Também a UE joga forte no coração da Eurásia

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A visita programada para esta semana do presidente Kassim-Jomart Tokayev a Pequim pode ser vista como um sinal de que a China está a ser a grande beneficiada da necessidade do Cazaquistão de reduzir a sua ligação tanto política como económica com a Rússia, sobretudo quando boa parte do mundo está a aplicar sanções a Moscovo pela invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022. Olhando para as estatísticas do comércio externo cazaque relativas ao ano passado, em que se atingiu o valor recorde de 134,4 mil milhões de dólares, ainda se fica mais com essa ideia de que a China está a ganhar terreno na maior economia da Ásia Central, um país conhecido por ser um grande exportador de petróleo e de metais (incluindo urânio), mas com uma crescente classe média desejosa de novos consumos, o que faz dele também um mercado atraente. E se o comércio cazaco-russo valeu 26,1 mil milhões de dólares, o cazaco-chinês anda já próximo, atingindo 24,1 mil milhões e com tendência para aumentar.

País encravado mas o nono maior do mundo, e localizado no coração da Eurásia, o Cazaquistão tem um enorme valor estratégico e não por acaso se fala de um novo Grande Jogo, alusão à guerra de influência na Ásia Central entre os impérios russo e britânico durante o século XIX. No século XXI, essa guerra de influência seria travada entre a Rússia e a China, ambas com extensas fronteiras com o Cazaquistão.

Resumir-se, porém, o futuro do Cazaquistão à simplista escolha de passar da esfera russa para a esfera chinesa é não conhecer duas características essenciais da cultura política de quem governa em Astana: o apego à independência nacional, restaurada em 1991 após o fim da URSS, e a vontade de ter relações amigáveis com o mundo além da vizinhança imediata. Sublinhe-se que nessa matéria Tokayev segue a linha do antecessor, Nursultan Nazarbayev. E a famosa diplomacia multivectorial já não é ideia de um político, é sim verdadeira política de Estado.

É acreditando na continuidade dessa diplomacia multivectorial, que a UE deve ver a situação criada pela guerra na Ucrânia como uma razão extra para reforçar a relação com o Cazaquistão. É certo que o país se abstém nas Nações Unidas de condenar a Rússia, mas não tem hesitado no apoio à integridade territorial da Ucrânia. Um equilíbrio difícil, também justificado pelo grande número de russos e ucranianos étnicos que são cidadãos cazaques, e que, tendo riscos, passa por procurar a multiplicação de aliados, embora sem hostilização desnecessária da Rússia.

Se a Rússia está a perder terreno económico (e vai perder ainda mais com o esforço cazaque para travar a reexportação destinada a contornar as sanções aplicadas à Rússia) e a China a ganhar, a UE está longe de ser um parceiro descartável, sobretudo se vista como um todo. Em 2022, seis países da UE constavam entre os 13 principais parceiros comerciais, com destaque para a Itália como número 3 e os Países Baixos como número 6. Mas basta somar estes dois com França, Alemanha, Roménia, Espanha e o valor, incluindo exportações e importações, ultrapassa logo os 32,5 mil milhões de dólares. Ora, acrescente-se os outros 21 Estados-membros, mesmo aqueles como Portugal ainda com grande caminho a percorrer, para se entender que a UE já conta neste tal de novo Grande Jogo - são 40 mil milhões de dólares, um terço do comércio externo cazaque.

Por isso, se é importante notar que Tokayev vai agora a Pequim depois de no ano passado ter acolhido em setembro em Astana Xi Jinping, na primeira viagem ao estrangeiro do presidente chinês no pós-pandemia, não deve passar despercebido que o presidente cazaque recebeu sucessivamente Charles Michel, presidente do Conselho Europeu, e Josep Borrell, o Alto Representante para a Política Externa e de Segurança da UE, e foi depois a Bruxelas conversar com a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen.

A UE é também o maior investidor estrangeiro no chamado país das estepes, representando metade do total. E os Países Baixos destacam-se mesmo como o principal investidor, à frente dos Estados Unidos, outra potência com a qual o Cazaquistão quer tornar efetiva a ambição de diplomacia multivectorial. E uma vez mais a economia vem ligada à geopolítica, ou não tivesse Antony Blinken, secretário de Estado dos EUA, visitado Astana em março deste ano para declarar o apoio ao processo de reformas de Tokayev (resposta aos protestos violentos nas ruas em janeiro de 2022) e também à integridade territorial das cinco antigas repúblicas soviéticas da Ásia Central, nomeadamente o Cazaquistão com os seus 2,7 milhões de km2, 19,4 milhões de habitantes e um PIB de 163 mil milhões de dólares (em 2033, a taxa de crescimento da economia deverá ser 3,5%). Blinken, conhecendo o percurso de sucesso do país nestas três décadas, recordou ainda que o investimento americano acumula já 50 mil milhões de dólares.Um novo Grande Jogo, portanto, com muitos envolvidos, pois à Rússia, China e UE se somam os EUA e, é de prever, também o Japão, cujo modesto 13.º posto no ranking das trocas comerciais cazaques não está à altura da terceira maior economia mundial, pelo que há dias, num encontro com Alibek Kuantyrov, ministro da Economia, Jun Yamada, o embaixador em Astana, falou da vontade de Tóquio em aprofundar a relação, sendo que os 1,9 mil milhões de dólares de comércio bilateral em 2022 significaram um aumento de 71% comparado com 2021.

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