Venezuela e caravana de migrantes devem marcar Cimeira Ibero-Americana
O tema oficial da Cimeira Ibero-Americana que se realiza hoje e amanhã na cidade colonial de Antígua, na Guatemala, é o desenvolvimento sustentável. Mas o êxodo dos venezuelanos, a caravana de migrantes centro-americanos que está à porta dos EUA, a crise na Nicarágua e a mudança ideológica na América Latina devem marcar presença no encontro sem liderança feminina e com ausências de peso.
"Uma Ibero-América próspera, inclusiva e sustentável" é o tema da XXVI cimeira de chefes de Estado e governo dos 22 países que formam o espaço ibero-americano (os 19 da América Latina, junto com Portugal, Espanha e Andorra). Em causa está o debate sobre os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, da Agenda 2030 das Nações Unidas.
As questões do financiamento da agenda serão debatidas na cimeira, assim como formas para garantir uma maior igualdade na região, especialmente na América Latina e nas Caraíbas, onde os níveis de rendimentos, educação e desenvolvimento são díspares.
Mas, como noutras cimeiras, será impossível ignorar os temas de atualidade, nomeadamente os movimentos migratórios. Quer seja os três milhões de venezuelanos que, segundo os números das Nações Unidas, já fugiram à crise económica e política da Venezuela quer os milhares de migrantes centro-americanos que estão às portas dos EUA, em Tijuana, tendo deixado para trás a violência e o desemprego nos seus países.
Segundo fontes diplomáticas, citadas pela agência EFE, os responsáveis pela cooperação na região ibero-americana já concordaram em incluir um parágrafo na decisão final da cimeira sobre a questão migratória. A declaração vai centrar-se no respeito pelos direitos humanos, na solidariedade para com os migrantes e o estabelecimento de mecanismos de receção nos distintos países que sofrem com os fluxos.
O presidente venezuelano, Nicolás Maduro, deverá ser um dos grandes ausentes da cimeira em Antígua. Isto numa altura que a crise política e humanitária no seu país já levou três milhões de venezuelanos a sair do país.
O tema deverá ser discutido entre os líderes, nem que seja no encontro à porta fechada que vão manter. Em relação a uma declaração conjunta sobre o tema, é provável que possa existir, mas mais centrada no respeito pelos direitos humanos e nos apelos ao diálogo.
Além da crise económica que afeta o país, com o Fundo Monetário Internacional a prever uma inflação de dez milhões por cento (10 000 000%), e consequente crise humanitária, a Venezuela enfrenta uma crise política.
Maduro foi reeleito para um segundo mandato (deve tomar posse a 10 de janeiro), numas eleições que não foram reconhecidas internacionalmente. Além disso, a Assembleia Nacional (dominada pela oposição) funciona sem poder, à margem da eleita Assembleia Constituinte, que prepara a nova Constituição.
Em relação à crise económica, Maduro (herdeiro político do falecido Hugo Chávez) acusa EUA, Colômbia e a oposição de liderarem uma "guerra económica" contra o seu governo.
A caravana de mais de cinco mil migrantes centro-americanos está às portas dos EUA, onde esperam obter asilo político apesar das decisões do presidente norte-americano, Donald Trump, que enviou tropas para a fronteira e deu ordens para negar o asilo a todos os migrantes que não usem um ponto oficial de entrada no país.
A maioria dos migrantes são hondurenhos, mas há também quem tenha partido da Guatemala - país anfitrião da cimeira, o que poderá ser constrangedor - e de El Salvador.
Sandino Asturias, do Centro de Estudos da Guatemala, disse à agência francesa AFP que os líderes da região não tiveram a capacidade de fazer "autocrítica" para reconhecer "o fracasso dos modelos económicos estruturais da região" que levam à migração forçada de milhares de pessoas.
"O fenómeno migratório é claramente um grito desesperado de sociedades que estiveram totalmente marginalizadas e o fracasso dos governos", indicou, desejando que a cimeira vá mais além das "boas intenções".
Após um mês a caminhar e a apanhar boleia, os primeiros grupos de migrantes já chegaram à fronteira dos EUA. Depois de ter sido um crítico quase diário da caravana de migrantes, em plena campanha para as intercalares, Trump tem mantido desde então o silêncio sobre o tema.
Quem já confirmou a presença na cimeira é Daniel Ortega, o presidente da Nicarágua que está sob fogo no seu país. As manifestações contra o seu governo já duram há quase sete meses e o facto de serem reprimidas com violência pelas autoridades gerou críticas internacionais.
