Em 1925, Albert Einstein pôs sua fórmula E = mc2 dentro da mala e veio dar um bordejo pela América do Sul, mais exatamente, Rio, Buenos Aires e Montevidéu. Aos 46 anos e já coberto de glórias, Einstein, se quisesse, poderia dar-se ao luxo de ficar em sua casa, em Berlim, lendo Kant, tomando água de coco pelo canudinho e sendo abanado com folha de bananeira por seus discípulos das diversas academias internacionais de ciência de que fazia parte. Mas não. Einstein sentia-se na obrigação de viajar para conhecer os cientistas dos outros países, discutir com eles a teoria da relatividade, instá-los a usar a ciência ao serviço da paz e, o que era uma preocupação pessoal, lutar pela causa judaica. Nos dois ou três anos anteriores, Einstein fora aos Estados Unidos, ao Médio Oriente, inclusive à Palestina, e ao Japão. E agora desembarcava no nosso quintal..Einstein passou uma semana no Rio, atendendo a compromissos científicos e oficiais. Nas horas vagas, quando era levado a passear pela cidade, tinha a companhia de um jovem jornalista chamado Austregésilo de Athayde, que falava impecável inglês com sotaque pernambucano. Reza a lenda que, ao perambular com o visitante por atrações como o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Vista Chinesa, a todo momento Athayde tirava um caderninho do bolso, lambia a ponta do lápis e tomava nota de alguma coisa. Normalmente, Einstein teria fingido não notar. Mas sua curiosidade de cientista falou mais alto.."O que o senhor tanto escreve nesse caderninho, Dr. Athayde?", ele perguntou..Austregésilo respondeu: "Sempre que tenho uma ideia, eu a anoto, Dr. Einstein.".Einstein suspirou, resignado: "Ainda bem que, até hoje, só tive uma ideia.".Bem, eu disse que era uma lenda..Com uma assiduidade mais para Austregésilo do que para Einstein, também anoto coisas em caderninhos que sempre levo comigo quando saio à rua. Podem ser ideias para esta coluna ou observações para algum livro em que eu esteja trabalhando. Faço isso com uma caneta esferográfica preta, objeto que me acompanha há décadas e ao qual devo boa parte da minha produção - muitos textos nascem dela, em táxis, aviões e até num dirigível no qual voei certa vez. É comum também que, ao ter uma ideia durante o sono, eu acorde e tome nota dela imediatamente num caderninho que mantenho ao pé da cama. É com essa mesma caneta que corrijo e reescrevo manualmente os textos, depois de repassados para o computador e impressos - a famosa canetada final..Até aí, tudo bem. O problema é quando sou visto anotando coisas à mão, em caderninhos, numa via pública..Até há pouco, não havia nada de mais nisto. Agora há. Tenho reparado que, ao me verem encostado num poste ou sentado num hidrante na esquina e garatujando num bloco ou caderno com aquele estranho objeto cilíndrico, as pessoas me olham diferente. Devem pensar que sou um pesquisador de audiência ou de opinião, daqueles que batem de porta em porta perguntando em quem vão votar. Devem pensar também que sou um leitor do relógio de eletricidade dos prédios - uma atividade que, em pleno século XXI, ainda precisa de ser feita à mão e por pessoas andando a pé. E, sendo eu morador do Rio, imagino que me tomem por apontador do jogo do bicho. O bicho, como se sabe, é uma lotaria clandestina, em que se aposta em números de 1 a 100, em grupos de quatro, cada qual representando um animal. Embora proibida por lei, é praticada abertamente e por todo mundo, inclusive pelos agentes da lei. O apontador é o humilde funcionário que recolhe as apostas das pessoas nas ruas..via GIPHY.Aconteceu-me noutro dia. Estava eu encostado num poste, a escrever qualquer coisa no meu caderninho, quando chega-me um gajo e diz: "Sonhei com o macaco esta noite. Meu nome é Fulano. Marca aí o grupo do macaco." E não queria acreditar quando eu lhe disse que não tinha nada a ver com o bicho, muito menos com o macaco com que ele sonhara..Ninguém mais escreve à mão na rua e, cada vez menos, em casa. Escrever