Isabel Nery: "Em novembro de 1975 estávamos numa clara situação de pré-guerra civil"
Como surge a decisão de escrever este livro?
É, no fundo, um encadeamento do anterior (Os Cinco Homens que Mudaram Portugal). Estava a fazer a pesquisa para esse livro, que trata a transição para a democracia. E o mês de novembro foi, obviamente, muito importante por causa do 25 de novembro. Mas não só. Não há dia nenhum em que não haja alguma coisa. Na altura, havia manchetes todos os dias, com assuntos novos. A política era claramente o tema importante. Nessa investigação, quis ir mais fundo na questão da Constituinte, porque era a Assembleia. Mas, por outro lado, também aprofundar a questão do cerco. Já tinha tido alguma curiosidade sobre isso quando fiz a biografia da Sophia de Mello Breyner. Claro que não foi pensado assim, mas este livro em concreto é quase um epílogo. Óbvio que podemos dizer que Sophia não tem nada a ver com estes dois, mas acaba por ter. Como aprofundei o máximo que pude o papel político da Sophia na nossa democracia e a importância que teve, pesquisei sobre isso e descobri que ela tinha sido uma das reféns do cerco. E achei isso absolutamente fascinante. Dediquei um capítulo do livro da Sophia a esse episódio. Claro que o livro era sobre ela e não fazia sentido estar ali a desenvolver. Depois aconteceu-me um pouco o mesmo com Os Cinco Homens. O assunto era importante, mas também não era o central. E durante essa investigação, quando já estava a começar a escrever este livro, surge-me finalmente a pessoa que tinha pilotado o helicóptero [escolhido para levar comida aos deputados da Constituinte]. Era algo que não estava em lugar nenhum, em jornal nenhum. O Diário de Lisboa tem imagens do helicóptero, mas nunca diz quem o pilotava. Esse aspeto nunca tinha sido tratado quer por jornalistas, quer por historiadores. Isso é interessante, porque não é fácil darmos novidades ao fim deste tempo todo. Em resumo: estava a começar Os Cinco Homens quando me deparei com a história, eu e o editor achámos que o assunto merecia um livro à parte. Precisamente, porque, por um lado, tínhamos aqui notícia do ponto de vista jornalístico, mas também histórico. Há aqui um testemunho que nunca tinha sido recolhido. Vale a pena destacá-lo, porque entendemos que merecia ser detalhado, de forma mais minuciosa.
Podemos então dizer, com as devidas diferenças, que este episódio foi a nossa invasão ao Capitólio?
É uma situação semelhante na ideia de sequestrar o poder, como aconteceu quer nos Estados Unidos quer no Brasil. As razões são diferentes, mas a base, o modus operandi, é semelhante. Se aquilo que aconteceu em Portugal fosse agora, o paralelo era evidente. Depois há todas as razões e contextos específicos, e até as consequências são muito diferentes. No fundo, o cenário e a ideia de contestar o poder de uma forma quase totalitária - não é o poder a ser quase totalitário, é a contestação -, porque impede movimentos, saídas e entradas, sequestra deputados e um presidente da Assembleia, ministros... Nesse aspeto até é mais chocante do que o Capitólio ou o Planalto, no Brasil. É evidente que tem o seu simbolismo, porque no fundo estamos a falar do edifício dos poderes. Mas no caso português foram os próprios protagonistas que ficaram reféns. Há aí, de facto, um paralelo.
Durante o cerco, não houve quase entrada e saída de pessoas e alimentos, correto? Como se dá, então, a trégua ao final das 36 horas?
Há alguns detalhes que devem ser abordados, para sermos exatos. Os deputados do PCP, da UDP e do MDP podiam entrar e sair. Os que não podiam eram aqueles que constituíam a maioria, ou seja, PS, PSD e CDS. Esse ato de fazer os deputados reféns tinha, de facto, várias alas, se quisermos simplificar, apesar de ser difícil fazê-lo. E os jornalistas também podiam, garantindo a comunicação. No fundo, não há bem uma trégua, mas sim uma cedência total da parte do Governo, que aceita dar aumentos salariais nunca vistos aos trabalhadores da construção civil. E é importante dizer que há outras coisas. Tudo o que saía nos jornais era um bocadinho extremado: [escrevia-se que] os trabalhadores têm toda a razão e que a invasão do Parlamento era justificável por terem razão do ponto de vista das suas reivindicações laborais. O que é, evidentemente, inaceitável é que usem isso para fazer um protesto tão extremado. Nem muitos dos que apoiavam a reivindicação apoiaram, depois, essa atitude. O que está na base é uma reivindicação laboral muito justa. Na altura, a ideia era a de que os trabalhadores estavam manipulados pelos partidos. A manifestação começa, claramente, pelos sindicatos. Não há dúvida nenhuma que se organizaram e que decidiram vir até à Assembleia. Também um pormenor importante: fizeram o cerco porque o ministro do Trabalho [Tomás Rosa] não os recebeu. O ponto inicial era esse. Vai havendo uma escalada porque o Governo, a dada altura, também não soube responder