Ventos e casamentos do sistema partidário espanhol

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Nos últimos cinco anos o panorama político espanhol alterou-se profundamente, fazendo dele uma espécie de súmula dos movimentos de transformação política que ocorrem no mundo ocidental. Olhar para Espanha é um exercício relevante para entender o que pode suceder aqui.

O fim do bipartidarismo

Quando, em 2011, o PP ganhou as eleições, tudo estava em ordem. Desde 1996 que os espanhóis viviam em alternância. Era agora a vez do PP. O que Rajoy não sabia é que o bipartidarismo morria: em 2015, o PP perdeu a maioria, o PSOE perdeu votos, e irromperam o Podemos e o Ciudadanos.

O desarranjo foi tal que ninguém se entendeu. As eleições repetiram-se: o PP pouco cresceu, o Podemos não superou o PSOE, o Ciudadanos desceu e o PSOE teve o seu pior resultado; o bipartidarismo, esse, não regressou. Rajoy lá formou um governo que, pouco depois, caiu numa moção de censura. Agora, sem eleições, o PSOE governa de forma ainda mais minoritária.

Quando se tornou evidente que o sistema tinha quatro partidos nacionais, as eleições andaluzas revelaram a irrupção de um antes moribundo Vox, um partido que apela a temas rotulados como de extrema-direita, e que as sondagens já veem no Parlamento nacional. Passarão a ser cinco?

Como é que em poucos anos tudo mudou? Penso que há quatro fatores que ajudam a explicar esta transformação.

A crise de 2008

Fundado a partir do movimento dos indignados (que liderou as manifestações contra os efeitos da crise), o Podemos concorreu às europeias de 2014 e teve 8%. Em 2015, nas legislativas, teve 20%.

Nunca a esquerda anticapitalista, antissistema, adepta da democracia direta, tinha tido tanto voto. Mas enquanto o PSOE era a cara da crise e o PP aplicava a austeridade, Iglesias tinha tudo a favor: outsider, fora de casos de corrupção, podia prometer, dominava as redes sociais e não saía da televisão.

Era o tempo em que o Podemos sonhava com o sorpasso. Parecia imparável. E é normal. Em tempos de crise, de desespero, não é possível exigir às pessoas que não cedam a discursos fáceis: as pessoas querem autenticidade e política - o economês deixa de relevar e as caras antigas soam a passado.

Entretanto, o Podemos foi perdendo votos e vigor à medida que se foi revelando. O seu n.º 3 empregava precários, o seu n.º 2 recebia dinheiro da Venezuela, e Iglesias comprou casa de milionário, exigiu a tutela dos serviços secretos e ainda nesta semana pediu desculpa por coisas que disse há anos. O Podemos continua relevantíssimo, mas ninguém o imagina imparável.

Não colhe a tese de que temos de nos converter ao populismo para ganhar. O maior inimigo do populismo é o tempo. Mas não podemos confiar apenas no tempo ou achar que o populismo surge inevitável em determinados contextos: o populismo tem de ser combatido diariamente. Porque o Podemos esteve quase lá.

Uma corrupção entranhada

Nem PSOE nem PP têm bom registo em matéria de corrupção. Mas durante a governação de Rajoy a sucessão de casos envolvendo o PP foi tal que o partido passou mais tempo a explicar-se do que a apresentar os resultados da economia.

Foi um vendaval. O filão era bom demais. A cada caso, lá vinham Iglesias e Rivera falar de ética, apresentando o seu bom cadastro. O PSOE bem tentou, mas tanto vidro no telhado não ajudou.

A corrupção entranhada, sistémica, é hoje mortal: expulsa os eleitores, empurrando-os para quem souber assumir a renovação, independentemente das suas ideias. Já não dá para esperar que passe. Tem de se agir depressa, e isso nem sempre é fácil, até perante o risco de judicialização da política.

