Elogio dos monstros

Os criminosos são os novos monstros, que desempenham a função outrora exercida por mulheres hirsutas ou gente com deformidades físicas.
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O tema de hoje são mulheres barbudas. Comecemos por Santa Liberata, padroeira das malcasadas. Reza a lenda que nasceu na Lusitânia, em terras de Portugal, por volta do ano 119, e que, antes de ser santa, se chamava Vilgeforte. Seu pai, um rei maldoso, teimava casá-la com um pagão, contra a sua vontade, que era mui casta e devota. E foram tantas e tão intensas as preces que a menina fez ao Altíssimo, que Este, na Sua sapiência infinda, encontrou um divinal expediente para desfazer o enlace: em poucos dias, o corpo de Vilgeforte ficou todo coberto de pêlos - rosto, braços, pernas, barriga e costas, a moça parecia um urso. O pretendente, claro está, desistiu dos seus intentos e o pai da noiva, irritado, mandou crucificá-la. Vilgeforte morreu como Cristo, de barba rija, virgem e solteira. O seu nome, aliás, deriva do latim, virgo fortis, "virgem forte". Por bandas da Alemanha tratam-na por "santa face", em homenagem às poderosas barbas, enquanto em Espanha, na Itália ou em França chamam-lhe "liberata", por se ter livrado à justa de um casamento infeliz e forçado. A lenda medieval de Santa Liberata, ao que parece, visava dar cobertura a uma moda pictórica que pegou na época, e em que Jesus era representado de forma andrógina, já não com um simples pano no ventre ("a tradicional tanga", diz a Wikipédia), mas de vestidinho comprido e saiinha justa, tal qual uma donzela. Por isso se criou a história de Santa Liberata, cujo rosto é em tudo igual ao de Cristo, pesaroso e barbado, mas com trajes femininos e fartos seios ao peito.

Desde então, as mulheres barbadas são uma presença constante na paisagem visual do Ocidente. Um quadro de Jusepe de Ribera, El Espanholito, pintado em Nápoles em 1631, retrata Magdalena Ventura, desventurada senhora que, estando já casada, viu crescer-lhe as barbas, frondosas e crespas, assim de um dia para o outro. Diz-se que, para fúria do seu marido, os homens ficavam loucos de desejo com as longas barbas de Magdalena, figurada no quadro de Ribera de um modo estranhíssimo, como se fosse um profeta bíblico, calvo e viril, mas com um seio proeminente, escandaloso e esférico, a amamentar um recém-nascido. Um monstro, em suma. Do domínio do monstruoso são também os muitos retratos que se fizeram da família Gonsalvus (Gonçalves?). Num livro espantoso, Reading Pictures, que bem merecia ser traduzido entre nós, o não menos espantoso Alberto Manguel debruça-se sobre tais retratos, atenta e demoradamente. Os mais assombrosos são os de uma jovem menina, Antonietta Gonsalvus, conhecida pelo carinhoso diminutivo de Tognina. O seu pai, Petrus Gonsalvus, era natural das Canárias, ilha de Tenerife, e padecia de uma rara doença de pele, a Hypertrichosis universalis congenita, que fazia com que brotassem pêlos em todo o seu corpo, incluindo as mãos. Em criança, levaram-no para França, onde foi exibido na corte de Henrique II e aprendeu o latim e as belas-artes. Quando tinha 20 anos, casou com uma senhora holandesa, que lhe deu quatro filhos, todos eles afectados pelo mal paterno, isto é, peludos como bichos. Tognina nasceu nos Países Baixos, em 1572, e desde cedo maravilhou cortes e lugares selectos de toda a Europa, que ficaram boquiabertos com a sua figurinha pilosa. Depois de passarem uma temporada em Namur, na corte de Margarida de Áustria, os Gonsalvus instalaram-se em Parma, em 1583. Foi aí, quando se encontrava hospedada em casa da marquesa de Soragna, que Tognina foi retratada por Lavinia Fontana, afamada arista do maneirismo, que muitos dizem ter sido a primeira mulher a pintar nus femininos. Não sendo o único retrato de Tognina que se conhece, ele é, sem dúvida, o mais perturbador e inquietante. Vemos uma jovem ricamente vestida, profundamente humana nos atavios e no porte, de olhar tímido e doce, feições serenas, mas com a cara coberta por uma densa e arruivada penugem. Parece uma lebre ou esquilo, para sermos simpáticos. Nas mãos, uma folha de papel com a descrição do prodígio: "Das Ilhas Canárias foi levado ao Senhor Henrique II de França, Dom Pedro, o selvagem. Dali passou para a corte do duque de Parma, junto comigo, Antonietta, que agora estou na casa da Senhora Dona Isabella Pallavicina, marquesa de Soragna."

