"Ninguém está preparado para nos fazer mal e nós sorrirmos de volta"
António Mateus foi durante anos delegado da Lusa e colaborador da RTP na África do Sul e, como tal, entrevistou Nelson Mandela duas vezes. "Em 1990 e em 1994. A primeira três meses depois de ele ser libertado [após 27 anos de prisão]. A segunda um mês antes de ser eleito presidente da África do Sul [o primeiro negro eleito democraticamente]", conta o jornalista português, de 58 anos, em conversa com o DN na sede da RTP em Lisboa.
Ele sabia o quê de Portugal? "Queria muito perceber qual era o verdadeiro português: o da imagem negativa do colonialista ou o da imagem positiva que ele tinha através dos relatos da tradição oral da tribo xhosa. Mandela sabia a história do galeão de São João, a primeira tragédia marítima portuguesa [que data de 1552]. Os náufragos que sobreviveram atravessaram o território dos xhosa e ficaram lá a viver com eles. Tiveram filhos. Então a imagem que guardaram dos portugueses era muito afável".
O que lhe respondeu? "Ele queria muito perceber: vocês afinal, culturalmente, são qual? São o colono? Ou o náufrago? E eu disse-lhe: somos todos. O ladrão, o oportunista, o desenrascado, o caótico, mas também somos o que dá a camisola pelo amigo, o que se comove no outono porque a flor caiu, somos isso tudo. E ele achava isso muito bonito".
Conseguir a primeira entrevista foi uma bulha, conta o jornalista, atualmente coordenador e apresentador do programa sobre política internacional Olhar o Mundo, na RTP. "Nós tínhamos que ir ao departamento de Comunicação do ANC e havia mais de 700 jornalistas de todo o mundo ali acreditados na África do Sul. Na altura os grandes pólos mundiais mediáticos eram a União Soviética, era Berlim dividida e era o Apartheid. Foi um período a nível mundial que arrastou muitas mudanças. Grande parte dos jornalistas séniores estavam baseados na África do Sul. Nós só no nosso andar tínhamos três prémios Pulitzer [risos]. Eu era um puto no meio daquilo tudo [risos]. Consegui a entrevista por ser muito chato e, por ter estado em Moçambique, também pela Lusa, conhecia alguns dos membros do ANC que tinham estado lá no exílio. Isso ajudou-me a chegar a Mandela".
Além das entrevistas, António Mateus também participou num sem-número de briefings off-the-record com Mandela. "Perguntámos-lhe: mas perdoou mesmo os que lhe fizeram mal? E ele lá disse que desculpar, desculpar, não desculpou, mas escolheu não odiar porque quando se guarda ódio de alguém é como andar sempre com uma pedra que pesa. E ele escolheu tirar a pedra dele e não ficar com ela. É possível fazer isso. Já experimentei. Uma pessoa tem duas escolhas: ou retalia ou olha para o outro e sorri. Ninguém está preparado para nos fazer mal e nós sorrirmos de volta".
Mas Mandela não queira, de todo, ser visto como um santo. "Ele dizia tanta vez: não vejam em mim um santo a não ser que acreditem que um santo é um pecador que continua a tentar". E, de facto, antes da prisão, o histórico do ANC não foi santo nenhum. "Eu explico isso num dos meus livros - 'Mandela: A Construção de um Homem'. Vi um homem diferente. Ele foi-se mudando muito como ser humano. Não era nada este homem lindíssimo de quem eu me fui despedir quando ele morreu [a 5 de dezembro de 2013]. Era um homem egocêntrico, intolerante, chauvinista, batia na primeira mulher, que era uma testemunha de Jeová", conta.
E acrescenta: "O facto de ele ter nascido tão imperfeito, tão aquilo que nós não gostamos nada numa pessoa e ter escolhido transformar-se naquele ser humano tão lindo faz-nos acreditar que se nós quisermos, sublinho se nós quisermos, porque é uma escolha nossa, nós também podemos mudar-nos.Se não, arranjamos alibis: Ah, porque é que eu vou mudar se são todos uns parvalhões à minha volta? Porquê? Por mim. Quando surge aquela tendência que temos para replicar o mal, temos que pensar que não, alguém tem que quebrar o ciclo".
