobre Walt Disney, assinado pelo escritor Stephen Birmingham, lê-se a seguinte descrição elucidativa: "O estúdio costumava ter o aspeto de um manicómio bem organizado. No dia em que o visitei, vi, pela porta aberta da oficina, um pterodáctilo que, guinchando e batendo as asas, dava voltas e mais voltas pelo teto, preso num arame. Estavam a experimentá-lo para figurar num stand da Feira Mundial. Ali perto, um dinossauro de tamanho natural, com um sorriso idiota nos lábios, mastigava um pouco de erva pré-histórica, de plástico verde. Os empregados corriam, em cima de bicicletas, evitando chocar com o que parecia ser (e era, com efeito) metade de um gorila de plástico transportado num carrinho de mão. O mais espantoso de tudo é que ninguém, a não ser algum visitante, se surpreendia com aquele pandemónio. Imaginação sem limites - eis a seiva da vida de Walt Disney.".Por essa altura, a empresa cinematográfica já era um verdadeiro império, indissociável do parque temático Disneylândia. Em tempos mais recentes aumentou o seu domínio, começando por integrar os estúdios Pixar (2006), seguidos da Marvel Entertainment (2009), Lucasfilm (2012) e 20th Century Fox (2019). Uma narrativa contemporânea que convive com os tempos áureos de uma marca única. Percorremos aqui 10 clássicos que ajudaram a moldar essa assinatura centenária, antes da grande operação live-action que tem vigorado na sua lógica produtiva. Vale sempre a pena relembrar o cânone....Branca de Neve e os Sete Anões (1937).Esta primeira longa-metragem de animação foi talvez o passo mais importante e arriscado dos estúdios numa época em que Hollywood esperava assistir à ruína da então Walt Disney Productions, apelidando de "loucura" o projeto que alcançou um gigantesco financiamento (um milhão e meio de dólares). Resultado: Branca de Neve e os Sete Anões tornou-se um sucesso sem precedentes, e graças ao espírito de aventura por trás da sua produção houve meios para prosseguir com outras longas-metragens. Estamos a falar de um filme que pôs 750 criativos a trabalhar horas a fio, durante 24 meses, para concretizar o sonho de uma película falada, cantada e colorida. Valeu também a Walt Disney o reconhecimento da Academia, que lhe atribuiu um Óscar honorário pelo feito inovador..Pinóquio (1940).O romance de Carlo Collodi, já muito adaptado ao cinema, continua a ter neste clássico de animação da Disney a sua referência maior. Depois de Branca de Neve e Os Sete Anões, Walt decidiu que esta história da marioneta de madeira, devidamente suavizada na imagem de um rapazinho, seria o próximo passo criativo. Um filme que requeria outra sofisticação técnica e narrativa, incluindo a invenção do Grilo Falante para fazer companhia a Pinóquio... Não foi propriamente um sucesso imediato, apesar do elogio da crítica, mas venceu os Óscares de melhor banda sonora e canção original, os primeiros conferidos a uma longa-metragem animada. E tal como se testemunha sempre no genérico de abertura de um filme Disney, o tema original When You Wish Upon a Star acabou por se converter no próprio tema de assinatura dos estúdios..Fantasia (1940).Se Branca de Neve e os Sete Anões foi o projeto decisivo de Walt Disney, Fantasia foi a sua maior extravagância, assente no desejo de combinar, como nunca antes, a animação com a música erudita. A princípio, a ideia andava à volta de uma curta-metragem para reforçar o carisma de Mickey Mouse, mas o criador entusiasmou-se e concebeu algo genuinamente diferente no panorama cinematográfico: um filme-concerto composto por oito segmentos musicados pela Orquestra de Filadélfia sob a direção do famoso maestro Leopold Stokowski. Já em termos tecnológicos, a principal inovação ganhou o nome de Fantasound, um sistema de som estéreo que permitia reproduzir a acústica de um concerto ao vivo, sugerindo a experiência total do filme. Também neste caso a bilheteira não correspondeu às expectativas, deixando um sabor amargo a quem se apaixonou por cada detalhe de um projeto audaz..Dumbo (1941).Realizada após os falhanços comerciais de Pinóquio e Fantasia, a quarta longa-metragem dos estúdios é um dos seus filmes mais curtos, com apenas 64 minutos. A intenção de Walt Disney era recuperar financeiramente através de uma produção simples e pouco dispendiosa, que garantisse os resultados de box office indispensáveis para corrigir a conjuntura frágil. E, desta feita, a aposta vingou: o pequeno filme baseado num livro de Helen Aberson, com ilustrações do marido Harold Pearl, tornou-se uma das mais estimadas animações com selo Disney, malgrado o seu lançamento poucas semanas antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra Mundial. Uma circunstância histórica que parece "apagar-se" perante a graciosidade e emoção desta pérola..Bambi (1942)."Bambi a perder-se