Jornal americano proíbe o manguito do Zé Povinho
Vamos pôr a coisa nestes termos: havia a ideia de que se delineava um esboço para perda de liberdades. Não só em Portugal, mas por todas essas sociedades democráticas que, apesar de tudo, são melhores do que as outras. Um esboço do fim do direito à presunção de inocência, não ainda nos tribunais mas na prática comum da insídia em muito sítio: se parece ser culpado, e der jeito a alguns, é-se culpado. Um esboço do fim da palavra de um cidadão valer o mesmo do que a palavra de outro: se, na convicção firme da opinião pública, uma das partes estiver ao arrepio de uma causa na moda, o que ela diz vale menos... Estávamos perigosamente assim, no esboço.
Infelizmente é falso que seja um esboço. Já é mais: é uma trajetória e vamos por ela fora. A mudança, da suspeita para o facto, ocorreu nesta semana e como prova temos aquele pequeno indício que convence. É como ir horas a dormir no carro, acordar e ver uma árvore de Josué: "Olha, estamos no deserto do Mojave!" É certo que também há raras Joshua trees longe do sul da Califórnia mas, se vemos uma, é quase certo estarmos no deserto do Mojave... E já que falamos da América: com o fim de cartoons no The New York Times acordamos com um terrível sinal.
Já se tinha visto quando do atentado ao Charlie Hebdo. A culpa seria daquela capa do jornal satírico que, tempos antes, gozava com Maomé. Pois é, metem-se com coisas sagradas para alguns e depois acontecem desgraças... De facto, a tal capa mostrava Maomé melhor do que, talvez, ele merecesse. A manchete dizia "Maomé farto dos integristas" e o desenho do profeta punha este a dizer: "É duro ser amado por imbecis." O que levou, agora, a direção do NYT a acabar com os cartoons políticos foi um desenho do cartoonista António, do Expresso. Usado pelo NYT, o cartoon punha Trump, cego e com o quipá, a ser guiado por um cão com a face do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, cuja coleira era a estrela de David, de seis pontas.
A polémica saltou. E em termos que o NYT aceitou: "Antissemitismo!" Isto é, um preconceito contra um povo, os judeus, nomeadamente contra a religião de boa parte desse povo. O que não é evidente: o próprio Trump tem usado, em viagens de Estado, o uso do quipá, e a estrela de David está presente na bandeira de Israel. A crítica que o cartoon ilustrava, correta ou incorreta, era política, sobre certas políticas do Estado de Israel. Políticas passíveis de crítica, correta ou incorretamente (o que, aliás, só distinguiremos se houver críticas). E que fosse crítica religiosa! Porque está, esta ou aquela religião, ao abrigo das críticas?
Que a crítica seja a Israel - o país do Médio Oriente onde há mais democracia e liberdades (nomeadamente na imprensa) - e que essa crítica tenha conduzido à drástica decisão do The New York Times - o grande, fundamental, tão bem escrito e, sobretudo, campeão das liberdades - conduz-nos à dimensão da trajetória ora encetada. Já não é esboço, não é traço, nem ideia leve. É um grito de socorro porque a incivilização nos engole.
O DN, este antigo jornal, foi desde os seus primeiros anos o de Rafael Bordalo Pinheiro. Criador do Zé Povinho, Bordalo dizia do sujeito: "Paciente, crédulo, submisso, humilde, manso, apático, indiferente, abúlico, cético, desconfiado, descrente e solitário"... Um totó, enfim. Um dia, Bordalo inventou-lhe o manguito: "Toma!" Uma má-criação, está bem de ver. Uma ofensa bendita. Tão necessária como os cartoons. Sem eles somos uns submissos e por aí adiante.