à mão foi uma atividade que, um dia, separou o homem dos outros animais com que ele convivia nas proximidades da caverna - e que, de repente, pode se tornar uma arte perdida. Em vez de tomar nota de qualquer coisa em papeluchos, as pessoas usam agora o celular, o tablet, o computador. Particularmente, sou capaz de entender a preferência dessas pessoas. Mas como não uso celular nem tablet, e meu computador, pesando vários quilos, não é algo que eu viva transportando pelas ruas, continuo teimosamente a tirar o caderninho do bolso, destampar a caneta e escrever onde quer que esteja, sem ligar para o que os transeuntes possam estar pensando..E já estava me conformando com a possibilidade de ser o último da minha espécie quando li, na semana passada, uma entrevista do grande letrista da música popular brasileira, Paulo César Pinheiro. Se não o conhecem muito bem em Portugal, certamente conhecerão algumas músicas para as quais ele contribuiu com sua impressionante inspiração: Canto das Três Raças, com Mauro Duarte, Matita Perê, com Tom Jobim, Diálogo, com Baden Powell, a infecciosa Viagem, com João de Aquino, e a extraordinária Saudades da Guanabara, com Moacyr Luz e Aldir Blanc. Sim, todos esses são grandes sambas e canções dos anos 1970, 1980, 1990. Mas, pelo que li nessa entrevista, Paulo Cesar Pinheiro não evoluiu nada. Continua aprendendo e guardando de memória as melodias que os músicos lhe oferecem e criando para elas as letras que escreve à mão, num caderninho, enquanto faz compras na feira ou joga sinuca no boteco. Depois, grava tudo numa fita cassete. Aí pega o telefone - não o celular - e liga para o músico: "Estão prontas. Pode vir buscar.".Quanto a mim, às vezes me perguntam como vou fazer quando pararem de fabricar canetas e caderninhos. A resposta é: tenho estoque para durar até ao dia do Juízo Final - e, se calhar, o dia seguinte..Jornalista e escritor brasileiro, autor de Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta-da-China).
Em 1925, Albert Einstein pôs sua fórmula E = mc2 dentro da mala e veio dar um bordejo pela América do Sul, mais exatamente, Rio, Buenos Aires e Montevidéu. Aos 46 anos e já coberto de glórias, Einstein, se quisesse, poderia dar-se ao luxo de ficar em sua casa, em Berlim, lendo Kant, tomando água de coco pelo canudinho e sendo abanado com folha de bananeira por seus discípulos das diversas academias internacionais de ciência de que fazia parte. Mas não. Einstein sentia-se na obrigação de viajar para conhecer os cientistas dos outros países, discutir com eles a teoria da relatividade, instá-los a usar a ciência ao serviço da paz e, o que era uma preocupação pessoal, lutar pela causa judaica. Nos dois ou três anos anteriores, Einstein fora aos Estados Unidos, ao Médio Oriente, inclusive à Palestina, e ao Japão. E agora desembarcava no nosso quintal..Einstein passou uma semana no Rio, atendendo a compromissos científicos e oficiais. Nas horas vagas, quando era levado a passear pela cidade, tinha a companhia de um jovem jornalista chamado Austregésilo de Athayde, que falava impecável inglês com sotaque pernambucano. Reza a lenda que, ao perambular com o visitante por atrações como o Pão de Açúcar, o Corcovado e a Vista Chinesa, a todo momento Athayde tirava um caderninho do bolso, lambia a ponta do lápis e tomava nota de alguma coisa. Normalmente, Einstein teria fingido não notar. Mas sua curiosidade de cientista falou mais alto.."O que o senhor tanto escreve nesse caderninho, Dr. Athayde?", ele perguntou..Austregésilo respondeu: "Sempre que tenho uma ideia, eu a anoto, Dr. Einstein.".Einstein suspirou, resignado: "Ainda bem que, até hoje, só tive uma ideia.".Bem, eu disse que era uma lenda..Com uma assiduidade mais para Austregésilo do que para Einstein, também anoto coisas em caderninhos que sempre levo comigo quando saio à rua. Podem ser ideias para esta coluna ou observações para algum livro em que eu esteja trabalhando. Faço isso com uma