A discussão pública das questões fraturantes (uso a expressão por comodidade; noutra oportunidade explicarei porque me parece equívoca) tende não só a ser apresentada como uma questão de progresso, como se de um lado estivesse o futuro e do outro o passado, mas também como uma questão de civilização, de ética, como se de um lado estivesse a razão e do outro a degenerescência, de tal forma que elas são analisadas quase em pacote, como se fosse inevitável ser a favor ou contra todas de uma vez. Nesse sentido, na discussão pública, elas aparecem como questões de fácil tomada de posição, por mais complexo que seja o assunto: em questões éticas, civilizacionais, quem pode ter dúvidas? Os termos dessa discussão vão ao ponto de se fazer juízos de valor sobre quem está do outro lado, ou sobre as pessoas com quem nos damos: como pode alguém dar-se com pessoas que não defendem aquilo, ou que estão contra isto? Isto vale para os dois lados e eu sou testemunha delas em várias ocasiões..Sempre me incomodou essa pressão pública, que antecede e sucede as discussões parlamentares, até porque ela não tem paralelo na sociedade. As pessoas não têm respostas imediatas para problemas complexos. Entre o preto e o branco há paletas de cinzento onde as pessoas se posicionam sem que isso signifique que estão do lado certo ou errado, sem que isso as classifique, rotule, condicione as suas vidas sociais..Penso sempre que as pessoas olham com estupefação para essas discussões, onde os dois lados ostentam certezas e se afastam dos consensos: quando o outro lado é degenerado, deixamos de o ouvir, não compactuamos. Nesse sentido apenas, que é para mim artificial porque meramente político, são questões fraturantes..Vem isto a propósito de um debate televisivo entre Inés Arrimadas, líder dos Ciudadanos na Catalunha, e Irene Montero, líder parlamentar do Podemos, em que a certa altura se fala de barrigas de aluguer. E Montero expõe a oposição do Podemos, dizendo que essa medida normalmente permite a exploração de mulheres pobres, mesmo quando se proíbe pagamentos. Arrimadas, pelo contrário, defende-a..Não me interessa discutir a questão nem o (des)acerto dos argumentos, mas trazer o caso do Podemos (podia escolher exemplos simétricos à direita, mas este é muito recente): um partido tido como progressista, que se associa com facilidade às questões fraturantes, que não está dependente dos valores católicos e que não quer impor um modelo de família, está frontalmente contra as barrigas de aluguer..E agora? Que classificação ética lhe atribuímos para desqualificar a sua posição? Que fazemos quando esses juízos éticos estão por natureza afastados? Agora, resta-nos ter uma discussão normal sobre uma medida, em vez de dividir o mundo em trincheiras éticas. Devia ser sempre assim. Advogado e vice-presidente do CDS.Advogado e vice-presidente do CDS