"É mais difícil fazer o passe para as Berlengas do que comprar um bilhete de avião"

As ilhas de Peniche atraem milhares de pessoas, 65 mil por ano e mais de metade no verão. A sua sustentabilidade impõe um limite de 550 visitantes em simultâneo e, este ano, é preciso autorização prévia, um quebra-cabeças.
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O arquipélago das Berlengas é beleza e biodiversidade, com flora e fauna particulares, algumas espécies que só ali têm existência. Classificada como Reserva Natural em 1981, em 2011 recebeu o título de Reserva da Biosfera da Unesco. Motivos subjacentes para ser muito visitada, a tal ponto que foi necessário impor um limite de 550 pessoas em simultâneo na Berlenga (a maior). Este ano, foi acrescentada uma taxa de três euros e o Berlengas-Pass, este último a dar cabo da cabeça a operadores e a turistas.


Segundo um estudo da Universidade Nova de antes da pandemia, a ilha Berlenga (a maior) era visitada por 65 500 pessoas por ano, das quais 43 250 no verão, sobretudo aos fins de semana e feriados.


Os inícios de semana são habitualmente os menos concorridos para visitar as Berlengas, mas a diferença é ainda mais visível com a introdução das novas regras, a 1 de junho, embora só tenham entrado verdadeiramente em funcionamento quatro dias depois, devido ao mau tempo. Agora, exige-se o pagamento de uma taxa e a autorização prévia do Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF). O maior problema é obter o passe de acesso.


É preciso entrar na plataforma berlengaspass.icnf e preencher 20 campos com dados pessoais: nacionalidade, país, idade, Bilhete de Identidade ou do Cartão do Cidadão (incluindo as letras), morada, localidade, localidade postal, distrito, concelho, freguesia, telefone e telemóvel. Os estrangeiros, por exemplo, não têm freguesias e não possuem o Número de Identificação Fiscal (NIF). E os quem tem, esbarra em dificuldades inultrapassáveis, como a não-aceitação do código postal.


"É mais difícil fazer o passe para as Berlengas do que comprar um bilhete de avião", resume João Peres, 50 anos, pescador desde os 14. Mora no Bairro dos Pescadores, com outros 10 companheiros de ofício e que ali passam praticamente todos os dias entre março e novembro. Sublinham que fazem "pesca o mais sustentável possível", à cana.


Construído em 1941 para a comunidade piscatória, no local onde existiu um mosteiro da Ordem de São Jerónimo, no século XV, o bairro sofreu poucas melhorias. "Há uma casa de banho para pescadores e turistas", protesta João. As casas são atribuídas consoante os ocupantes se reformam e a última grande distribuição foi em 2014, quando a anterior geração deixou de ir ao mar.


Os pescadores não estão contra as restrições, nem elas os afetam particularmente, com uma exceção: "A Câmara Municipal de Peniche (CMP) disse que quem residisse no concelho não pagava a taxa, mas depois não há nada na plataforma que o preveja", lamenta Filipe Cardoso, pescador, 50 anos, sócio com a mulher do restaurante Mesa da Ilha, o único local. O filho, Gonçalo Rocha, 27 anos, segue-lhes os passos. "Gosto da ilha, passei aqui a minha infância, conheço a malta".

Aproveitaram os dois anos de restrições devido à covid-19 para remodelar o espaço, mas temem que as regras de acesso retenham os potenciais clientes. "Para os pescadores não traz vantagens nem desvantagens, mas prejudica o restaurante: é muito burocrático obter o Berlengas-Pass, só se consegue com a ajuda dos operadores turísticos".


O vereador do Turismo da Câmara Municipal de Peniche (CMP) , Ângelo Marques, reconhece que há problemas, embora desdramatize a situação. "A plataforma do Berlengas-Pass é gerida pelo ICNF - que a desenvolveu com o Turismo Portugal - e, apesar das melhorias introduzidas na sequência de reuniões entre operadores e entidades locais, temos conhecimento de constrangimentos no registo de passageiros. Os agentes económicos que operam nas Berlengas têm sinalizado lacunas na plataforma, algumas foram resolvidas, mas reconhecemos que falta limar arestas". Acrescenta que defenderam, para mais tarde, a introdução das novas regras. "Informámos quem de direito, dissemos que a entrada em junho iriar criar alguns constrangimentos".


Quanto à isenção de taxa para os penichenses, é algo que os preocupa. "Tivemos relatos de munícipes que se inscreveram e conseguiram a isenção de pagamento e, também, de quem não o conseguiu. O município vai continuar a acompanhar, a mediar e a sensibilizar. O importante é não criar constrangimentos a quem vai usufruir desta maravilha da natureza, mas também não prejudicar os que fazem das Berlengas a sua principal fonte de rendimento, tendo por base os três pilares essenciais: social, económico e ambiental", sublinha Ângelo Marques.

