Muita propaganda não faz um bom produto
Dizia António Costa, comentando à distância e quase com uma semana de atraso a entrevista do Presidente da República, que a sua maioria absoluta não é requentada, porque não existia uma assim desde a do seu camarada José Sócrates. Insistindo em encaixar Marcelo na gaveta do "comentário" - incapaz de esconder a irritação de o saber dono da mão que pode arrancá-lo de São Bento antes dos eleitores -, contrariava ainda a ideia de que o primeiro ano desta legislatura fora "um ano perdido". E assumia que não governava em condições ideais, mas que essas é a realidade que as impõe a quem é "escolhido para governar".
É verdade, Costa chegou ali pelo voto - depois de montar uma geringonça para se sentar ao leme do executivo e de desgastar e secar os parceiros que antes o sustentavam. E bem se vê, entre sondagens e contestação nas ruas, como os portugueses que se fartaram da deriva de extrema-esquerda que o país levava se arrependem dessa decisão.
Marcelo falou num ano perdido, mas na verdade foi uma década perdida, com um primeiro-ministro a queimar um putativo sucessor aqui, a aquecer outro em lume brando ali, e por fim a pôr mão num executivo a solo, um governo que desde o início tem travo a fim de prazo.
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Com Costa, assistimos à pulverização de reformas que tinham arrancado e ao adiamento de outras fundamentais, gerando atrasos imperdoáveis ao desenvolvimento do país; à renacionalização de companhias aéreas que afinal se pretende voltar a privatizar; à destruição de um SNS que podia melhorar, mas funcionava, e hoje está simplesmente emperrado na ineficiência e na insatisfação daqueles que o mantêm em suporte de vida; à implosão do sistema de educação e dos que o garantem; ao desprezo pelos problemas demográficos e da previdência, que se finge endereçar aplicando uma pitada de pó de arroz.
Como é mestre em fazer - e agora apoiado por uma crescente corte de assessores internos e externos para o ajudar a construir a sua narrativa -, no comentário a Marcelo, Costa omitiu factos relevantes. Que não se esgotam nos 12 governantes perdidos em nove meses de sobrepostos casos de justiça e em múltiplos escândalos. Convenientemente, o primeiro-ministro esqueceu-se de contar os oito anos de governação que já leva no currículo, em que o país não só não evoluiu como até regrediu, deixando os portugueses muito mais pobres. Pelas suas opções políticas numas áreas, pelo profundo desprezo votado a outras, ou apenas por conveniência de razão maior a justificar ações marcadas por demagogia biliosa.
A culpa não é da pandemia, da guerra, da inflação - que chegaram só no virar da década e afetaram a Europa por inteiro, e a alguns países com muito maior violência do que a Portugal. A responsabilidade é mesmo de quem se empenha mais em criar um refrão que convença eleitores do que em fazer algo que melhore a vida daqueles que serve - o investimento em spin doctors é inversamente proporcional à curva dos resultados de projetos públicos.
A irritação do primeiro-ministro é essa: por genial que seja, uma boa propaganda não faz um bom produto. E Marcelo pode parecer distraído, mas está sempre atento a malabarismos.
Subdiretora do Diário de Notícias