A ida de Ortega à Guatemala é uma oportunidade para os chefes de Estado se manifestarem pessoalmente contra a violência, a repressão e as denúncias de violações de direitos humanos. Mas será também uma oportunidade do presidente da Nicarágua se defender das críticas.
Segundo a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, 325 pessoas já morreram nos protestos. O governo nega esses números, dizendo que terão morrido cerca de 200 pessoas nas manifestações que já custaram mil milhões de dólares em perdas aos cofres do país.
O descontentamento começou com a aprovação na Assembleia Nacional dominada pelos sandistas de Ortega, a 16 de abril, de uma reforma da segurança social (que depois seria revogada), transformando-se contudo numa crítica aberta ao presidente. Ex-líder da guerrilha, responsável pela revolução sandinista que derrubou a ditadura de Somoza em 1979, Ortega ficaria no poder até às primeiras eleições livres, de 1990. Depois de décadas na oposição, voltou ao poder em 2007 e já mudou a Constituição para permitir a reeleição ilimitada.
Desde a última cimeira, que decorreu em Cartagena das Índias, na Colômbia, em 2016, houve mudanças na liderança de nove países latino-americanos (e em Espanha, com a entrada do socialista Pedro Sánchez para substituir Mariano Rajoy, do Partido Popular). Mas nem todos os novos líderes estarão presentes, só tomando pose depois.
Entre as mudanças, há aquelas que são pela continuidade, como a histórica que ocorreu em Cuba, onde Miguel Díaz-Canel sucedeu a Raúl Castro - garantindo assim que em mais de meio século não havia um Castro no poder. O novo presidente cubano não estará presente em Antígua - o último líder cubano a assistir a uma cimeira ibero-americana foi Fidel Castro, que no encontro no Panamá, em 2000, denunciou um plano para atentar contra a sua vida na qual estaria envolvido Luis Posada Carriles (considerado terrorista por Havana, que morreu neste ano).
Mas há também viragens radicais. As duas principais mudanças na região ocorreram no Brasil, com a eleição de Jair Bolsonaro, da extrema-direita, e no México, onde o veterano líder da esquerda mexicana, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), que se identifica como progressista e social-democrata, sucederá a um presidente de direita, Enrique Peña Nieto.
Ambos só tomam posse depois da cimeira (AMLO a 1 de dezembro e Bolsonaro a 1 de janeiro), pelo que não estarão presentes em Antígua. Mas serão o rosto dos próximos anos dos dois gigantes latino-americanos.
Não de forma tão extrema como o Brasil, outros países da região fizeram uma viragem à direita. É o caso da Colômbia, em que o presidente Juan Manuel Santos deu lugar a Iván Duque. No Chile, depois de quatro anos de governo da socialista Michelle Bachelet, Sebastián Piñera volta para um segundo mandato. No Paraguai, o vencedor das presidenciais deste ano foi Mario Abdo Benítez (cujo pai foi secretário pessoal do ditador Alfredo Stroessner).
Alinhados à direita estão também os presidentes da Argentina, Maurício Macri, do Panamá, Juan Carlos Varela, do Peru, Martín Vizcarra (que substitui o presidente Pedro Pablo Kuczynsky em março de 2018, após este ser acusado de corrupção), da República Dominicana, Danilo Medina, e das Honduras, Juan Orlando Hernández. O anfitrião da cimeira, Jimmy Morales, também está mais próximo da direita do que da esquerda.
À esquerda, além de Cuba de Díaz-Canel, está a Venezuela de Maduro e a Bolívia de Evo Morales. Este último confirmou a sua presença, ao contrário dos dois primeiros. Na Costa Rica, o estreante social-democrata Carlos Alvarado tomou posse em maio. No Uruguai, Tabaré Vázquez, que voltou à presidência em 2015 depois de um primeiro mandato entre 2005 e 2010, estará ausente por motivos de saúde.
O equatoriano Lenín Moreno, cuja candidatura foi apoiada pelo ex-presidente Rafael Correa mas que entretanto se afastou deste, confirmou a sua presença. O ex-guerrilheiro Daniel Ortega, da Nicarágua, também viaja para a Guatemala, apesar dos problemas que enfrenta no seu país.
No total, 17 de 22 presidentes ou chefes de governo estarão presentes, sendo os restantes países representados por vice-presidentes ou chefes da diplomacia. À margem dos encontros oficiais, haverá vários bilaterais.