O DN contactou o ICNF há uma semana sobre o Berlengas-Pass (BP) e as suas dificuldades, questões que não obtiveram resposta.


Os agentes marítimo-turísticos reclamam da promessa de que o sistema seria previamente testado, o que dizem não ter acontecido. Perante as dificuldades, o ICNF pediu para que fizessem o registo dos seus clientes, criando uma conta na plataforma como "operador económico", com a obrigação de indicar o responsável pelo registo. Uma parte dos agentes recusou escudando-se na proteção dos dados pessoais e na desresponsabilização das entidades oficiais. Quem o fez tem poucos clientes para fazer a travessia.


Tiago Bernardino, proprietário da Odisseia Viva, empresa que nasceu há sete anos, não tem tido clientes suficientes para tirar o barco da doca (é o Visão Submarina, construído há quatro anos nos estaleiros de Viana do Castelo). Tem 75 lugares e não é rentável circular com meia dúzia de passageiros. "Indicamos a plataforma e ajudamos as pessoas, não vamos é fazer o registo pessoal. Além disso os estrangeiros não se conseguem registar. Os operadores não concordam com esta imposição de passar para nós as responsabilidades sobre a informação prestada".


Justifica a recusa com as diretivas do ICNF, que sublinha que os dados dos clientes "estão protegidos nos termos da lei, não podendo ser revelados a entidades terceiras", como as "exteriores à Administração Pública". Abriu uma exceção para os operadores turísticos, que serão responsáveis pelo tratamento desses dados pessoais, sendo o ICNF a "entidade subcontratante". Estes "devem garantir "o cumprimento da legislação", o que significa que "qualquer tentativa de alterar a informação, ou outra ação que possa causar dano e pôr em risco a integridade do sistema, é estritamente proibida".


Explica Tiago Bernardino: "Não estou contra o ICNF, contra as taxas ou contra a limitação de pessoas, estou contra o funcionamento da plataforma. Os operadores concordaram que cada embarcação não fazia mais de duas viagens por dia para cumprir o limite de 550 pessoas em simultâneo. Só avançamos com a segunda viagem depois de retirarmos os primeiros clientes. Temos colaborado, mas agora torna-se impossível".

Desde o dia 8 de maio que tem enviado e-mails para o ICNF, considerando que não responderam às suas dúvidas, nomeadamente quem é o responsável pelo fornecimento de dados errados.

"Não nos constituímos operadores na plataforma porque, além de esperarmos respostas claras às nossas dúvidas, decidimos esperar para verificar o seu funcionamento. Não houve um período de testes conforme a promessa na reunião de dezembro", reclamou junto do ICNF a 1 de junho. Acrescenta que, apesar dos esforços para ajudar os clientes, "o processo prova ser demasiado complexo, cheio de bugs, moroso (mais de cinco minutos por cada pessoa) e efetivamente impossível de concluir em muitas situações".

Teve de cancelar a reserva da excursão de uma escola com mais de 30 alunos por não terem conseguido obter o BP, devolvendo os 660 euros já pagos. Está nesta luta com outras empresas, mas o braço-de-ferro tem os dias contados. "Não posso estar parado e a devolver o valor das reservas". O preço de adulto é 20 euros para a travessia de ida-e-volta, com desconto para jovens e idosos. Um visitante não pode passar o dia inteiro nas ilhas, a não ser que compre dois bilhetes, para o período da manhã e para o da tarde.


A Viamar é outra empresa que se recusa a fazer o registo, sendo obrigados a anular algumas viagens ( às 10.00 e 12.00). "Na segunda-feira, [6 de junho] tínhamos cinco pessoas para as 12.00, falámos com elas e passaram para as 10.00. Não estão a conseguir o BP, sobretudo os estrangeiros. Aconselho a que se registem como "utilizador/password", mas está em português e os estrangeiros não têm NIF ou, então, são obrigados a fornecer informação errada. As autoridades transferiram esta responsabilidade para as empresas, o que recusamos devido à Lei da Proteção dos Dados. Ficar com os dados pessoais não é assim tão irrelevante, além de que o registo leva uns 10 minutos por pessoa", diz Rui Luís, no ramo há 20 anos.

Tiago Bernardino tem sugestões: criar dois espaços no local de embarque com pessoas do ICNF habilitadas a fazer o registo, reduzir os 20 campos de dados pessoais e traduzir a plataforma em várias línguas".

O DN procurou informações na sede do ICNF em Peniche. Encontrou uma casa acabada de remodelar e sem documentação sobre as Berlengas. Não souberam explicar como fazer o registo e, a quem telefonavam, aconselhavam que o pedissem à empresa a quem compram a viagem. O jovem do Posto de Turismo estava melhor informado.


