Regime iraniano entre a contestação interna e a crise externa
Quem visite a agência Fars ou o site da Press TV em inglês não encontra desvios à linha da teocracia xiita. No entanto, algumas brechas foram abertas quando se tornou impossível negar as evidências de que o Boeing 737 da Ukraine Airlines foi derrubado na quarta-feira. Depois de dias de negação, o presidente Hassan Rouhani admitiu que um "erro humano" causou a queda do avião, ao passo que o comandante da força aérea dos Guardas da Revolução, general Amirali Hajizadeh, explicou que a aeronave foi confundida com um míssil de cruzeiro.
Com uma abertura incomum, alguns jornais iranianos criticaram no domingo a forma como as autoridades lidaram com a morte dos 176 passageiros e tripulantes. O Iran desenhou na manchete a cauda de um avião com os nomes das vítimas e "Imperdoável" no título. "Peçam desculpas, demitam-se", foi a manchete do jornal reformista Etemad, enquanto o diário Hamshahri de Teerão titulou "Vergonha" em letras vermelhas na primeira página.
Horas antes, na sequência de uma vigília em homenagem aos mortos (ou de uma manifestação, segundo as autoridades) que decorreu no sábado à noite na Universidade Amir Kabir, em Teerão, as palavras de ordem de centenas, como "morte ao ditador" e "morte aos mentirosos", foram noticiadas pela Fars. A agência informou ainda que os presentes foram reprimidos pela polícia depois de terem exigido a demissão e a acusação dos responsáveis.
O embaixador britânico Rob Macaire, que esteve no local, foi mais tarde detido e acusado de participar numa "reunião ilegal", no que foi mais uma acha para a fogueira diplomática. Macaire desmentiu no Twitter que participou num acontecimento político. "Eu não estava a participar em manifestação alguma! Fui a um evento anunciado como uma vigília para as vítimas da tragédia #PS752", escreveu o diplomata.
Ao quarto dia de protestos nas ruas - embora uma fração em comparação com os tumultos desencadeados em novembro com o aumento do preço dos combustíveis e a repressão que se seguiu -, o regime respondeu com uma contramanifestação. Em frente aos estudantes que se manifestaram contra a República Islâmica, elementos da milícia Basij pegaram fogo a uma fotografia em tamanho real colada a um cartão do embaixador britânico, além das bandeiras do Reino Unido e dos Estados Unidos, enquanto mulheres gritavam "Morte ao Reino Unido".
O porta-voz do setor judicial disse que Macaire é "um elemento indesejável". Na véspera, o embaixador iraniano em Londres foi chamado pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros britânico para ouvir a "forte objeção" à detenção de que o diplomata foi alvo.
Noutro sinal de revolta, um grupo de artistas cancelou sua participação no festival Fajr, realizado a cada ano no aniversário da revolução islâmica de 1979, noticiou o jornal Hamshahri, propriedade da Câmara Municipal de Teerão,
O diretor do jornal pró-reformista Shargh, Mehdi Rahmanian, vê nas manifestações uma "verdadeira clivagem entre o povo e as autoridades". "Espero que a [contenção policial] continue e que não se percam vidas, porque isso pode ser um catalisador para mais protestos", disse à AFP.
Em resposta à pressão interna e internacional, o presidente iraniano afirmou que todos os responsáveis pelo incidente devem ser punidos. "Para o nosso povo é muito importante neste incidente que todo e qualquer um que tenha sido responsável ou negligente enfrente a justiça", disse Hassan Rouhani. "Não pode ser só a pessoa que apertou o botão a ser culpada. Há outros, e quero que isto seja explicado devidamente às pessoas", continuou. Rouhani defendeu a criação de um tribunal especial com "dezenas de especialistas". Concluiu, com um aviso: "O mundo inteiro vai estar de olho."
O avião que tinha descolado com destino a Kiev foi abatido numa altura em que as Forças Armadas iranianas estavam em alerta máximo após o ataque a uma base iraquiana com tropas norte-americanas, em retaliação ao ataque que matou Qassem Soleimani, o líder das operações externas dos Guardas da Revolução, a Força Qods.
Se é certo que Rouhani culpou os Estados Unidos de serem "a raiz de todas as mágoas", disse por outro lado que não invalida que se tenha de investigar as causas do desastre aéreo.
