Exclusivo "Dizia-se que os portugueses enfraqueceram no Oriente porque o sangue se abastardou"

O investigador propõe uma história da expansão portuguesa pelo ângulo das comunidades mestiças. Sem apropriações nem lugar à propaganda, a qual diz estar ainda presente na educação.

Foram intérpretes, comerciantes, piratas, contrabandistas, governadores, às vezes tudo isto ao mesmo tempo, e muito mais. Da Guiné ao Extremo Oriente, comunidades com milhares de portugueses e seus descendentes prosperaram nas margens da expansão. São a tribo portuguesa identificada em Filhos da Terra pelo historiador António Manuel Hespanha.

O que desencadeou a sua demanda pelo império na sombra?
Na origem esteve um convite para escrever um artigo de homenagem a um amigo que se reformou, sobre administração do império português. Sobretudo pela administração informal. Comecei por sítios como Macau, que estão lá na extremidade e que não se percebe bem se se trata de portugueses ou não; ou o interior de África, zonas entre Angola e Moçambique que eram percorridas por caravanas, também de identidade difícil de apurar. Achei graça ao tema, continuei durante três anos e dei conta de comunidades mais longínquas como Macassar, nas Celebes, uma comunidade com milhares de portugueses, mas fora do império. No golfo de Bengala havia uma cidade, Chatigão, que chegou a ter 40 mil portugueses. Portugueses?... Na verdade, os estrangeiros que falam deles - utilizei muitas fontes de viajantes europeus - chamam-lhes portugueses pretos. Eles próprios não se designariam portugueses.

Mas noutros casos que relata ficavam ofendidos quando não eram chamados portugueses.
Depende das épocas. Por exemplo, os de Malaca, do bairro português. Quando a Malásia se tornou independente, começaram a sublinhar a característica de serem europeus, mas portugueses, não ingleses, os antigos colonos. Mais tarde assumiram-se como uma cultura malaia. Está a ver o carácter camaleónico desta comunidade portuguesa. Depois veio o turismo e descobriu-se que resultava ter restaurantes com nomes portugueses e onde se cantavam coisas portuguesas. Neste caso, sabe-se que as canções foram inventadas nessa altura. Um ministro do Ultramar passou por lá e quiseram oferecer-lhe uma receção com cantares portugueses. Tinham umas melodias com toadas estranhas, pouco locais. Mas não sabiam as letras. Então, pegaram num livro de poesia portuguesa e aplicaram-nas naquelas melodias estranhas. E os trajos passaram a usar coisas inspiradas nos mais garridos, os do Minho e da Madeira. Isso também se passou com a música portuguesa de Goa.

O que mais o surpreendeu?
O tamanho e importância de comunidades como Macassar ou Ugulim, que eram enormes. Ou mesmo na América do Sul, em Potosí, onde havia ruas com nomes portugueses. Por outro lado, surpreendeu-me a centralidade destas comunidades, pelo menos na vida marítima do Índico e do mar da China. Têm laços entre eles, correspondem-se uns com os outros e estão por todo o lado - em Java, na Tailândia ou em Bengala. No fundo, sustentam o comércio transcontinental. As redes de negócio são complementares desse grande comércio transatlântico. Os navios que chegam a Java, a Goa ou a Malaca precisam de rotas mais pequenas, geridas localmente, para trazerem produtos para os entrepostos de onde vinham para a Europa.

Ao ler este livro vem à cabeça Olha o Fado, de Fausto: "Nós somos leões/ Dos lobos dos mares/ E na verdade o que vos dói/ É que não queremos ser heróis."
Todo esse trabalho do Fausto é baseado na Peregrinação de Fernão Mendes Pinto, que tem muito dessa cena do herói que é ao mesmo tempo vilão. De coisas autênticas de que falo neste livro. Por exemplo, o capitão, soldado e pirata Filipe de Brito de Nicote, um aventureiro, quase um louco, com ambições de constituir um reino. Intrigava com Goa e Lisboa, mas também com os reis locais. Meteu-se em tantas complicações que acabou morto, ele e a mulher. Diogo Soares, o Galego, referido por Mendes Pinto e cantado por Fausto, é ao mesmo tempo herói e pirata, amado e odiado, sempre em jogos dúbios e pouco edificantes, agente da coroa portuguesa, mas valido ou súbdito dos reis locais. Há uma série de carreiras, quase sempre pouco apresentáveis, que contribuem para o caráter misto, indeciso, partilhado, camaleónico, destas identidades que simplificadamente dizemos ser de portugueses.

E no fundo o que acabou de dizer resume um pouco a sua investigação, é uma pluralidade difícil de sistematizar.
E difícil de encontrar. Na literatura oficial, nas crónicas, com exceção do Gaspar Correia, das Lendas da Índia, pouco os encontra. Porque esta gente não era muito recomendável, não eram portugueses alvos da metrópole, tinham-se casado ou amigado com mulheres nativas, às vezes fugiam de Goa para não serem controlados, outras apareciam a lutar contra as forças portuguesas. Era gente não apresentável no palco da grande história. São os holandeses, a quem servem como pilotos, como guias, como comerciantes, como tropa, quem mais fala deles.

Estas comunidades são originadas pelo "desejo tropical" e da mestiçagem que daí advém. Mas não é um exclusivo português.
Por exemplo, em Cabo Verde há muitos mestiços de olhos claros e nomes de origem holandesa. Na altura não era uma coisa simpática. Havia quem dissesse que a causa do enfraquecimento dos portugueses no Oriente é que o sangue se abastardou. Mas não eram só os portugueses que achavam isso.

Como é que o império formal conviveu com estes grupos?
Diversamente, conforme as épocas. Houve projetos para integrar esta gente no império. Mas não eram realistas, justamente porque esta gente não queria ser integrada. Queriam manter livres os seus negócios. E, na guerra, apareciam muitas vezes do outro lado, ainda que as vozes de comando fossem portugueses e se lançassem na batalha gritando "viva el-rei de Portugal!".

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