A Feeling Berlenga foi uma das empresas que aceitou abrir uma conta como "operador económico" e até sentiu mais movimento do que noutras segundas-feiras (nesse dia teve, entre outros, um grupo de 30 pessoas). Fazem viagens em três turnos, em barcos com capacidade entre 12 e 25 passageiros, podendo sair com poucos clientes e à medida que estes surgem. A média de um bom dia, no verão, é 100/120. O custo da viagem num barco rápido (semirrígido) é 22 euros (20/25 minutos), num lento, 20, (40/45 m). Uma viagem às grutas custa 8 euros e a visitas guiadas pela ilha Berlenga 4, preços equivalentes às outras empresas.

"As pessoas querem ir às Berlengas e não conseguem. Preferimos ajudar os nossos clientes para permitir que façam a viagem. Temos um serviço de proximidade e não excluímos quem não tem acesso à plataforma, o que exige mais trabalho dos funcionários", diz Joana Completo, sócia da empresa, embora discorde do processo. "Bastava que cobrassem a taxa (o que faz sentido para melhorar as condições locais). Agora, a forma como está a ser implementada não é a mais fácil para os clientes e para os operadores. Além de que passam para nós toda a responsabilidade".

No caso do DN, tentei a inscrição pela modalidade "utilizador", mas o sistema não aceitou o código postal da minha residência, embora seja o de receção da correspondência, nomeadamente da Autoridade Tributária. A repórter fotográfica Diana Quintela conseguiu através da chave de acesso das Finanças. Depois de várias tentativas, às 13.30, acabou por registar dois visitantes à ilha. Ficaram de enviar um e-mail a autorizar, que chegou seis horas depois. A operadora marítima aceitou o comprovativo do pagamento da taxa, caso contrário não poderíamos viajar nesse dia, perdendo a vaga nos tais 550 visitantes.


Viajámos num semirrígido de 17 metros, construído em Viana de Castelo, para a Berlenga Grande, a maior do arquipélago que inclui as Farilhões e as Estelas. A maioria dos passageiros eram estrangeiros e pediram a quem lhes vendeu o bilhete para fazerem o registo. É o caso de Paul Stoschetzky, 59 anos, cardiologista, e de Michaela Wohlhart, 55, dentista, da Áustria, que passaram uma semana de férias em Portugal, sobretudo na zona de Peniche. "Tínhamos curiosidade em conhecer as Berlengas, comprámos o bilhete e fizeram-nos o pass, o que era muito complicado para nós, pela língua e todas as informações que pedem".


E mesmo quem domina o português, revela as mesmas dificuldades, acabando por recorrer às empresas turísticas. "Tentámos perceber online como podíamos fazer a visita, parámos quando nos pediram o registo e o Berlengas-Pass. Ficámos com receio de facultar os dados online e acabámos por comprar o bilhete na zona do embarque e pedir para nos registarem", contam Cláudia Oliveira, 40 anos, e João Moniz, 41, empresários. São da ilha Terceira (Açores) e só compraram a viagem para Lisboa, sem data obrigatória para regressar das férias.


O ecossistema das Berlengas é uma das 12 reservas da biosfera da UNESCO de Portugal. Terá sido ocupada há mais de 2500 anos, segundo o grupo de trabalho constituído pela Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar (Peniche), Instituto Politécnico de Leiria, (ICNF) e CMP. Voltaria a ser ocupada com a construção do Mosteiro da Misericórdia no século XVI e do Forte de São João Baptista, no século XVII. Este último monumento pertence à Marinha e já foi uma pousada de luxo. É gerido desde 1981 pela Associação Amigos das Berlenga, disponibilizando 14 quartos, cozinha , pátio e bar. A zona de campismo não está a funcionar. Há, ainda, o farol do Duque de Bragança, edificado em 1941. E, tal como todos os faróis em Portugal, pode ser visitado às quartas-feiras.


As ilhas são formadas por um complexo de rochas graníticas e metamórficas, destacando-se o granito rosa e que só se encontra na Terra Nova (Canadá), mais uma prova da união dos continentes europeu e americano, os dois mega continentes Gondwana e Laurásia.


As formações geológicas escavaram várias grutas que podem ser apreciadas numa lancha com fundo de vidro. Entre estas, a Gruta da Flandres, Azul, da Inês, a Furada Grande ou a Catedral, esta na baía do Sono. A baía está a coberto do vento do norte, na parte de trás da ilha, e, em dias de tempestade, era lugar que os pescadores procuravam para se abrigarem.

O Airo é a ave símbolo das Berlengas, autóctone, e que poderá estar extinta enquanto espécie reprodutiva. Há muitas outras que ali fazem os ninhos: gaivotas, o corvo, a cagarra e o roque de castro. Entre as espécies marinhas, os pescadores dizem haver bom peixe-galo, robalo e pargo. Nas plantas e arbustos, destaca-se a arméria-das-berlengas, que é endémica. Tudo isto e muito mais foi explicado numa visita guiada por João Silva, 53 anos, um antigo pescador que passou para o turismo.

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