Cancro do pâncreas: "A sobrevivência dos doentes está a aumentar"

Chamam-lhe "cancro silencioso" e o diagnóstico chega a cerca de 1300 portugueses por ano. A taxa de sobrevida é de escassos 8%. Na Fundação Champalimaud, que terá um centro dedicado a este tumor, reúnem-se esta quinta-feira especialistas de 70 organizações e de 30 países.
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Os sintomas são poucos e muitas vezes "desprezados" - dores no estômago, dores nas costas, icterícia - e diagnóstico tardio do cancro do pâncreas continua a ser um dos seus inimigos. Também é mais resistente do que outros aos tratamentos. A taxa de sobrevida aos cinco anos é de 8%, era de 2% nos anos 70. E essa é a esperança do oncologista Carlos Carvalho. "Apesar de tudo, a sobrevivência dos doentes está a aumentar ligeiramente", diz, em entrevista ao DN, o diretor da unidade de cancro digestivo da Fundação Champalimaud.

Carlos Carvalho, 59 anos, dirige a unidade de cancro digestivo da Fundação Champalimaud, em Lisboa. Oncologista, há 20 anos que estuda estes tumores. Quando começou passou a trabalhar de perto com o cirurgião Eduardo Barroso, numa época em que multidisciplinaridade não era regra como hoje. Sublinha a importância desse cruzamento de conhecimentos entre investigadores, clínicos e, enfatiza, "os doentes", fundamentais para conhecer melhor a biologia do cancro no pâncreas, uma doença que afeta certa de 1300 pessoas por ano.

"Temos alguns doentes que são long survivors, que ultrapassam todas as estatísticas, que são preciosos, porque nos dão informação de uma evolução da doença que é rara e que pode ter em si alguns segredos de porquê que esses doentes sobrevivem quando outros não conseguem. Temos doentes que mesmo com metástases vivem anos. São preciosos para eles próprios, mas também nos ajudam a ter uma esperança de que é possível tentar perceber porquê", explica o médico.

Esta quinta-feira, dia em que assinala o Dia Mundial do Cancro do Pâncreas, na Fundação Champalimaud, junta-se a especialistas de 70 organizações de 30 países, para discutir tratamentos e saídas para esta doença à qual será dedicado o Centro Pancreático Botton Champalimaud, dedicado à investigação e tratamento, com inauguração prevista para 2020. Atualmente, cerca de duas dezenas de pessoas já se dedicam à pesquisa nesta área.

As estatísticas são péssimas: o cancro do pâncreas é o mais letal. Pode dar uma boa notícia?
A boa notícia para mim é que doentes que conseguem ser operados conseguem ter uma sobrevida muito superior àquela que existia há alguns anos. A própria quimioterapia está a dar uma sobrevida maior e há largas dezenas de ensaios. Há uma perspetiva de que este problema é muito importante e que o tumor do pâncreas tem de ser abordado com planeamento e investimentos. Isso são boas notícias. Podem não ser para estes doentes mas podem ser muito importantes no futuro.

A sobrevivência dos doentes está a aumentar ligeiramente. Nos últimos anos, nos EUA e na Europa, a sobrevivência global aos cinco anos é de 8%. Dos tumores frequentes, é o único que tem uma sobrevivência aos cinco anos de menos de 10%. Isto dá uma ideia da agressividade da doença, que se mede por três coisas: é diagnosticado numa fase muito avançada, quando chega à fase do diagnóstico já está, em muitos casos, disseminado. Também é um tumor mais resistente aos tratamentos habituais e isso deve-se à própria forma como o tumor se desenvolve e à sua biologia. As células do pâncreas têm características especiais e o sítio onde se implantam fica como que com uma cicatriz à volta, um tecido fibroso, o que faz que os medicamentos sejam mais difíceis de atuar. É como se mascarassem e construíssem uma defesa. Mesmo noutros órgãos constroem as mesmas defesas. Continua a ser um tumor muito agressivo e difícil de tratar. O outro problema é que ao contrário da mama, do cólon, do intestino, é difícil fazer um rastreio, porque não aparece de forma óbvia em modos habituais de imagem. Há algum esforço, nos últimos anos, para encontrar algum marcador no sangue, alguma substância que o tumor liberte para o sangue que possa ajudar com uma análise relativamente simples. Existem vários testes, mas ainda são pouco consistentes, ainda não se podem aplicar na generalidade. Se acontecesse seria um avanço interessante, sobretudo em populações de maior risco, a que seria possível fazer um diagnóstico precoce.