Portugal estará representado pelo presidente Marcelo Rebelo de Sousa e pelo chefe da diplomacia, Augusto Santos Silva. O primeiro-ministro António Costa, que tinha estado com Marcelo na cimeira de há dois anos na Colômbia, estará ausente.
Pela primeira vez numa década, não há mulheres na presidência de nenhum dos países ibero-americanos. Mas elas não vão estar fora da foto de família - tudo porque há, na região, dez mulheres vice-presidentes e pelo menos quatro irão representar o seu país em Antígua. É o caso da argentina Gabriela Michetti, da panamenha Isabel Saint Malo, da uruguaia Lucía Topolansky e da venezuelana Delcy Rodríguez (caso se confirme a ausência de Nicolás Maduro).
"Agora as mulheres converteram-se na mão direita do poder e, desta maneira, podem promover uma candidatura presidencial ou assumir uma liderança dentro do espaço legislativo ou outros espaços de poder como ser ministras de Estado", disse à agência EFE Nadia Ramos Serrano, presidente da Rede de Mulheres Ibero-Americanas e membro do Comité de Mulheres das Américas da Organização de Estados Americanos.
"Ainda continuamos a ver na América Latina um tratamento sexista em relação às mulheres na política e para isso há países que tomaram medidas em relação ao assédio político para reduzir essa questão da violência de género por parte dos meios de comunicação, por parte de alguns partidos da oposição ou até dos próprios colegas de partido", acrescentou.
Na última Cimeira Ibero-Americana, que decorreu em Cartagena de Índias em 2016, a chilena Michelle Bachelet era a única mulher presidente (Sebastián Peña sucedeu-lhe no cargo em março deste ano).
Uma outra mulher estará nas fotos: a secretária-geral ibero-americana, Rebeca Grynspan, da Costa Rica. É a responsável pelo organismo que coordena e gere a nível institucional, técnico e administrativo as cimeiras e reforça os laços regionais entre os encontros (que são agora a cada dois anos). A próxima, em 2020, será em Andorra.
É talvez o momento mais conhecido nas cimeiras ibero-americanas. Em 2007, na Cimeira de Santiago do Chile, o rei Juan Carlos de Espanha e o então presidente venezuelano Hugo Chávez protagonizaram um momento caricato.
Quando Chávez discursava, criticando o neoliberalismo e o ex-primeiro-ministro espanhol José María Aznar, apelidando-o de fascista e acusando Madrid de estar por detrás da tentativa de golpe de Estado contra si em 2002, o então chefe de governo espanhol, José Luis Zapatero, interrompeu o líder venezuelano pedindo respeito pelo antecessor.
Contudo, Chávez insistia no discurso. Foi então que o rei, chegando-se à frente na sua cadeira e olhando para ele, lhe lançou o já famoso: "Por qué no te callas?" (Porque é que não te calas?). A resposta de Chávez ficou menos conhecida: "Pode ser rei, mas não pode mandar-me calar. Eu também sou chefe do Estado e eleito três vezes."
Em 1996, também no Chile, mas em Viña del Mar, tinha sido o próprio Aznar o protagonista, junto com o líder cubano Fidel Castro. Apesar das diferenças ideológicas, ambos acabaram por trocar de gravatas, depois de elogios mútuos. Fidel entregou a sua gravata, de tons cinzentos, a Aznar, e este respondeu entregando-lhe uma vermelha.
"Não tenhas medo. É uma gravata, não é uma corda", terá dito Aznar, quando punha a gravata ao pescoço de Castro, segundo o então presidente argentino, Carlos Menem. Depois, em jeito de brincadeira, disse aos jornalistas: "Não levou uma má gravata. É uma das melhores que usou na sua vida", indicou. Apesar disso, houve desacordo entre ambos.
A cimeira em San José, na Costa Rica, em 2004, ficou marcada por um sismo de 6,2 graus na escala de Richter, às 02.00 da manhã. De acordo com o então presidente da Costa Rica, Abel Pacheco, o monarca espanhol, não acostumado a esses fenómenos, pensou que era um comboio que passava perto do hotel.
Portugal já recebeu por duas vezes a Cimeira Ibero-Americana: em 1998, a reunião do Porto ficou marcada pela entronização de todos os líderes na Confraria do Vinho do Porto - e pelo discurso de duas horas e meia de Fidel numa festa de solidariedade com o povo cubano, à margem do encontro, que terá sido "o mais longo alguma vez proferido" em terras portuguesas. Na cimeira, discursou "só" durante mais de uma hora, não tendo os outros líderes excedido os dez minutos. Em 2009, foi a vez de o Estoril acolher a reunião.