caneta esferográfica preta, objeto que me acompanha há décadas e ao qual devo boa parte da minha produção - muitos textos nascem dela, em táxis, aviões e até num dirigível no qual voei certa vez. É comum também que, ao ter uma ideia durante o sono, eu acorde e tome nota dela imediatamente num caderninho que mantenho ao pé da cama. É com essa mesma caneta que corrijo e reescrevo manualmente os textos, depois de repassados para o computador e impressos - a famosa canetada final..Até aí, tudo bem. O problema é quando sou visto anotando coisas à mão, em caderninhos, numa via pública..Até há pouco, não havia nada de mais nisto. Agora há. Tenho reparado que, ao me verem encostado num poste ou sentado num hidrante na esquina e garatujando num bloco ou caderno com aquele estranho objeto cilíndrico, as pessoas me olham diferente. Devem pensar que sou um pesquisador de audiência ou de opinião, daqueles que batem de porta em porta perguntando em quem vão votar. Devem pensar também que sou um leitor do relógio de eletricidade dos prédios - uma atividade que, em pleno século XXI, ainda precisa de ser feita à mão e por pessoas andando a pé. E, sendo eu morador do Rio, imagino que me tomem por apontador do jogo do bicho. O bicho, como se sabe, é uma lotaria clandestina, em que se aposta em números de 1 a 100, em grupos de quatro, cada qual representando um animal. Embora proibida por lei, é praticada abertamente e por todo mundo, inclusive pelos agentes da lei. O apontador é o humilde funcionário que recolhe as apostas das pessoas nas ruas..via GIPHY.Aconteceu-me noutro dia. Estava eu encostado num poste, a escrever qualquer coisa no meu caderninho, quando chega-me um gajo e diz: "Sonhei com o macaco esta noite. Meu nome é Fulano. Marca aí o grupo do macaco." E não queria acreditar quando eu lhe disse que não tinha nada a ver com o bicho, muito menos com o macaco com que ele sonhara..Ninguém mais escreve à mão na rua e, cada vez menos, em casa. Escrever à mão foi uma atividade que, um dia, separou o homem dos outros animais com que ele convivia nas proximidades da caverna - e que, de repente, pode se tornar uma arte perdida. Em vez de tomar nota de qualquer coisa em papeluchos, as pessoas usam agora o celular, o tablet, o computador. Particularmente, sou capaz de entender a preferência dessas pessoas. Mas como não uso celular nem tablet, e meu computador, pesando vários quilos, não é algo que eu viva transportando pelas ruas, continuo teimosamente a tirar o caderninho do bolso, destampar a caneta e escrever onde quer que esteja, sem ligar para o que os transeuntes possam estar pensando..E já estava me conformando com a possibilidade de ser o último da minha espécie quando li, na semana passada, uma entrevista do grande letrista da música popular brasileira, Paulo César Pinheiro. Se não o conhecem muito bem em Portugal, certamente conhecerão algumas músicas para as quais ele contribuiu com sua impressionante inspiração: Canto das Três Raças, com Mauro Duarte, Matita Perê, com Tom Jobim, Diálogo, com Baden Powell, a infecciosa Viagem, com João de Aquino, e a extraordinária Saudades da Guanabara, com Moacyr Luz e Aldir Blanc. Sim, todos esses são grandes sambas e canções dos anos 1970, 1980, 1990. Mas, pelo que li nessa entrevista, Paulo Cesar Pinheiro não evoluiu nada. Continua aprendendo e guardando de memória as melodias que os músicos lhe oferecem e criando para elas as letras que escreve à mão, num caderninho, enquanto faz compras na feira ou joga sinuca no boteco. Depois, grava tudo numa fita cassete. Aí pega o telefone - não o celular - e liga para o músico: "Estão prontas. Pode vir buscar.".Quanto a mim, às vezes me perguntam como vou fazer quando pararem de fabricar canetas e caderninhos. A resposta é: tenho estoque para durar até ao dia do Juízo Final - e, se calhar, o dia seguinte..Jornalista e escritor brasileiro, autor de Chega de Saudade - A História e as Histórias da Bossa Nova (Tinta-da-China).