"Falta de medicamentos vai agravar-se e o país tem de se preparar antes de um problema de saúde pública"

Nas farmácias comunitárias faltam desde analgésicos a anti-inflamatórios e antibióticos. Nos hospitais, é cada vez mais difícil repor stocks. E o Infarmed já proibiu a exportação de mais de uma centena de medicamentos. O bastonário dos farmacêuticos diz ao DN que a situação é preocupante e que o país tem de "trabalhar urgentemente numa verdadeira estratégia de reserva de medicamentos".
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Na última semana, o Instituto Nacional da Farmácia e do Medicamento (Infarmed) suspendeu a exportação de 110 medicamentos, entre eles o antibiótico amoxicilina, o anti-inflamatório ibuprofeno e outros mais, como o paracetamol. Tudo porque estes estão a faltar nas farmácias comunitárias e, nalguns casos, as reposições só estão previstas para daqui a meses. As razões para que tal aconteça são várias e vão desde problemas na produção à distribuição. O bastonário dos farmacêuticos, Helder Mota Filipe, diz que "a situação tem vindo a agravar-se e, muito provavelmente, vai agravar ainda mais, porque todas as causas que estão na sua base se vão manter".

A sua grande preocupação é que "o país deveria estar melhor preparado para gerir crises como esta". "Não podemos achar que a nós nada nos vai acontecer. Outros países europeus têm-se preparado com mecanismos legais. Não podemos achar que a nós nada nos vai acontecer", comentou ao DN.

Por enquanto, salvaguarda, "não foi identificada qualquer situação que constitua um problema grave de saúde pública - isto é, doentes que precisam de um medicamento em falta e para o qual não haja alternativa. A minha preocupação é que o país consiga garantir que tal não vai acontecer", mas, reforça, "para isso é mesmo necessário que o país esteja mais preparado".

E, nesse sentido, defende que se deve "trabalhar urgentemente numa verdadeira, robusta e moderna estratégia de reserva de medicamentos". "Deveríamos ter uma reserva que permitisse ao Estado recorrer a ela nestas situações, exatamente para se diminuir o risco de um problema de saúde pública", frisa.

Além de uma estratégia mais robusta, Helder Mota Filipe considera haver "um outro aspeto muito importante". "Há países que já têm uma lista de equivalentes terapêuticos para alguns medicamentos, no caso de situações mais complicadas". E dá um exemplo: "Recentemente houve dificuldade no acesso à amoxicilina pediátrica devido ao aumento das infeções respiratórias nas crianças, mas nos países em que já há uma lista de equivalentes terapêuticos o utente vai à farmácia e não sai de lá sem tratamento. Não há aquele, mas há outro. Em Portugal, o utente vai à farmácia, o farmacêutico diz que não tem o medicamento e não pode dispensar um alternativo. A solução é o utente ir de novo ao centro de saúde, pedir nova consulta e nova receita, e este vaivém não é compatível com uma infeção respiratória numa criança", diz, sublinhando que estas situações, dada a realidade atual, poder-se-ão "tornar cada vez mais frequentes".

O bastonário argumenta que tal poderia ser feito rapidamente, pois até há "uma instituição, sediada no Infarmed, que é a Comissão Nacional de Farmácia e Terapêutica, que poderia servir para criar rapidamente uma listagem oficial e até para criar outras soluções para este tipo de problema", porque "quem sofre com isto são os doentes, as suas famílias e os profissionais, que veem os doentes a não serem tratados adequadamente".

Para o representante dos farmacêuticos "o importante é identificar-se os problemas e agir, criando-se condições do ponto de vista legal que permitam responder rapidamente a estas situações". Até porque, a situação não afeta só as farmácias comunitárias, mas também os hospitais. "O feedback que temos através do Colégio da Farmácia Hospitalar é o de que há mais dificuldade na gestão dos stocks. Isto é, a reposição dos stocks está a ser mais lenta o que tem exigido um maior esforço na garantia de que os medicamentos não faltam mesmo. Mas até agora não se detetou problemas graves".

Helder Mota Filipe explica que "falhas no mercado sempre houve e sempre haverá, porque é impossível ter um mercado tão perfeito que, em dezenas de milhares de fórmulas farmacêuticas, não haja um problema de fabrico, de distribuição ou de gestão de stocks, mas o que nos preocupa é o aumento do número de falhas". E tudo começa, precisamente, porque nas últimas décadas a Europa "deixou de apostar na produção, preferindo outros mercados que asseguravam qualidade e produção mais barata, como a Índia, em primeiro lugar, e depois a China. E agora está mais dependente de fenómenos como a pandemia, que fechou vários laboratórios durante muito tempo, devido aos confinamentos, na China, por exemplo, o que atrasava a produção".

A esta situação, poucos laboratórios a produzirem na Europa, veio juntar-se a guerra na Ucrânia e a inflação. "Há matérias-primas que eram produzidas no Leste e que deixaram de o ser, retardando a produção de medicamentos", diz o bastonário. "Por exemplo, o alumínio, que é fundamental para a indústria farmacêutica, porque se não houver alumínio não é possível fabricar os blisters para as embalagens, e só isto já não permite cumprir prazos de fabrico, o que está a resultar numa maior dificuldade em se ter acesso a medicamentos", regista.

Por outro lado, a inflação e o aumento do custo das matérias-primas também torna a produção dos medicamentos mais cara e coloca em risco alguns, que os laboratórios consideram "inviáveis economicamente". É o que está a acontecer nalguns mercados, nomeadamente no português. "Temos um sistema de controlo de preços de medicamentos que está construído para não os deixar aumentar, por princípio. Mas, no momento em que estamos, em que o aumento do custo na produção é significativo, pode haver medicamentos em que o preço em Portugal não compense e que a indústria possa retirar do mercado nacional".

Por isso mesmo, defende, que também para esta situação o Estado já deveria ter criado "um mecanismo legal que obrigasse as empresas a manter o medicamento no mercado, mesmo contra a sua vontade". Esta questão, diz Helder Mota Filipe, também se tem vindo a agravar, porque os laboratórios e os distribuidores acabam por vender estes medicamentos nos mercados em que são mais caros. "O facto de Portugal ser um país em que os medicamentos são mais baratos torna convidativo a que estes sejam vendidos para outros países, deixando o mercado nacional desabastecido, o que é um risco para a saúde pública", explica.

O farmacêutico, que já foi também presidente do Infarmed, assume ser contra "o aumento generalizado do preço dos medicamentos", mas considera que se deve olhar para os que se possam tornar inviáveis economicamente no mercado português. "Temos de ter mecanismos para que, nestes casos, se identifiquem as situações fundamentais e resolvê-las". Por fim, o bastonário diz que a Ordem que dirige tem vindo a alertar publicamente para esta situação e para a realidade das faltas que hoje se vive, assumindo que esta "é uma preocupação" e que ainda não viu que "esteja a ser feito algo para que depois não andemos a correr atrás do prejuízo".

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