da sua mãe, ela a ser morta por um caçador e aquele aterrorizante incêndio florestal perturbaram-me como nada mais que eu tenha visto em filmes. (...) Essas sequências têm lixado crianças há várias décadas", escreve Tarantino no livro Cinema Speculation. Este é, de facto, o filme que se associa a um trauma coletivo, e que nunca deixou de ser lembrado pela sua dimensão trágica - recorde-se que a estreia ocorreu em plena Segunda Guerra Mundial. Mas é também nele que, apesar disso, se encontra uma versão mais luminosa do romance homónimo de Felix Salten, com um tratamento visual que o coloca entre obras mais artísticas dos estúdios. Era para ter sido logo a segunda longa-metragem, mas o perfeccionismo de Walt Disney adiou o projeto para que ficasse de acordo com o que imaginou. Consta que foi a sua produção favorita..Mary Poppins (1964).Uma mistura de animação e imagem real? A ideia não soou nada bem à autora da série de livros Mary Poppins. Foi preciso uma boa dose de paciência e "a spoonful of sugar" para convencer P.L. Travers de que uma adaptação da Disney não iria lesar a sua criação literária - a história complexa desse processo criativo está retratada no filme Ao Encontro de Mr. Banks (2013), de John Lee Hancock, com Emma Thompson no papel principal e Tom Hanks como Walt Disney... De facto, Mary Poppins, última longa-metragem supervisionada pelo produtor (que morreu em 1966), e com realização de Robert Stevenson, será outro dos filmes ambiciosos dos estúdios, que voltaram a surpreender pela capacidade de produzir magia entre dois registos diferentes. Na pele da protagonista, a debutante Julie Andrews revelou-se uma estrela (venceu logo um Óscar) e ficou como uma espécie de derradeiro símbolo do classicismo segundo Walt Disney..A Pequena Sereia (1989).Título que inaugura a fase oficialmente conhecida como o "Renascimento da Disney" - o período entre 1989 e 1999, que assinalou um regresso aos padrões de qualidade da Era de Ouro dos estúdios (1937-1942) -, A Pequena Sereia surge como um sinal de esperança, depois de uma certa deriva artística. Inspirada num conto de Hans Christian Andersen sobre uma princesa sereia que se apaixona por um príncipe humano, esta animação (há pouco revisitada por uma versão live-action) restaura uma das marcas geniais dos estúdios do Rato Mickey: as canções. Neste caso, escritas por Alan Menken e Howard Ashman, ambos oscarizados..A Bela e o Monstro (1991).Da autoria da mesma dupla de compositores, também aqui a música é rainha. Sendo que A Bela e o Monstro representa um dos primeiros traços de evolução no perfil das "princesas da Disney": Bela não tem cabelos louros nem a postura delicada dessas tradicionais figuras femininas. É apenas uma jovem "comum" de cabelos castanhos que adora... livros. Levar ao grande ecrã este conto de Jeanne-Marie Leprince de Beaumont era uma das vontades de Walt Disney, que não viveu o suficiente para a concretizar. Foi o sucesso de A Pequena Sereia que deu ao então presidente dos estúdios, Jeffrey Katzenberg, a ideia de resgatar o projeto arquivado. Nos Óscares, acabou por ser a primeira animação nomeada na categoria de melhor filme. E inaugurou ainda a mesma categoria (variante comédia ou musical) nos Globos de Ouro, aí arrecadando a estatueta..O Rei Leão (1994).A lado de Bambi, O Rei Leão será o outro clássico da Disney que deixou marcas profundas nos jovens espectadores. Em vez da mãe, é a morte do pai de Simba que se torna um dos momentos indeléveis das produções concebidas durante os anos da Disney Renaissance. Aquando da sua estreia, ascendeu ao lugar de filme de animação com maior bilheteira de todos os tempos. Um gigantesco êxito, com canções de Elton John e Tim Rice e banda sonora de Hans Zimmer, que revestiram toda uma extraordinária recriação do mundo animal a partir de um estudo rigoroso das paisagens africanas. Na sequência deste marco, Toy Story (1995), da Pixar, deu o passo em frente como a primeira animação inteiramente feita por computador..Frozen - O Reino do Gelo (2013).E o que dizer de Frozen? O enorme sucesso, que nos anos 2000 bateu o recorde de O Rei Leão, também andou no radar de Walt Disney nos primórdios da produção de longas-metragens. Disney imaginou-o como um filme biográfico, animado e live-action, sobre o escritor e poeta dinamarquês Hans Christian Andersen (autor de A Pequena Sereia, recorde-se), tendo, em 1940, sugerido uma coprodução com Samuel Goldwyn (MGM), para ficar responsável pelas sequências em imagem real. Não chegou a acontecer nestes moldes, claro, mas Frozen - O Reino do Gelo trouxe de volta algo da vibração da Disney Renaissance, que em 2013 já era uma memória nostálgica. Com os clássicos, é assim que funciona: a excelência dos números musicais devolve um sabor a... Disney..dnot@dn.pt