Quais são as populações de maior risco?
São sobretudo pessoas que têm familiares diretos com cancro do pâncreas. O risco é muito elevado, há algumas formas de tumor hereditárias, mas há outras formas, não sabemos exatamente porquê, que correm em famílias. Essas pessoas, juntamente com outras que têm pancreatite crónica, habitualmente associada ao álcool, também têm uma maior tendência. São populações de risco, mas ainda não são um número suficientemente grande para se poder fazer um rastreio à população. Outras pessoas são aquelas que têm pequenos quistos, como se fossem sinais na pele. Alguns desses quistos, na sua maior parte, não têm risco especial, mas alguns, que produzem muco, podem ter um risco maior também de poder ser precursores de cancro do pâncreas. Esses também podem justificar um seguimento de doentes de risco como aquele que temos aqui na fundação. Através de imagens ou análises, esses doentes são vistos de forma mais cuidada e regular, na tentativa de perceber se devemos fazer uma cirurgia precoce e evitar que essas lesões venham a ser um tumor maligno.

Que pessoas são essas?
Podem ser doentes ou não. Pessoas que têm às vezes uma lesão benigna, mas que sabemos que é uma lesão pré-maligna. São pessoas que têm uma lesão de risco. Alguns podem nunca ter a doença. Neste momento, já temos algumas dezenas de pessoas em vigilância por várias razões - desde situações de risco familiar, situações hereditárias, quistos de risco... Também estamos a tentar, com a colaborações dos doentes, e com a sua autorização, fazer estudos para perceber o que nesses doentes pode indicar que o risco seja maior, com investigação, com colheitas de sangue, à procura de substâncias que nos possam dar uma indicação de que essas pessoas podem vir a ter um tumor, e isso é muito importante. Hoje, dependemos muito das próprias pessoas para compreender o que está a acontecer com a doença. Isso significa não só ensaios clínicos com medicamentos, significa também, em pessoas que não têm a doença, ou que têm, estudar a biologia da doença. Isso é uma investigação em que os médicos e os cientistas trabalham em conjunto, mas o doente também é parceiro, porque se não estiver motivado. Pode vir a ser útil para aquele doente e pode vir a ser útil para outros doentes. Os doentes são fundamentais para a investigação. Ao contrário de outros tumores, o cancro do pâncreas foi sempre um parente pobre, porque a mortalidade foi sempre muito grande e, por outro lado, porque os investimentos sempre foram muito pequenos em relação a outros.

Fizeram-se avanços na investigação nos anos 1970, mas por que razão se avançou tão pouco.
A curva da melhoria da mortalidade é lenta mas sempre em subida desde os anos 1970. Passou de 2% ou 3% de sobrevivência aos cinco anos para 8%. É pouco, mas há uma tendência de ganho. Faz-se à custa dos doentes que conseguem ser operados. Há mais, o que quer dizer que há mais doentes a ser diagnosticados numa fase mais precoce. Significa também que com os tratamentos, que não são só a cirurgia, mas também a quimioterapia, a radioterapia, outros medicamentos, é possível reduzir o tumor antes da operação e fazer com que um número de doentes cada vez maior consigam ser operados e ter um maior controlo da doença. Os doentes que são operados conseguem ter uma sobrevivência aos cinco anos à volta de 30%, o que é muito significativo. Os doentes com metástases têm uma sobrevida ainda mais baixa, de 2% ou 3%. Os ganhos têm sido a capacidade de juntar vários tipos de tratamentos - quimioterapia e cirurgia sobretudo - e com eles, de forma planeada, o doente consegue ser operado e ter uma perspetiva de ganho de vida muito superior. Muito superior em relação ao que era, pois continua a ser uma sobrevida inferior à maior parte dos tumores de outro tipo. Os avanços têm de ser de outro tipo. É o que se está a tentar fazer, e depende da biologia deste tumor. A investigação tem de ser muito dirigida. Nada substitui o estudo que se faz no tecido humano, nos próprios doentes ou em pessoas que não sendo doentes, têm fatores de risco e que estão a evoluir de forma precoce para a doença. É para aí que se caminha em todo o mundo, porque a perceção é que o cancro do pâncreas é cada vez maior. Nos EUA, está a ser a segunda causa de morte entre os cancros. está a ultrapassar quase todos os tumores, menos o do pulmão. Na Inglaterra, a perspetiva é que venha a ser a segunda causa de morte. Na Europa, em geral, é a quarta. Em Portugal é a sexta causa de morte, mas é natural que siga o caminho. Todo o mundo dito industrializado vê um aumento no número de mortes por cancro do pâncreas. É percetível na nossa vida comum. Todos começamos a conhecer pessoas que tiveram cancro no pâncreas. Os cientistas, os governos, a sociedade começam a olhar para o problema de outra maneira. E aí, mais uma vez, os doentes vão ser fundamentais porque sem o material biológico que eles têm, precioso, sem esse estudo dirigido à doença, não é possível dar mais respostas. É esse o caminho que também estamos aqui a fazer: envolver os doentes num bom tratamento, em protocolos de investigação, colaborar com cientistas e fazer investimentos planeados. Criar equipas, misturar clínicos e investigadores, e fazer um investimento bem pensado para começar a ajudar a dar resposta a este problema.

