"Não é por acaso que a primeira grande preocupação da extrema-direita é o feminismo"
A erudição, que a sua poesia evidencia a cada verso, não lhe serve de confortável torre de marfim. Ana Luísa Amaral, poeta, professora aposentada da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 65 anos, acaba de ser distinguida com o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-americana (juntando-se, assim, a uma lista que inclui, entre outros, Sophia de Mello Breyner Andresen, Nuno Júdice, Mário Benedetti, Nicanor Parra ou Joan Margarit) pela qualidade literária, mas também pelo assumido compromisso com a luta por uma sociedade mais justa e igualitária. Para Ana Luísa que, da Literatura chegou aos Estudos Feministas muito antes destes adquirirem cidadania académica, uma coisa vai a par da outra, como deixou logo demonstrado no seu primeiro livro de poesia, Minha Senhora de Quê? (publicado em 1990) onde incluiu uma "Ode à Diferença". É autora de mais de três dezenas de livros de poesia, teatro, ficção, ensaio e literatura infantil (para além de tradutora de autores como Shakespeare, John Updike ou Louise Gluck), estando ainda representada em diversas antologias portuguesas e estrangeiras. Com os seus livros publicados em países como Inglaterra, Brasil, França, Espanha, Suécia, Itália, Holanda, Colômbia, Venezuela, México e Estados Unidos da América, já recebera antes deste Prémio Reina Sofia (promovido pelo Património Nacional Espanhol e pela Universidade de Salamanca) distinções como o Prémio Literário Casino da Póvoa/Correntes D"Escritas (2007), o Prémio de Poesia Giuseppe Acerbi (2007) ou o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores (2008). Há poucos dias a esta lista juntou-se o Prémio Francisco Sá de Miranda pelo seu livro mais recente, Ágora, editado em 2020 pela Assírio & Alvim.
Como recebeu a notícia da atribuição do Prémio Reina Sofia de Literatura Ibero-americana?
Com um bocadinho de estupefação. Era final da manhã, andava na rua a passear a minha cadela, a Millie Dickinson, e recebi um telefonema de Madrid a comunicar-me a notícia de que era a escolhida desta 30.ª edição do Prémio. Fiquei tão perplexa que perguntei à senhora se tinha a certeza do que estava a dizer. Acho que só acreditei realmente quando, logo a seguir, recebi outra chamada, do El País, a pedir-me um comentário.
Acontece que poucos dias depois, viu o seu livro mais recente, Ágora, ser distinguido com o Prémio Francisco Sá de Miranda atribuído pela Câmara Municipal de Amares...
São prémios de naturezas diferentes, até porque o Reina Sofia distingue o conjunto da obra, e este vai para um livro específico, mas fiquei muito feliz, até porque o patrono (Sá de Miranda) é um autor de que gosto muito e que foi muito importante na História da Literatura Portuguesa. Para mim houve dois grandes sonetistas em Portugal: Sá de Miranda e Antero de Quental.
Comecemos por este seu último livro, Ágora. Trata-se de um diálogo entre poesia e pinturas referenciais da História da Arte Ocidental, centradas sobretudo em episódios bíblicos. Como escolheu estes quadros?
A maior parte foi escolhida já depois de eu ter escrito os poemas, curiosamente. Não são só temas bíblicos, mas são fundamentalmente religiosos.
Mas como tantas vezes acontece na sua poesia há uma interpelação do mundo presente através da evocação de temas clássicos.
A nossa relação com a transcendência é uma constante da vida humana. Aqui na Europa, quer queiramos, quer não, somos herdeiros de uma tradição judaico-cristã e essa herança está omnipresente nas nossas vidas. Para além disso, a Bíblia é um livro extraordinário, o Cântico dos Cânticos é belíssimo, embora esteja cheio de violência, como aliás todo o Antigo Testamento. Acredito, por outro lado, que todos nós, seres humanos, precisamos da Arte, do simbólico, desse algo mais que apenas nos é dado pela imaginação.
