Catalunha. "Somos como água e azeite." Veto a Illa abre a porta aos independentistas
A noite eleitoral na Catalunha culminou com duas maiorias possíveis: uma de esquerda e outra independentista. Contudo, apesar da vitória do socialista Salvador Illa, é a segunda a que está mais bem colocada para assumir o governo catalão. Tudo por causa da rejeição da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC), que obteve os mesmos 33 deputados mas uma menor percentagem de votos do que os socialistas, em fazer uma aliança com eles. "Somos como água e azeite", disse Pere Aragonès, cujo caminho para formar governo é mais fácil, mas também tem os seus riscos.
Apesar da rejeição da ERC, Illa mantém o desejo de negociar com todos os partidos. A exceção é a extrema-direita do Vox, que se estreia com 11 deputados na Catalunha, mais do que o Ciudadanos (que tinha ganho as eleições de 2017) e o Partido Popular em conjunto. "Sou o candidato que ganhou as eleições, vim para ficar, tenho o objetivo de me apresentar [à investidura] e vou fazê-lo", disse o ex-ministro da Saúde de Espanha. Uma coligação entre Partido Socialista Catalão (PSC), a ERC e o En Comú Podem, a marca do Podemos na região que elegeu oito deputados, daria uma maioria de 74 dos 135 lugares no Parlamento catalão.
A nível nacional, o líder dos socialistas e primeiro-ministro, Pedro Sánchez, deu a Illa luz verde para negociar uma investidura. Mas será o próximo ou a próxima presidente do Parlamento catalão a decidir quem chama para essa investidura. Illa disse ontem que esse cargo também deve ser ocupado por um socialista, como partido vencedor das eleições, mas esse cenário depende dos pactos que conseguir. Na conferência de imprensa após uma reunião da direção dos socialistas espanhóis, Illa nem quis falar da possibilidade da repetição da aliança entre ERC e Junts per Catalunya (JxCat), que atualmente lidera o governo catalão.
O cabeça-de-lista da ERC nem quer dar uma hipótese a Illa de ir a uma investidura e também já iniciou a sua ronda de contactos, para a formação de um executivo independentista, desta vez liderado pelo partido de esquerdas, que até agora era o sócio minoritário. No domingo, a formação de Aragonès conseguiu mais um deputado do que o JxCat.
Contudo, os últimos meses de governo conjunto deixaram bem vincadas as diferenças entre os dois partidos em relação à estratégia a seguir para alcançar a independência - a ERC quer dialogar com o Estado espanhol e ter um referendo legal, mas o JxCat do ex-líder da Generalitat Carles Puigdemont (no exílio) insiste na via unilateral e no choque com o governo espanhol. A negociação também não será fácil.
Pela primeira vez, os partidos independentistas superaram os 50% dos votos, nas eleições autonómicas que foram as menos participadas de sempre (só 53,54%), reunindo no total 74 dos 135 deputados. Mas Aragonès não quer a eventual aliança com o JxCat (juntos têm 65 deputados, a três da maioria) dependente apenas da Candidatura de Unidade Popular (CUP, antissistema), que mais do que duplicou o seu número de deputados de quatro para nove, procurando também ter o apoio do En Comú Podem.
A cabeça-de-lista do JxCat, Laura Borràs, rejeita esta ideia, lembrando que ter havido mais de 50% dos votos independentistas "tem de ter consequências". Para a ex-titular da pasta da Cultura no governo catalão, tal significa que não devem ser incluídas no diálogo formações políticas partidárias do direito a decidir, como é o caso do En Comú Podem. Ainda assim, o líder ERC, Oriol Junqueras, tal como Aragonès, defendeu na TV3 "um governo e uma maioria parlamentar que seja o mais ampla possível".
A animosidade do JxCat para com o En Comú Podem é recíproca, visto que estes também rejeitam uma aliança com o herdeiro da antiga Convergência Democrática da Catalunha (centro-direita), que durante anos governou a região com Jordi Pujol (acusado de vários escândalos de corrupção junto com a família). Ontem, o En Comú Podem pediu à ERC que seja "corajosa" e levante o veto imposto aos socialistas para permitir formar um governo de esquerda na Catalunha.
