No verão da minha infância havia um rio. Um rio onde tomávamos banho e andávamos de barco a remos. Era o Tejo, que passava mesmo ao pé do Tramagal, onde a minha avó vivia e a família se reunia todos os anos nas férias grandes..Íamos de comboio, partíamos da estação de Santa Apolónia, onde era tradição comprar jornais e revistas para a viagem, no meu caso um almanaque da Disney que durasse para ler nas férias. O momento em que víamos o castelo de Almourol no meio do rio era sempre o sinal de que estávamos a chegar e dali eu antecipava logo os banhos e os piqueniques que haveríamos de ter um pouco mais acima por agosto fora..Era o rio da minha aldeia do verão e era o Tejo da minha cidade de Lisboa. E, ao contrário do poema de Alberto Caeiro - "O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia" -, os dois eram um só rio. Muitos anos passaram, muitas águas passaram, depois desses anos da infância e da primeira adolescência. Os avós morreram, os pais morreram, a casa foi vendida e nunca mais lá voltei..Só passei por lá no verão passado, fiz um pequeno desvio numa viagem para outro destino e errei de carro um caminho que antes sabia de cor de comboio. A casa da minha avó ali estava, agora habitada por outras pessoas, mas o campo aberto que dela se via é hoje uma sucessão desarmoniosa de pequenas ruas de casas indistintas. Do pequeno pomar nada resta e em vez de caminhos orlados por amoreiras há muros de cimento a delimitar pátios com carros estacionados. A estrada para a estação continua igual, mas a estação parece abandonada. Não há nem eco de partidas ou chegadas..O rio estava sequíssimo e dava a impressão de que há muito tempo ninguém ali tomava banho ou passeava de barco a remos..À volta, uns armazéns de estruturas industriais, estradas de acesso para camiões. Calor e pó..Não parecia campo, antes um arrabalde, um subúrbio longe de cidade alguma..Sempre que me lembro da minha infância e princípio de adolescência no Tramagal lembro-me da poesia de Eugénio de Andrade, que li um pouco mais tarde. Era uma poesia que evocava um campo idílico e erotizado, em que a imagem da sede era metáfora do desejo e onde a água era um tópos permanente: "Coração da água", "véspera da água"... "Fonte pura... assim queria /que fosse meu coração: /fluir na noite e no dia /sem se desprender do chão" (lia-se num dos Primeiros Poemas). O seu último livro intitula-se Os Sulcos da Sede e abre com uma citação de Villon: "Morro perto da fonte à míngua de água.".É um livro de despedida. Tem um poema, Todas as Águas, que abre com os versos: Água, água. /Porosas águas da alegria". E outro que fala do Tejo: "Um barco atravessa o Tejo. /Vem da infância. Não sei para onde vai.".Releio a poesia de Eugénio Andrade, regresso a ela como quem regressa à margem do rio da adolescência, a uma estação de comboios abandonada..Hoje quem se banha nesta poesia? Quem nela vem saciar a sua sede da leitura do mundo?.Como a poesia, a água é um bem escasso. Já hoje é e no futuro poderá tornar-se um bem cada vez mais escasso e precioso..Paradoxalmente, cada vez mais também, há o risco das cidades costeiras serem inundadas ou mesmo submersas pela subida dos oceanos..No futuro próximo poderemos viver em terras desertificadas, quase sem água para beber, que podem ser cidades inundadas de água salgada..Há um verso de uma canção de Djavan que exprime com uma ferida exatidão essa constatação paradoxal: "Sabe lá /O que é morrer de sede em frente ao mar/ sabe lá." Em Veneza, a mais onírica das cidades do planeta, o nível das águas ameaça cada vez mais a sua arquitetura flutuante. Acqua Alta é o nome que se dá às cada vez mais frequentes subidas das águas e consequentes inundações..(Outra é a ameaça do turismo, que a transforma num parque temático invadido por multidões de turistas durante o dia; mas não durante a noite, quando Veneza preserva ainda o seu mistério)..Será que o destino de Veneza é ser uma cidade submersa?."Veneza - Que música serias /se não fosses água?"(ainda Eugénio de Andrade)..Tal como Veneza, também Lisboa pode ser uma das futuras cidades submersas do planeta..Here Comes the Flood, cantava Peter Gabriel, concluindo com o verso: "Drink up, dreamers, you"re running dry" (Bebam, sonhadores, estão a ficar secos). Há uma canção maravilhosa de Chico Buarque, Futuros Amantes, onde ele canta que o Rio (de Janeiro) um dia será uma cidade submersa que os escafandristas virão explorar. E que "Sábios em vão /tentarão decifrar /O eco de antigas palavras /Fragmentos de cartas, poemas/ Mentiras, retratos /Vestígios de estranha civilização". Uma canção sobre o amor que ficou por fazer, como uma cidade interrompida, que ficou por acontecer, submersa..Onde, muitos anos depois, os escafandristas do futuro mergulharão para encontrar traços da nossa civilização, que não serão capazes de decifrar..Como connosco acontece com a poesia. E com o amor.
