Ganha-se balanço para o livro - Espaço para Sonhar, coassinado por David Lynch e Kristine McKenna, ed. Elsinore - em nome das melhores recordações, como Blue Velvet (Veludo Azul) ou Mulholland Drive, como essa singular série de TV, com princípio e sempre sem fim, que é Twin Peaks. Ou até em função de "objetos" estranhos e ainda à procura de descodificação definitiva, como Eraserhead ou Inland Empire, manifestos da peculiaridade do cineasta e criador biografado. Um dos primeiros elogios que ganha corpo é de que este longo percurso, dividido entre o relato clássico construído sobretudo a partir de entrevistas a terceiros próximos e envolvidos, por um lado, e as memórias do próprio David Lynch, por outro, nunca se torna pesado, fastidioso ou redundante - algo que merece ser sublinhado se pensarmos que se trata de um volume de 700 páginas, que acompanha o "visado" desde a infância até aos dias de hoje..Aos poucos, vamos descobrindo - sobre a vida, a obra, as ideias, os métodos de trabalho do artista - tudo aquilo que já se esperava: a importância que Lynch confere aos seus próprios sonhos, muitas vezes a chave para as suas propostas cinematográficas, o peso fulcral das suas fixações (das pequenas cidades norte-americanas, sobretudo as que não escondem complexos industriais obsoletos ou abandonados, à ténue fronteira entre a harmonia da normalidade e os desvarios mais violentos), o refúgio conhecido na meditação transcendental, em que foi seguidor do mesmo mestre indiano que iniciou os Beatles, a intensidade e, até certo ponto, a volatilidade das suas paixões, tanto humanas - quatro casamentos com um filho ou filha por cada um, além do romance arrebatador com Isabella Rossellini, que terminou ao telefone -, as guerras, financeiras e criativas, que foi mantendo com a indústria visual (cinematográfica e televisiva) mais conservadora ou mais apegada ao lucro rápido..Há, no entanto, outras dimensões que ajudam, ao menos, a perceber um pouco mais a "bizarria" estrutural de Lynch. Desde logo, a unanimidade de todos os inquiridos em torno da firmeza das suas convicções, do rigor com que segue os seus "desígnios" de criação", mas também da sua extrema delicadeza com que trata todos os colaboradores, nomeadamente os atores, que o citam repetidamente como um mestre e como um catalizador. Em tantos episódios, só se dá conta de uma discussão mais violenta durante filmagens - Lynch vs. Sir Anthony Hopkins, em O Homem-Elefante. Significativamente, é-nos revelado que, depois de uma "separação" pouco amigável, o homem que fixámos para sempre em O Silêncio dos Inocentes e em Os Despojos do Dia terá feito chegar um pedido de desculpas ao realizador, admitindo que ele tinha razão e, sobretudo, que ele sabia o que estava a fazer..Ficamos a saber que, antes de pisar o patamar do reconhecimento, este peculiar norte-americano de 72 anos ganhou a vida como distribuidor de jornais, como técnico de molduras, como empregado de limpeza em estúdios e galerias de arte. Que levou cinco anos para completar o projeto que o fez notar, Eraserhead. Que Lynch faz questão de se envolver em todos os aspetos da produção, do guarda-roupa aos cenários, sem esquecer a música e os efeitos sonoros. Que, muitas vezes, escolheu elencos sem sequer proceder às habituais audições, apostando até em quem nunca tinha representado, parecendo procurar sobretudo alguém que encaixasse na "fotografia" prévia e mentalmente definida. Que, embora primordialmente conotado com o cinema e com a televisão, estamos perante uma autêntica figura "renascentista" - é pintor, ilustrador, músico e, ainda, carpinteiro (dando largas ao seu apreço por ferramentas)..Juntem-se a isto os pormenores, abundantes, para cinéfilos, cultores /ou curiosos. Como o facto de Perdita Durango, a marcante mulher "de má vida" que Isabella Rossellini interpreta em Um Coração Selvagem, ser fisicamente inspirada na artista mexicana Frida Kahlo. Há notícias das amizades de Lynch com Marlon Brando ou com o seu muito amado Federico Fellini, que visitou no hospital, em Roma, dias antes de morrer. Ou ainda o facto de George Lucas ter proposto a David que este realizasse o terceiro capítulo (cronológico) da saga A Guerra das Estrelas (O Regresso de Jedi), algo que poucos recusariam, como Lynch fez, acabando por rumar a outra superprodução, Duna, que considera, sem meias palavras, o seu único falhanço..Há muito para descobrir neste livro, tão acutilante como equilibrado. Nas passagens escritas pelo próprio, confirma-se algo que os filmes indiciam: ele há pessoas estranhas e, depois, num grau muito mais abrangente, há David Lynch. Apetece dizer que a estranheza não é, de todo, algo que ande de mãos dadas com o negativo, com o "mau". Dúvidas houvesse, e a longa estrada deste artista que se revisita sempre com benefícios acrescidos - e o livro também nos empurra de volta aos filmes e a Twin Peaks, sujeitos aos novos desafios que o tempo gera - chegaria para confirmarmos que o estranho pode ser mesmo muito bom.