A vossa casa - Centro de investigação e Tratamento do Cancro Pancreático - só estará pronta em 2020 - mas quantas pessoas trabalham neste campo?
Temos uma equipa alargada de gente - oncologistas, médicos e investigadores - de cerca de duas dezenas de pessoas. Essa equipa vai crescer e a reunião que vamos ter amanhã [hoje] é um exemplo disso. É uma das primeiras de um grupo que vai começar a colaborar em planos e protocolos de investigação e vai haver também um recrutamento de pessoas em todo o mundo, investigadores e clínicos, para colaborar neste projeto. Os edifícios não fazem tudo, mas as pessoas fazem e é preciso ter um edifício para juntar uma equipa, é essa que conta. É preciso que as pessoas sintam que há uma estratégia e um corpo.

Vão colaborar para aumentar este valor de 2% de fundos anualmente são alocados à investigação do cancro do pâncreas em todo o mundo.
É importante perceber que hoje começa a haver alguma capacidade, que não existia há 20 anos de compreender mecanismo da doença, mas como tudo, para se fazer de maneira consistente, não se pode fazer apenas em um ou dois exemplos. Os estudos que fazemos aqui para estudar um doente têm de ser multiplicados por muitos para ter uma visão concreta. Isso significa investimento, porque tudo tem o seu custo. Não apenas de dinheiro, mas também de ideia, de planeamento, de ser capaz de organizar e não desperdiçar o dinheiro.

Estão, pois, interessados na biologia do tumor.
É fundamental. Se nós não conhecermos os mecanismos, entra quase um fator sorte. Não podemos tratar os doentes dessa forma, temos de encontrar mecanismos que existam na doença e que nos abram a porta para outras formas de tratamento. Isso já aconteceu com outros tumores nos últimos anos. Todos os tratamentos que acontecem hoje para o cancro têm uma história curta. A radioterapia começou há cerca de 100 anos, mas os tratamentos de quimioterapia são relativamente recentes e a maneira como nos últimos anos se têm desenvolvido alguns tratamentos dirigidos à célula do tumor e células de defesa, só é possível conhecendo bem a biologia. Se não soubermos como funcionam não conseguimos ter as armas para poder atuar.

Têm uma fast track na Fundação Champalimaud.
Quando um doente tem um sintoma ou uma suspeita, é preciso tentar perceber melhor, e abordá-lo de forma rápida, propor uma abordagem numa semana, dez dias, do tratamento possível ou do seguimento ou no sentido de o descansar. A proposta pode ser uma cirurgia, um tratamento rápido, no sentido de poder fazer um tratamento efetivo. Depois, temos ainda o grupo de doentes que não tendo doença, têm risco de cancro. Falar com pessoas que têm o tal familiar, pai, avó, doenças hereditárias, outros que têm pancreatites crónicas, aqueles casos em que dizemos que faz sentido fazermos alguns exames, alguns estudos genéticos e seguimento regular.

A vossa taxa de sobrevida é mais elevada do que em outros centros?
É muito difícil demonstrar, são precisos anos de seguimento a um grupo grande de seguimento. Não queremos afirmá-lo dessa maneira, porque não é o que está em causa. O que está em causa é fazer o melhor possível. Hoje sabemos que os centros que têm mais experiência tratam melhor doenças complexas.

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