Os partidos não perderam tempo a negociar pactos de governo, mas o calendário oficial prevê um prazo de até 20 dias úteis para a investidura do novo Parlamento catalão. Cabe ao presidente interino da Generalitat, Pere Aragonès (após a destituição de Quim Torra, condenado por desobediência), estabelecer o prazo, sendo certo que tem até 12 de março para o fazer. No dia da primeira sessão do Parlamento, é eleito o ou a presidente e restantes membros da direção desta câmara, começando então a contar mais dez dias de prazo máximo para que ele ou ela proponha a investidura de um dos candidatos - o mais tardar a 26 de março.
O candidato proposto terá de vencer por maioria absoluta na primeira votação e, caso não o consiga, dois dias depois pode ser eleito por maioria simples. Se ainda assim não for eleito, começa a contar o prazo de dois meses para se encontrar um outro candidato, findo o qual seriam convocadas eleições antecipadas.
Um dia depois das eleições, a procuradoria espanhola resolveu recorrer da decisão que deixou em semiliberdade os nove dirigentes independentistas condenados pela realização do referendo ilegal de 1 de outubro de 2017 - só vão dormir ao centro penitenciário de segunda a quinta-feira, podendo passar os dias fora, assim como os fins de semana.
Este regime, que o Supremo Tribunal já havia rejeitado, foi dado pela Generalitat no início da campanha eleitoral, no final de janeiro. A procuradoria quer que seja de imediato suspenso, com os presos, entre eles o líder da ERC, Oriol Junqueras, a voltar à prisão.
Segundo os procuradores catalães, e tendo em conta que alguns dos condenados já manifestaram a sua vontade de "voltar a fazer o mesmo", a decisão do governo catalão de os colocar em semiliberdade não se prende com a sua reabilitação, mas tem diretamente "a ver com o objetivo de alterar a decisão condenatória da sentença e o seu cumprimento efetivo".
Oriel Junqueras, que como os outros presos defende uma amnistia, comentou a decisão no Twitter: "Querem ganhar nos tribunais aquilo que não ganharam nas urnas", escreveu. "Não vão conseguir, nunca iremos desistir. Trabalharemos sempre pela justiça social e pela independência", acrescentou.
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Salvador Illa: O candidato socialista, que há menos de dois meses entrou na corrida eleitoral, foi o vencedor em percentagem de votos. Mas é uma vitória com um gosto amargo para o ex-ministro da Saúde espanhol, diante da rejeição da Esquerda Republicana da Catalunha (ERC) em fazer uma aliança para governar na região.
Pere Aragonès: Na guerra entre os partidos independentistas, a ERC foi a grande vencedora da noite, acabando em segundo lugar, com o mesmo número de deputados que os socialistas, mas um à frente do Junts per Catalunya. Isso dará a Pere Aragonès a eventual liderança de um governo independentista.
Vox: A extrema-direita estreia-se no Parlamento catatão com 11 deputados, mais do que a soma de Ciudadanos e Partido Popular. Será a quarta força política na Catalunha, à frente do En Comú Podem (a marca do Podemos na região) e dos antissistema da Candidatura de Unidade Popular (CUP).
CUP: Os antissistema independentistas mais do que duplicaram os deputados e poderão mais uma vez ter algo a dizer na formação e governo. No passado, o seu veto fez cair, por exemplo, Artur Mas.
Junts per Catalunya: Tanto a cabeça de lista, Laura Borràs, como o ex-líder da Generalitat Carles Puigdemont (no exílio) focaram-se na vitória do independentismo, que obteve pela primeira vez mais de 50% dos votos na Catalunha. Tudo para esquecer que o partido não foi o mais votado dentro do bloco independentista (ao contrário do que vinha sendo habitual) e que fica relegado a número dois num eventual governo liderado pela ERC.
Ciudadanos: De ser o mais votado em 2017 e eleger 36 deputados, o partido não foi além dos seis depois das eleições de domingo. O descalabro a nível nacional após as eleições de 2019, que custou o cargo ao líder Albert Rivera, repetiu-se na Catalunha, mas Inés Arrimadas (que tinha conseguido o resultado histórico nas últimas eleições catalãs) rejeita para já a ideia de se demitir.
Partido Popular: O partido de Pablo Casado tem vindo a perder terreno na Catalunha há quase uma década e vê-se agora reduzido a três deputados, menos um do que os conquistados em dezembro de 2017. Além de não conseguir inverter a tendência de queda, o partido depara-se mais uma vez com o crescimento da extrema-direita do Vox e pode ter que repensar a mensagem a nível nacional. Casado já disse que não o fará.