Ganha-se balanço para o livro - Espaço para Sonhar, coassinado por David Lynch e Kristine McKenna, ed. Elsinore - em nome das melhores recordações, como Blue Velvet (Veludo Azul) ou Mulholland Drive, como essa singular série de TV, com princípio e sempre sem fim, que é Twin Peaks. Ou até em função de "objetos" estranhos e ainda à procura de descodificação definitiva, como Eraserhead ou Inland Empire, manifestos da peculiaridade do cineasta e criador biografado. Um dos primeiros elogios que ganha corpo é de que este longo percurso, dividido entre o relato clássico construído sobretudo a partir de entrevistas a terceiros próximos e envolvidos, por um lado, e as memórias do próprio David Lynch, por outro, nunca se torna pesado, fastidioso ou redundante - algo que merece ser sublinhado se pensarmos que se trata de um volume de 700 páginas, que acompanha o "visado" desde a infância até aos dias de hoje..Aos poucos, vamos descobrindo - sobre a vida, a obra, as ideias, os métodos de trabalho do artista - tudo aquilo que já se esperava: a importância que Lynch confere aos seus próprios sonhos, muitas vezes a chave para as suas propostas cinematográficas, o peso fulcral das suas fixações (das pequenas cidades norte-americanas, sobretudo as que não escondem complexos industriais obsoletos ou abandonados, à ténue fronteira entre a harmonia da normalidade e os desvarios mais violentos), o refúgio conhecido na meditação transcendental, em que foi seguidor do mesmo mestre indiano que iniciou os Beatles, a intensidade e, até certo ponto, a volatilidade das suas paixões, tanto humanas - quatro casamentos com um filho ou filha por cada um, além do romance arrebatador com Isabella Rossellini, que terminou ao telefone -, as guerras, financeiras e criativas, que foi mantendo com a indústria visual (cinematográfica e televisiva) mais conservadora ou mais apegada ao lucro rápido..Há, no entanto, outras dimensões que ajudam, ao menos, a perceber um pouco mais a "bizarria" estrutural de Lynch. Desde logo, a unanimidade de todos os inquiridos em torno da firmeza das suas convicções, do rigor com que segue os seus "desígnios" de criação", mas também da sua extrema delicadeza com que trata todos os colaboradores, nomeadamente os atores, que o citam repetidamente como um mestre e como um catalizador. Em tantos episódios, só se dá conta de uma discussão mais violenta durante filmagens - Lynch vs. Sir Anthony Hopkins, em O Homem-Elefante. Significativamente, é-nos revelado que, depois de uma "separação" pouco amigável, o homem que fixámos para sempre em O Silêncio dos Inocentes e em Os Despojos do Dia terá feito chegar um pedido de desculpas ao realizador, admitindo que ele tinha razão e, sobretudo, que ele sabia o que estava a fazer..Ficamos a saber que, antes de pisar o patamar do reconhecimento, este peculiar norte-americano de 72 anos ganhou a vida como distribuidor de jornais, como técnico de molduras, como empregado de limpeza em estúdios e galerias de arte. Que levou cinco anos para completar o projeto que o fez notar, Eraserhead. Que Lynch faz questão de se envolver em todos os aspetos da produção, do guarda-roupa aos cenários, sem esquecer a música e os efeitos sonoros. Que, muitas vezes, escolheu elencos sem sequer proceder às habituais audições, apostando até em quem nunca tinha representado, parecendo procurar sobretudo alguém que encaixasse na "fotografia" prévia e mentalmente definida. Que, embora primordialmente conotado com o cinema e com a televisão, estamos perante uma autêntica figura "renascentista" - é pintor, ilustrador, músico e, ainda, carpinteiro (dando largas ao seu apreço por ferramentas)..Juntem-se a isto os pormenores, abundantes, para cinéfilos, cultores /ou curiosos. Como o facto de Perdita Durango, a marcante mulher "de má vida" que Isabella Rossellini interpreta em Um Coração Selvagem, ser fisicamente inspirada na artista mexicana Frida Kahlo. Há notícias das amizades de Lynch com Marlon Brando ou com o seu muito amado Federico Fellini, que visitou no hospital, em Roma, dias antes de morrer. Ou ainda o facto de George Lucas ter proposto a David que este realizasse o terceiro capítulo (cronológico) da saga A Guerra das Estrelas (O Regresso de Jedi), algo que poucos recusariam, como Lynch fez, acabando por rumar a outra superprodução, Duna, que considera, sem meias palavras, o seu único falhanço..Há muito para descobrir neste livro, tão acutilante como equilibrado. Nas passagens escritas pelo próprio, confirma-se algo que os filmes indiciam: ele há pessoas estranhas e, depois, num grau muito mais abrangente, há David Lynch. Apetece dizer que a estranheza não é, de todo, algo que ande de mãos dadas com o negativo, com o "mau". Dúvidas houvesse, e a longa estrada deste artista que se revisita sempre com benefícios acrescidos - e o livro também nos empurra de volta aos filmes e a Twin Peaks, sujeitos aos novos desafios que o tempo gera - chegaria para confirmarmos que o estranho pode ser mesmo muito bom.