A Europa da altura, como explica Alberto Manguel, deleitava-se com tais monstros. O médico e cirurgião Ambroise Paré publicou por esse tempo os seus tratados sobre aberrações em forma de gente. Profundamente religioso, Paré dizia dos seus pacientes "eu o tratei, Deus o curou", e encarava os monstros como "exemplos da ira divina". A atracção pelo bizarro e pelos desvios da natureza era, obviamente, muito mais antiga, mas foi por volta dos séculos XVI e XVII que ganhou foros de disciplina científica, ensinada nas universidades e armazenada em formol nos gabinetes de teratologia (do grego, "estudo dos monstros"), que ainda hoje visitamos com um misto de repulsa e deslumbre. Era exactamente essa ambivalência de sentimentos que levava multidões a pagar bilhete para ver mulheres barbadas em feiras e noutros lugares, uma atracção muito popular no século XIX, e que se prolongou até meados do XX. Em Manhattan "45, Jan Morris diz que, no final da II Guerra, ainda se exibia em Nova Iorque a famosa Olga, a Mulher Barbuda, que, para acentuar o seu mistério, ora se apresentava como filha de um general húngaro ora como meia-irmã de um duque francês e, consoante as ocasiões, afirmava ter nascido em Paris, Moscovo, Xangai ou Potsdam. Na realidade, era natural da Carolina do Norte, tinha o nome prosaico de Jean Barnell, e os seus pais eram um judeu russo e uma irlandesa-indiana.

O nosso tempo já não tolera, por razões ditas "humanitárias", que mulheres com barba ou que anões facetos sejam exibidos em circos ou em espectáculos públicos. Todavia, não se perdeu o fascínio por aquilo que figuramos como singular e estranho, pelo bizarro horrível que, à falta de melhor, classificamos como "monstruoso". Os criminosos e os delinquentes são os novos monstros, que desempenham a função outrora exercida por mulheres hirsutas ou por gente com deformidades físicas. É ver o sucesso dos policiais nórdicos, ensopados de sangue e vísceras, das séries televisivas True Crime, ou a atracção fatal que temos por casos horripilantes e por serial killers. Isto para não falar, naturalmente, das esmagadoras tiragens de jornais que fazem do quotidiano macabro o seu "nicho de mercado", como agora se diz. A avidez das pessoas por tudo isso, sucedâneo contemporâneo da antiga obsessão por monstros imaginários e mulheres barbudas, explica-se pela necessidade que temos de nos sentirmos "diferentes" e "distantes" das excepções à regra da normalidade.

Quando conhecemos os meandros da Operação Teia e de tantas outras teias, ou assistimos a certas prestações macacas em São Bento, nas comissões de inquérito aos escândalos do BES e da CGD, acorre-nos logo ao espírito aquela frase de Arthur Schnitzler que diz: "Podes impedir um homem de roubar mas não de ser um ladrão." Muitos não se apercebem, no entanto, que a sociedade necessita de ladrões e de criminosos e que, por isso, ao invés de lhes tirarem as condecorações que porventura tenham, deviam até medalhá-los de novo, por bons e leais serviços. Os especialistas em criminologia falam, a este respeito, de "efeitos positivos do crime" e sustentam que a ordem social convencional, respeitadora das regras, precisa como de pão para a boca do desvio e da transgressão, e só pode sobreviver e manter-se como é, coesa e cumpridora, se existir criminalidade (desde que esta se mantenha, obviamente, dentro de certos níveis e patamares aceitáveis).



A criminalidade é essencial, desde logo, para que existia o chamado "efeito-contraste" entre "nós" e "eles", para que entre os cumpridores e os infractores da lei se crie uma salutar distância, psicológica e não só, e para que se estabeleça um cordão sanitário que nos faz crer, ilusoriamente, que os criminosos são seres diferentes das pessoas normais, nas raias do monstruoso. Entre nós e os criminosos, no entanto, a diferença é pouca, quase nenhuma. Na essência e em potência, todos somos monstros, apenas há uns que se acomodam às regras e reprimem os instintos e outros que, por causas várias, ultrapassam a ténue fronteira que distingue o bem e o mal. Estes, os transgressores, são fundamentais para que os primeiros se mantenham firmes e hirtos nos limites do conformismo e para que a maioria da cidadania continue a obedecer às leis e às convenções estabelecidas.

O crime e os criminosos são também essenciais para a neutralização dos sentimentos de culpa, para que possamos continuar a cometer os nossos próprios crimes e escapadelas mantendo a fachada do legalismo e da moralidade, na cómoda convicção de que bandidos são os outros, não nós. Graças ao crime alheio, um bom pai de família escandaliza-se e grita com a impunidade de Berardos e Salgados para depois bater melhor na mulher, receber a comissãozita da praxe ou praticar às noites a habitual falcatruazinha fiscal, sempre de cabeça erguida e consciência limpa. Monstros, somos todos.

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia

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