Conhecer Mandela, mudou a vida deste jornalista. "Quando tive cancro, por exemplo, passei a viver cada dia como uma bênção. Deixei de me focar no cancro e passei a focar-me no fascínio que é termos a oportunidade de mudar o mundo todos os dias. Ser melhor colega, amigo, pai, marido. É focar no positivo. É escolher ser a mudança que sonhamos para o mundo". Simples. Mas não fácil. Primeiro, insiste, "é preciso querer".
A coisa mais maravilhosa que Nelson Mandela, que passou 27 anos privado de liberdade e da família, empresta à nossa existência, nota António Mateus, é "essa noção de que o tempo é tão precioso, cada minuto é tão precioso, que quando ele acabar nós já não temos nada disso. Quantas vezes é que nós pensamos nisso? É como amarmos alguém e chegarmos a casa e darmos um beijo de esguelha na outra pessoa e depois ir à procura dos sapatos. Nós dedicamos muito pouco tempo na vida ao que realmente importa e a cada pessoa".
Admitindo que, atualmente, o legado de Madiba não está a ser seguido na África do Sul, "porque o que está a acontecer é que é cada um por si", o jornalista constata que, ao contrário do exemplo dele, "hoje nós gastamos zero por cento do nosso tempo a elevar os seres humanos à nossa volta".
"Mandela tinha uma coisa fantástica que era que ele queria entender os outros. Fazia uma coisa extraordinária: fascinava-se com aquilo que era diferente dele. Nós, normalmente, temos medo, reprimimos, tentamos encaixar os outros numa matriz que nós já conhecemos. Eles nunca encaixam. É um exercício inútil na vida. E é muito mais fascinante - e nós temos muito mais hipóteses de fazer o mundo feliz e de sermos mais felizes - se dedicarmos a nossa existência a elevar as pessoas à nossa volta", refere António Mateus.
O jornalista admite que hoje em dia dá muito mais valor a passar tempo de qualidade com os filhos ou a dizer todos os dias aos pais que os ama, enquanto eles ainda estão vivos, do que ao facto de ter ou não grandes cargos, grandes salários ou a importar-se com a fama que tem, que teve ou que poderia vir a ter. Aquelas coisas, garante, são as únicas que realmente importam.
"Mandela baixava-se para elevar os outros. Ele ia ter com qualquer pessoa que acabava de conhecer e fazia com que ela se sentisse a pessoa mais especial do mundo. E as pessoas depois tentam estar à altura daquilo que se espera delas. A maneira de estar na vida, faz com que as pessoas vão buscar o melhor de si, nós raramente fazemos isso uns com os outros. Estamos mais preocupados em polir o nosso ego do que ir buscar o melhor dos outros como seres humanos e até profissionalmente".
Por ocasião do centenário do nascimento de Mandela, que se assinala esta quarta-feira, o jornalista da RTP será um dos oradores de um conjunto de seminários organizado pela Academia de Líderes Ubuntu do Instituto Padre António Vieira (IPAV), com o qual colabora. "As iniciativas em que participo são como cidadão. "Eu comecei com iniciativas naquilo que eram as casas de correção, eu vou a um centro que fica ali em Caxias, que tem jovens muito problemáticos, que mataram os pais e que fizeram 30 por uma linha, e é impressionante como eles se fascinam a ouvir falar de Mandela".
António Mateus, que escreveu o livro 'Mandela: O Rebelde Exemplar' a pensar precisamente nos mais jovens, costuma também contar a história do ex-presidente sul-africano em liceus. "Eu vou muito falar sobre isto e eles olham para mim, como quem diz:"mas existem pessoas assim?" E é tão bom. É uma coisa que nos redime. O que é que interessa se uma pessoa tem um grande nome, se aparece na televisão, o que é que isso vale? Vale zero".
Por outro lado, conclui, "ter ali um adolescente, que só anda por aí a dizer palavrões e a fazer disparates, a ouvir-te durante meia-hora e, no final, dizer-te "um dia quero ser como tu" é muito mais fixe. E não é por eu ter muitos bens materiais, é por ter coração".