No dia 26 de Setembro de 1920, José António Marques levantou-se da cama às 14 horas e 28 minutos. Sabemo-lo com esse grau de exactidão porque José António Marques manteve um registo minucioso, nas raias do obsessivo, de todos os acontecimentos da sua existência, passada no Barreiro entre 1900 e 1993. José António começou a escrever um diário aos 15 anos e, salvo alguns hiatos, só parou em 1988. Não é difícil perceber o extraordinário valor histórico e documental desta empresa privada, íntima e ínfima, que o autor nunca pensou dar à estampa mas que a Câmara Municipal do Barreiro e a freguesia de Santo André em boa hora decidiram publicar. O diário relativo ao ano de 1920, meticulosamente organizado por Rosalina Carmona, viu a luz não há muito, e tomara que se editem mais volumes desta obra preciosa, tão comovente..O autor nasceu no 1.º de Maio do ano de 1900, no primeiro andar de um prédio sito na Praça de Santa Cruz (hoje Praça da República), onde seu pai tinha uma pequena loja no rés-do-chão. Manuel Joaquim Roque, assim se chamava o progenitor, fora criança resgatada da Roda de Lisboa por um casal de moleiros; e a mãe, Silvéria Rita, era de famílias camarras. Tiveram ambos seis filhos, todos legítimos, um dos quais José António, que fez os estudos primários na Escola Conde Ferreira. Pensa-se que daí não passou: muito novo, já trabalhava para um empreiteiro barreirense de nome Jordão e aos 18 anos entrou para as Oficinas Gerais da CP com a categoria de limpador, no serviço de Material e Tracção que ficava na Rotunda das Locomotivas. Sem falhas nem sobressaltos, José António Marques teve uma espantosa consistência de vida: ao longo de décadas, a mesma profissão (ferroviário), a mesma terra (Barreiro), a mesma mulher (Maria da Graça Maurício), tudo registado e apontado num diário de 41 cadernos doados à edilidade, que com inteira justiça o distinguiu com o galardão «Barreiro Reconhecido» e deu o seu nome à rua onde morava..O ano de 1920 foi marcado por um grande acontecimento, a mais prolongada greve ferroviária registada no Barreiro, que durante 70 dias paralisou os comboios do Sul e lançou o caos sobre as ligações fluviais a Lisboa. O governo da República fez avançar a tropa, houve violências e lutas, muitos plenários operários, alguns dos quais clandestinos. "Perdemos pelo motivo de fome em diversos lares", anotou José António a 9 de Dezembro, no rescaldo da derrota..O interesse do diário, porém, ultrapassa em muito a narrativa dos factos grevistas de Setembro-Dezembro de 1920 e pode mesmo dizer-se que o essencial da obra está noutros lugares, porventura menos perceptíveis. Está, por exemplo, no levantamento exaustivo de um quotidiano perpassado de crimes de sangue e agressões constantes. Logo no início do ano, a 5 de Janeiro: "apareceu morto na praia o António Salvador Carneiro na Quinta dos Arcos, com os olhos e todo esfaqueado". Dois dias depois: "o filho do Capitão do Posto matou com um pontapé um padeiro da padaria do Ramos da Rua Miguel Pais". A 10 de Janeiro é preso o carpinteiro Manuel Cristo por ter agredido com violência o servente Palaio. Três dias depois, "o marinheiro dos CFSS, o Bárbara, apanhou uma célebre tareia do Manuel Tamanqueira, ficou em perigo de vida". A 15 desse mês, "grande discussão entre a mulher do Banhas e outras na Rua Marquês de Pombal, junto ao Barbeiro Ventura" e, no dia 17, dá-se a prisão do Delícias e do irmão do Teodoro Caria, maquinista. Em Fevereiro, junto da Leitaria Alves, foi preso o filho do Manga Lavada e uma mulher foi detida pela GNR na casa da Maria Batata. Os incidentes prosseguem pelo ano dentro: em Março, o Francisco Soeiro teve uma grande desordem com o Manuel Frade "por motivo de dizer o calão moderno" e o filho do Freitas foi preso "por motivo de tratar mal uma rapariga de 16 anos que trouxe de Lisboa para a Hospedaria do Lopes"..Pouco depois, uma grande discussão perto do Largo do Casal entre o Neves e um carpinteiro chamado Galhos "Cão", com este a pegar num formão para agredir o primeiro. Em Maio, foram presos 22 rapazes por chamarem nomes ao Alexandre Maluco e, no mês seguinte, violenta refrega entre o José Luiz e um fragateiro, com aquele a ficar gravemente ferido com uma facada e um tiro. Em meados de Agosto, para acalmar a zaragata num arraial, a GNR deu uma espadeirada na cabeça do Miguel Paiva e prendeu-o, e a 31 desse mês, numa brincadeira com o Meia-Lapa, o Marques deu-lhe uma facada que lhe furou os pulmões e o Meia-Lapa teve de ser evacuado para um hospital de Lisboa a bordo de um rebocador. Nesse mesmo dia, desacatos na Sociedade Estrela Moitense, e em Novembro "foi preso o filho do Brito já falecido por motivo de umas mantas de militares". Nas fomes do final de 1920, novas convulsões: a 4 de Novembro, "na bicha do pão do Sidónio nos Paços do Concelho tiveram que tirar