Esse algo mais é a literatura, a arte...?
Eu julgo que sim. A poesia e a arte não são só "oficina", embora esta seja evidentemente necessária. A esse algo mais chamou-se inspiração, que é palavra de que me aproprio à falta de melhor. Mas o escritor terá de ser sempre um grande leitor, tem de conhecer a gramática da linguagem a que dedica. A enorme poesia resiste, tem o condão de atravessar as eras e de continuar a emocionar aqueles a quem chega. Continuo a achar maravilhosa uma peça em verso como A Castro, de António Ferreira. Ás vezes, não conseguimos perceber esta ou aquela palavra ou um certo passo, mas o que importa é a emoção produzida. Como na pintura. Sabemos lá o que Shakespeare quis realmente dizer (nem sabemos se foi mesmo ele a escrever tudo o que lhe é atribuído) mas sabemos que aquelas palavras nos tocam de uma maneira única.
Na sua tese de doutoramento trabalhou a poesia da norte-americana Emily Dickinson (1830-1886). Foi através dela, da sua vida e obra, que passou dos Estudos Literários aos Estudos Feministas, muito antes desta área poder ser considerada uma escolha popular...?
Quando comecei a trabalhar nos Estudos Feministas, achava-se essa escolha um perfeito disparate. Agora é moda e ainda bem porque quanto mais pessoas falarem sobre estes temas, melhor será. Efetivamente foi através da Literatura que cheguei a esta área: eu tinha começado por estudar as obras de Sylvia Plath e Elizabeth Jennings mas, em determinada altura, a Maria Irene Ramalho Santos, minha orientadora de tese, mostrou-me a obra de Emily Dickinson e foi uma autêntica revelação. De repente, dei por mim a tratar as questões da escrita feminina, da autoria e do silenciamento. É possível rever a História (incluindo a da Literatura) para fazer justiça aos vencidos, já que a História é invariavelmente contada pelos vencedores. Nos países anglo-saxónicos, que são os que conheço melhor (vivi três anos nos Estados Unidos), é impressionante a quantidade de antologias de autoras dos séculos XVII e XVIII que estão a ser publicadas. Se formos mais para trás no tempo, decerto descobriremos que a poesia trovadoresca da Baixa Idade Média também teve cultoras, não foram apenas homens a escrever. Pessoalmente não acredito que a linguagem em si discrimine, embora seja influenciada pelo género, pelo tempo e pelas circunstâncias do autor ou autora. Mas tudo o mais: receção crítica de uma obra, condições de comunicação e publicação, pode ser condicionado. Não faltam exemplos disso mesmo na História da Literatura, como na das Artes.
Para si os Estudos Literárias podem então ser também um meio para chegar a uma sociedade com menos desigualdade e com mais respeito pelas minorias?
É fundamental que assim seja. Não é por acaso que a primeira grande preocupação da extrema-direita é o feminismo e aquilo a que chamam a ideologia de género, que é uma coisa que não existe a não ser naquelas cabeças. Depois, por arrastamento, vêm, como alvos, todas as minorias sexuais e étnicas. Ignoram que a nossa grande riqueza, enquanto espécie, é precisamente a diversidade.
Foi por causa dessa consciência que, logo no seu primeiro livro, escreveu uma Ode à Diferença?
Foi, muito embora no princípio dos anos 90 essa preocupação não parecesse tão urgente como hoje. Não acredito numa visão radical, para a qual só as mulheres podem ser feministas e só os negros podem escrever sobre o racismo. Como mulher branca, eu não posso sentir totalmente o que têm vivido os negros, mas posso (e devo) ser empática e solidária. Como tal, tenho propriedade para tratar esta questão No meu próximo livro, que se chamará Mundo (e que tem publicação prevista para outubro), voltarei a estes temas. Uma vez mais.
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