Pouco depois, num anúncio transmitido na televisão, o porta-voz do setor da justiça, Gholamhossein Esmaili, informou que foram efetuadas detenções, sem no entanto entrar em pormenores. "Foram feitas extensas investigações e algumas pessoas foram presas", disse.
A França, a Alemanha e o Reino Unido acionaram o mecanismo de resolução de diferendos do acordo nuclear para forçar o Irão a cumprir os compromissos assumidos em 2015, num processo que será supervisionado pela União Europeia.
O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, garantiu que o processo não prevê a reposição de sanções a Teerão, e que o objetivo é "resolver questões relacionadas com a instauração do acordo, no âmbito da comissão conjunta". Borrell, que vai supervisionar o processo por ser coordenador da comissão conjunta do acordo, adianta que o mecanismo de resolução de disputas exige "intensos esforços de boa-fé por parte de todos".
"À luz da perigosa escalada de violência no Médio Oriente, a preservação do Plano de Ação Conjunto Global [nome oficial do acordo nuclear] é agora mais importante do que nunca", declarou em Estrasburgo.
O acordo nuclear foi subscrito pelo Irão e pelos países com assento no Conselho de Segurança da ONU (Estados Unidos, Rússia, China, França e Reino Unido), mais a Alemanha, para restringir a capacidade de Teerão em desenvolver armas nucleares. Em troca, a comunidade internacional levantou parte das sanções.
No entanto, em maio de 2018, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos se retiravam do acordo e voltavam a aplicar sanções ao Irão, o que levou à paralisia da economia iraniana e a um recrudescimento da tensão no Médio Oriente. O Irão, por sua vez, anunciou que ia deixar de cumprir os limites de enriquecimento de urânio.
Em resposta, o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Irão, em comunicado, advertiu que a resposta será "adequada e decisiva", embora tenha declarado que a República Islâmica está "totalmente preparada para enfrentar qualquer tipo de esforço construtivo para manter o importante acordo internacional". Porém, "se os europeus quiserem abusar [desse processo de resolução de disputas], devem estar preparados para aceitar as consequências, que já lhes foram enunciadas".
Também Moscovo, aliada do Irão na guerra na Síria, saiu em defesa de Teerão e mostrou incompreensão com o anúncio da abertura do processo. "Não excluímos que as ações irrefletidas dos europeus possam originar uma nova escalada em torno do acordo sobre o nuclear iraniano e tornarem impossível a sua aplicação no quadro inicialmente previsto", declarou em comunicado o Ministério dos Negócios Estrangeiros russo. "O mecanismo de resolução de diferendos foi criado para fins totalmente diferentes. Os motivos da dificuldade em aplicar o acordo são sobejamente conhecidos e não estão relacionados ao Irão mas antes dos Estados Unidos", disse o ministério tutelado por Serguei Lavrov.
Mas se as chancelarias dos três países europeus reafirmaram querer salvar o acordo nuclear, o primeiro-ministro britânico Boris Johnson saiu a terreiro a defender Donald Trump, em aparente contradição com a posição do seu ministério. "Se vamos livrar-nos dele [o acordo nuclear], vamos substituí-lo com um acordo de Trump", disse Johnson em entrevista à BBC. "Seria um ótimo caminho", disse, sem explicar que acordo seria esse.
O mecanismo permite que qualquer parte no acordo convoque a comissão conjunta de representantes de todas as partes. A comissão conjunta, que deve reunir-se ainda neste mês em Viena, tem 15 dias para resolver o diferendo, ou, se as partes concordarem, mais tempo.
Se o problema ainda não estiver resolvido, qualquer parte pode encaminhá-lo para os ministros dos Negócios Estrangeiros, assim como para um conselho consultivo de três membros, que novamente tem pelo menos 15 dias para resolvê-lo. Se o diferendo se mantiver, a comissão conjunta considera o parecer do conselho consultivo. O último passo é notificar o Conselho de Segurança da ONU e, se este estiver de acordo, as sanções das Nações Unidas seriam outra vez aplicadas. No entanto, e dada a posição manifestada por Moscovo, esse cenário não deverá ocorrer.
As sanções da ONU incluem um embargo de armas que deverá expirar em outubro.