duas crianças quase mortas", e a 30 desse mês três desconhecidos deram uma tareia no inspector Carvalho, que ficou estendido numa valeta. O ano não terminaria sem que o filho do Leonardo desse duas facadas no Augusto Mata-Gatos; não muito depois, desordem grande na Rua Miguel Pais, também com facadas, tendo ficado muito feridos o Manuel Morais e o filho do Pouca-Roupa. Surge ainda em cena um desconhecido que sovou a mulher em público, na Leitaria do Alves, causando enorme alarido: "não se percebia ninguém, era bater e discussões à doida"..Ao lado da violência física, mas em estreita comunhão com ela, dramas íntimos, tragédias pessoais como a de uma rapariga de nome Saltina Torcato que casou num dia e foi mãe no dia seguinte ou, pior ainda, a de Maria Luiza Ferreira, que deu à luz um rapaz e faleceu meia hora depois. Ou a da mulher do Miguel Sapateiro, posta fora de casa pelo marido, no mesmo dia em que a mulher do António Cortador fugiu do lar com as duas filhas. Ou a de um servente, filho do Cantante, que se suicidou com um tiro nas instalações das Oficinas Gerais, havendo notícia de outro suicídio, o do Dias, na Fábrica Social. Em 23 de Agosto, "foram ao banho dois miúdos junto ao moinho gigante morreu um deles com 7 anos, filho do Mata-Gatos". A meio de Dezembro faleceram o filho mais velho da Cristina e o Alfredo Machadinho, ambos tuberculosos. De permeio, acidentes de trabalho, muitos e muito graves: "caiu de uma prancha o José Gonçalves, mano do padre Matos" (24 de Março); "aleijou-se na Rotunda o Manuel Valentim de Alhos Vedros, ficando em estado grave" (28 de Março); "no Seixal houve um grande desastre, morreram 8 dos ditos operários" (5 de Abril); "ficou sem uma das mãos um operário" (13 de Maio); "o revisor Augusto Duarte tirou entre os escombros o guarda-freio Alexandre Lourenço Gonçalves, este já morto" (27 de Julho); "aleijou nas Oficinas Gerais o aprendiz de serralheiro Manuel Hartley" (1 de Outubro).Note-se que esta não era sequer a vida dos mais pobres ou dos excluídos. No diário de José António Marques, esses só surgem fugazmente, como espectros distantes. Fala-se de uma "mulherzinha que andava à esmola e era do Lavradio" e que foi mortalmente colhida por um comboio. Surge também um rapaz muito jovem, encontrado nu no areal de uma praia, vindo não se sabe de onde, e aparece "uma preta com nome Madalena muito embriagada", alvo de troça de José António e dos seus amigos, que igualmente gozaram com os dois homossexuais da terra, os "rotos" Esperança e Raposo..Para usar o título de um livro de Pasolini, era uma vida violenta a que se vivia no Barreiro de 1920. Compreende-se assim a importância crucial que os laços familiares e as redes de sociabilidades desempenhavam na existência daquela gente, não sendo ao acaso que José António refere amiúde a companhia quase diária do irmão mais velho, as frequentes doenças da sua mãe, as brincadeiras de rapazes com a "claque" da sua criação, os bailaricos nas sociedades recreativas - a Instrução e a Democrática - e os festejos dos santos populares, ao som aceso das filarmónicas. "Falei com a rapariga", é uma expressão recorrente no diário íntimo de José António Marques, usada para anotar os encontros ao final da tarde com a sua futura mulher, com quem namorou longos anos. Para os homens, arranjar emprego certo, casar e constituir família era o cumprimento de um destino inquestionado mas também uma garantia de estabilidade e segurança num ambiente adverso e hostil, em que a possibilidade de resvalar na desgraça estava bem presente, e era sentida a toda a hora..Espantamo-nos, por isso, com a inocência que, naquela atmosfera agreste, José António e os seus amigos foram capazes de preservar. Aqueles rapazes, já homens feitos, divertiam-se a armar aos pássaros nas hortas dos arredores da vila, a matar gatos vadios, a furtar paus de estender a roupa, a tirar as torcidas aos candeeiros públicos ou a dormir ao relento nas noites de festa ("o nosso hotel foi as estrelas nas cadeiras do arraial"), não havendo notícia de transgressões mais graves do que essas (o diário anota ainda a ida a um prostíbulo de Lisboa, no Bairro Alto, em que o contacto carnal com uma Ermelinda custou 1$50 às poupanças de José António)..Os jornais de há pouco deram notícia de um homem de 31 anos que na última década abusou e molestou sexualmente, atacou e agrediu dezenas de mulheres na margem sul do Tejo. Foram feitas cerca de 60 queixas contra ele, a quem chamam "monstro do Barreiro". Entre os casos reportados às autoridades, há raparigas perseguidas até casa e agredidas, aliciamento de menores pela Internet e tentativas de violação em locais públicos. Estranha a imprensa que continue em liberdade. No Barreiro de José António, havia fome e miséria, mais do que hoje, havia facadas e coisas más - mas não havia disto.