Um sistema político, por mais estável que seja, pode hoje ser transformado de alto a baixo por causa de um caso de corrupção. Uma má decisão judicial, uma errada avaliação administrativa, um qualquer caso que há anos passaria incólume, podem ser o gatilho de um movimento imparável, agregando o descontentamento. É bom que se tenha noção disso.

Em 2011, o PP parecia destinado a governar oito anos sem problemas. Hoje, todas as figuras de 2011 estão na sombra. Uns presos, outros demitidos, outros no meio de escândalos. E nenhum partido é imune a casos destes - a diferença está na forma como se reage a eles.

A reação ao independentismo

O Ciudadanos nasceu na Catalunha em 2006, com um discurso contra o independentismo tão vigoroso que dirigentes nacionais do PP o elogiavam. Conseguiram dar o salto nacional em 2015, quando a questão catalã se tornou nacional graças às ameaças do governo autónomo, que preparava aventuras referendárias e provocações várias, muitas xenófobas.

Para a maioria dos espanhóis, que é soberanista, o independentismo é uma ameaça ao seu mundo, ao seu modo de vida. A tibieza de Rajoy a lidar com os independentistas e de Sánchez a demarcar-se deles tornaram o Ciudadanos uma opção: ganhou as eleições na Catalunha e foi, além do soberanista Vox, o único a crescer na Andaluzia; a nível nacional, ficaram em quarto, atrás do Podemos, mas as sondagens mostram-no a crescer consistentemente. O tempo é um bom aliado.

Rivera nunca precisou de ser extremista, o que é resposta aos que dizem que só os extremismos podem crescer. E percebeu que em questões políticas - o independentismo e a corrupção - as pessoas querem respostas políticas. Os bons resultados da governação não chegam para animar. É aliás visível que o novo líder do PP já percebeu isso, e ainda bem.

Do que as pessoas precisam, num momento em que o seu mundo é colocado em causa, é de assertividade e de liderança política, e para isso não é preciso lunatismo. Mudança sensata era um dos slogans de Rivera. Não se deu mal com a afirmação da sensatez.

A indignação com a influência dos radicais

O atual governo do PSOE converteu-se numa normalização de partidos pró-ETA, de independentistas e de extrema-esquerda. Têm hoje um papel político e mediático mais central do que nunca. É impossível não esperar indignação, uma contrarresposta, não só dos moderados mas também de outros radicais que, nessa normalização, encontram legitimidade.

Essa normalização começou antes de Sánchez. O Podemos conseguiu um relevo mediático ímpar desde a fundação, passeando-se pelo espaço público com uma superioridade moral inaceitável num simpatizante de ditaduras e ternurento com terroristas.

O PSOE não soube o que fazer, temendo a pasokização: aproximar-se podia ser fatal, distanciar-se podia ser amuo. O PP ignorou-lhes o magnetismo, confiando que os resultados da economia bastavam. Deixaram-no a sós na arena. Foi um erro colossal.

Por um lado, porque foi enganando muita gente, com o jeito manso que esconde o fanatismo. Por outro, porque o eleitorado moderado, atacado, acusado, caricaturado, por um Iglesias cada vez mais cheio de si e ofensivo, sentiu-se órfão.

E quando os moderados se sentem órfãos, quando os seus partidos parecem não reagir, podem bem encontrar espaço noutros radicais. A relativização de um extremo é um erro que se paga caro, uma espécie de convite ao extremo oposto. A irrupção do Vox explica-se assim. E, sem o Ciudadanos, o Vox, que já existia, teria irrompido mais cedo.

Portugal

Não podemos extrapolar estes fatores diretamente para Portugal, mas eles podem ajudar a detetar tensões e movimentações, assim como podem servir de aviso ou guia de reação.

Não penso que estejamos imunes a fenómenos destes. Há populismo de esquerda em Portugal, tão aceite e entranhado que há quem só esteja à espera de um gatilho para reagir. Mas sobre Portugal terei tempo de escrever noutra oportunidade.

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