No verão da minha infância havia um rio. Um rio onde tomávamos banho e andávamos de barco a remos. Era o Tejo, que passava mesmo ao pé do Tramagal, onde a minha avó vivia e a família se reunia todos os anos nas férias grandes..Íamos de comboio, partíamos da estação de Santa Apolónia, onde era tradição comprar jornais e revistas para a viagem, no meu caso um almanaque da Disney que durasse para ler nas férias. O momento em que víamos o castelo de Almourol no meio do rio era sempre o sinal de que estávamos a chegar e dali eu antecipava logo os banhos e os piqueniques que haveríamos de ter um pouco mais acima por agosto fora..Era o rio da minha aldeia do verão e era o Tejo da minha cidade de Lisboa. E, ao contrário do poema de Alberto Caeiro - "O Tejo é mais belo que o rio da minha aldeia, / Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia / porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia" -, os dois eram um só rio. Muitos anos passaram, muitas águas passaram, depois desses anos da infância e da primeira adolescência. Os avós morreram, os pais morreram, a casa foi vendida e nunca mais lá voltei..Só passei por lá no verão passado, fiz um pequeno desvio numa viagem para outro destino e errei de carro um caminho que antes sabia de cor de comboio. A casa da minha avó ali estava, agora habitada por outras pessoas, mas o campo aberto que dela se via é hoje uma sucessão desarmoniosa de pequenas ruas de casas indistintas. Do pequeno pomar nada resta e em vez de caminhos orlados por amoreiras há muros de cimento a delimitar pátios com carros estacionados. A estrada para a estação continua igual, mas a estação parece abandonada. Não há nem eco de partidas ou chegadas..O rio estava sequíssimo e dava a impressão de que há muito tempo ninguém ali tomava banho ou passeava de barco a remos..À volta, uns armazéns de estruturas industriais, estradas de acesso para camiões. Calor e pó..Não parecia campo, antes um arrabalde, um subúrbio longe de cidade alguma..Sempre que me lembro da minha infância e princípio de adolescência no Tramagal lembro-me da poesia de Eugénio de Andrade, que li um pouco mais tarde. Era uma poesia que evocava um campo idílico e erotizado, em que a imagem da sede era metáfora do desejo e onde a água era um tópos permanente: "Coração da água", "véspera da água"... "Fonte pura... assim queria /que fosse meu coração: /fluir na noite e no dia /sem se desprender do chão" (lia-se num dos Primeiros Poemas). O seu último livro intitula-se Os Sulcos da Sede e abre com uma citação de Villon: "Morro perto da fonte à míngua de água.".É um livro de despedida. Tem um poema, Todas as Águas, que abre com os versos: Água, água. /Porosas águas da alegria". E outro que fala do Tejo: "Um barco atravessa o Tejo. /Vem da infância. Não sei para onde vai.".Releio a poesia de Eugénio Andrade, regresso a ela como quem regressa à margem do rio da adolescência, a uma estação de comboios abandonada..Hoje quem se banha nesta poesia? Quem nela vem saciar a sua sede da leitura do mundo?.Como a poesia, a água é um bem escasso. Já hoje é e no futuro poderá tornar-se um bem cada vez mais escasso e precioso..Paradoxalmente, cada vez mais também, há o risco das cidades costeiras serem inundadas ou mesmo submersas pela subida dos oceanos..No futuro próximo poderemos viver em terras desertificadas, quase sem água para beber, que podem ser cidades inundadas de água salgada..Há um verso de uma canção de Djavan que exprime com uma ferida exatidão essa constatação paradoxal: "Sabe lá /O que é morrer de sede em frente ao mar/ sabe lá." Em Veneza, a mais onírica das cidades do planeta, o nível das águas ameaça cada vez mais a sua arquitetura flutuante. Acqua Alta é o nome que se dá às cada vez mais frequentes subidas das águas e consequentes inundações..(Outra é a ameaça do turismo, que a transforma num parque temático invadido por multidões de turistas durante o dia; mas não durante a noite, quando Veneza preserva ainda o seu mistério)..Será que o destino de Veneza é ser uma cidade submersa?."Veneza - Que música serias /se não fosses água?"(ainda Eugénio de Andrade)..Tal como Veneza, também Lisboa pode ser uma das futuras cidades submersas do planeta..Here Comes the Flood, cantava Peter Gabriel, concluindo com o verso: "Drink up, dreamers, you"re running dry" (Bebam, sonhadores, estão a ficar secos). Há uma canção maravilhosa de Chico Buarque, Futuros Amantes, onde ele canta que o Rio (de Janeiro) um dia será uma cidade submersa que os escafandristas virão explorar. E que "Sábios em vão /tentarão decifrar /O eco de antigas palavras /Fragmentos de cartas, poemas/ Mentiras, retratos /Vestígios de estranha civilização". Uma canção sobre o amor que ficou por fazer, como uma cidade interrompida, que ficou por acontecer, submersa..Onde, muitos anos depois, os escafandristas do futuro mergulharão para encontrar traços da nossa civilização, que não serão capazes de decifrar..Como connosco acontece com a poesia. E com o amor.