ao problema. E também é importante dizer que estes trabalhadores já tinham levantado este problema antes, já lhes tinha sido prometido que seria resolvido. No fundo, estavam um bocadinho no limite. Puxou-se a corda, era uma situação de rutura. Isso não quer dizer que se justifique que invadam a Assembleia. Mas a base é uma reivindicação laboral. Depois, o que acontece, é um aproveitamento quase momentâneo. Não me parece que tenha havido um plano para aproveitar o movimento para fazer o sequestro da Assembleia. As coisas vão acontecendo. Há ânimos muito exaltados. Eram trabalhadores que viviam de forma absolutamente miserável, havia gente em barracas. A maior parte deles vinham do Norte e de outras zonas. Essa parte social é compreensível. O que não é, é a escalada de tensão. Além do sequestro, que é inimaginável, há depois esta tentativa de resgatar o presidente da Assembleia Constituinte [Henrique de Barros]. Chega a entrar no helicóptero, mas é retirado. Esse momento é de facto muito crítico porque alguns trabalhadores tentam agarrar os pés do helicóptero, de maneira a que ele não levante voo. Para que, no fundo, não faça o resgate e não cumpra a sua missão, que era trazer comida, sandes e vinho, para os deputados sequestrados. E se não fosse a destreza do piloto, o helicóptero tinha sido atirado abaixo. O helicóptero estava rodeado de pessoas. Se tombasse ou caísse, poderia ter sido uma mortandade. Sobretudo porque depois teria de haver uma reação. No fundo, apesar da situação extremada, houve ali muita contenção por parte do Presidente da República [Costa Gomes], sempre muito sensato e a tentar negociar com todas as partes. O próprio Henrique de Barros não fez alarido nenhum pelo que tinha acontecido, voltou pelo seu pé à Assembleia, à espera de sair. E dali a umas horas vai de táxi para casa. Tudo isto é muito caricato. Há esta noção de que se está no fio da navalha, e de que se há um passo em falso a coisa pode, de facto, descambar. Vê-se, em todos os títulos, e em todas as pessoas com quem se conversa, que há um medo de guerra civil. Estava na boca de toda a gente. Uma situação destas teria, claro, de iniciar algo muito mais belicista e conflituoso. Acho que este episódio é mais relevante do que a importância que lhe tem sido dada na antecâmara do 25 de Novembro.
Era isso que ia perguntar. Este caso é o rastilho que faz explodir o 25 de Novembro?
Na minha interpretação, é. Não sou historiadora, mas interpretando aquilo que investiguei e o que as pessoas me disseram, e muitas também têm esta perspetiva: havia uma necessidade absoluta de clarificação. Agora, se iria acontecer a 25 de Novembro, se não tivesse sido este episódio, ou se tivesse sido mais tarde, não sabemos. Podemos deixar no ar. O que fica muito claro é que a Assembleia, ou seja, os principais grupos parlamentares, deslocam-se para o Porto. Não sentem que haja condições para continuar a trabalhar na Assembleia. Estamos numa clara situação de pré-Guerra Civil, incomportável. E Mário Soares, sendo perspicaz e compreendendo bem as coisas, esteve na Assembleia e saiu antes das portas serem fechadas. Ou seja: percebeu que as coisas iam complicar. O PS esteve sempre muito à frente para tentar clarificar a situação. O que me parece é que este episódio da Assembleia Constituinte torna muito claro que não dá para continuar assim. Se alguém tinha dúvidas... Esteve-se desde o 11 de março [dia em que há uma tentativa de golpe de Estado dirigida por António de Spínola] a ver as coisas aquecer. Há cada vez mais bombas, ataques a sedes de partidos, enfim. Há todo um rol de acontecimentos que acho que vão sempre em crescendo. E o sequestro da Assembleia é uma espécie de pêndulo de Foucault. Depois daquilo, algo tinha de se clarificar. Obviamente, não se pode aceitar que o sistema político, democraticamente eleito, fique sujeita a isto, impedido de funcionar. É muito importante pensar que havia partidos da Extrema-Esquerda que não queriam, não concordavam com a Constituição e que queriam boicotar os trabalhos da Assembleia. E conseguiram. Isto não significa que fossem eles a planear o sequestro. Perante todo aquele acontecimento, visto naquele momento, entendo perfeitamente que houvesse quem achasse que tinha havido uma manipulação.
Primeiro, foram os presidentes. Seguiu-se o cerco de 1975. O que se segue agora na sua investigação política, a escassos meses dos 50 anos do 25 de Abril?
Neste momento, não estou a trabalhar em nada sobre esse tópico. Acho-o muito interessante, muito rico. Acho que já dei o meu contributo. Não quer dizer que não venha a pensar nele no futuro. No fundo, a resposta é aquilo que já fiz: estes dois livros (Os Cinco Homens que Mudaram Portugal e O Cerco ao Parlamento) tiveram em conta o contexto dos 50 anos do 25 de Abril. Os Cinco Homens saiu bastante antes (2022), este sai poucos meses antes de 2024. São livros com um olhar já distanciado sobre os 50 anos.