Caos, desnorte, angústia, mentiras, fadiga, bloqueios, exaustão e desespero. Tem sido assim o maravilhoso mundo do Brexit. Quais as cenas dos próximos capítulos? Será que o pior já passou ou ainda está para vir? .A recente sequência de votos em Westminster seguiu a previsibilidade enunciada por Theresa May quando se dirigiu aos Comuns a 26 de fevereiro. Intercalada por emendas e no meio do habitual caos coreográfico parlamentar, as votações destes últimos três meses têm permitido perceber melhor as posições de cada deputado. Mesmo que a clareza nunca tenha pautado as lideranças conservadora e trabalhista, ambas a pagar um preço por isso, é possível dividir em quatro grandes grupos a forma como os deputados olham para o Brexit..No primeiro estão os ultras, que querem sair à força, sem acordo e sem olhar para trás. No segundo encontramos os apoiantes do acordo de saída negociado com Bruxelas. No terceiro grupo, os que aceitam sair mas querem garantir uma relação estreita com a UE que não encontram no acordo. Por fim, aqueles que acham a saída um erro monumental e querem reverter o processo unilateralmente ou através de um referendo. O cálculo da senhora May, ao ter aprovado a extensão do prazo de saída, é que os hardliners do primeiro grupo cederão a aprovar o acordo antes do Conselho Europeu de 21 e 22 de março por medo de uma convergência entre os parlamentares do terceiro e quarto grupos, o que poderia matar o Brexit de vez..A lógica para desbloquear este impasse não está assim em olhar para as bancadas de forma unívoca, mas antes em tentar parti-las ao máximo para individualizar a responsabilidade do voto. Conseguir a cedência da linha dura conservadora e, acima de tudo, estilhaçar a bancada trabalhista pode ser o caminho que falta à aprovação do texto já negociado com os 27. Neste sentido, as exaustivas maratonas de votação parlamentar têm conseguido ilustrar com alguma dose de acerto o posicionamento dos deputados sobre as nuances do Brexit, o que acaba por ser um trunfo para uma primeira-ministra que só por milagre ainda está em funções..De acordo com esta radiografia, também pode não ser totalmente descabida a cedência dos dez deputados unionistas que apoiam o governo, acompanhando o raciocínio que estarão a fazer os cerca de 80 conservadores mais empedernidos. Não é descabida mas não deixa de ser mais difícil de concretizar. Pensando exatamente nessa impossibilidade, May olha sobretudo para a bancada trabalhista, podendo juntar cerca de meia centena de deputados que, por outras razões, poderão querer ficar na história como os desbloqueadores do impasse em nome do interesse nacional, conseguindo a primeira-ministra uma dupla vitória: dentro do partido, ao infligir uma derrota oficial a Jeremy Corbyn; para fora, resolvendo à terceira o beco em que o Brexit está. Há ainda uma outra linha de argumentação que passa por perceber o tempo aceite para a extensão do artigo 50..Se este for de longa duração (por exemplo, de seis meses a um ano), como aliás Donald Tusk tratou imediatamente de colocar no debate, então os ultra- conservadores do Brexit entrarão definitivamente em pânico, lendo esse prolongamento como a porta aberta à realização de um segundo referendo com vista a inviabilizar de vez o Brexit. Se o prazo aceite unanimemente pelos 27 for de curta duração, isto é, até 30 de junho - véspera da tomada de posse do novo Parlamento Europeu, o que permitiria juridicamente manter os atuais eurodeputados britânicos em funções, sem que o Reino Unido tenha de realizar eleições -, isso significa que até os hardliners conservadores quererão conter o impacto das suas múltiplas derrotas, tornando o menos duradouro possível aquilo que pensavam estar definitivamente posto de parte desde a celebrada vitória no referendo de 2016: evitar que Bruxelas continue a influenciar a política interna britânica. Quem então gritou "ter o poder de volta" tem aqui a fatura pela sua mentira compulsiva..A estratégia de individualizar os apoios, estilhaçar os trabalhistas e vergar os ultraconservadores deve, ao que tudo indica, seguir o mecanismo de votação livre, para que a terceira votação ao acordo de saída não tenha o resultado das duas anteriores. Esta foi aliás a fórmula que o primeiro-ministro Edward Heath usou em 1971 para conseguir o apoio trabalhista ao acordo de adesão do Reino Unido à então Comunidade Económica Europeia. O voto livre, forçando uma consciência parlamentar individual sem restrições à disciplina da bancada, já encurtou a derrota de May da primeira (230 votos a 15 janeiro) para a segunda votação (149 votos a 12 março). A sua expectativa é que o dramatismo dos prazos, os danos à imagem parlamentar, a pressão pela responsabilização individual e o interesse nacional consigam forjar uma vitória. Uma vitória in extremis, como Theresa May sempre quis, de forma a concluir o mandato que assumiu: conseguir um roteiro minimamente ordenado de saída da União Europeia que reduza os inevitáveis impactos negativos de todo este penoso processo..Só que a segunda parte do Brexit pode não ser melhor do que a atual. Esta "vitória" da primeira-ministra deve ser apenas vista como minimalista. A verdade é que Theresa May está em funções mas já perdeu o poder. Repetindo-me, só por milagre continua no cargo, seja porque o Reino Unido vive um quadro político absolutamente atípico, acomodando excentricidades, seja porque Corbyn tem sido um balão de oxigénio para a primeira-ministra. Um partido grande de oposição coeso, convicto e credível já teria invertido as condições políticas a seu favor. É por isto que o que se segue pode ser ainda pior do que aquilo a que temos assistido, com a continuação da gestão política do Brexit feita por dois partidos estruturais à democracia inglesa feitos em cacos, com uma tremenda descredibilização das instituições e um desnorte estratégico do país para influenciar os termos da relação futura com a UE e com terceiros..No final desta longa saga, os ingleses vão olhar para trás e reconhecer que a soberania contemporânea não pode ser exercida no fechamento, mas na participação ativa nos centros de poder, sem cair no erro do isolamento, mas tendo os aliados por perto, influenciando-os. Até lá, tenham calma, sigam em frente, mas façam bem melhor do que até aqui. .Investigador universitário