Rampa deslizante
Já tive ocasião de escrever que a eutanásia não é propriamente uma questão de liberdade, da liberdade de cada um poder decidir quando e como morrer. Esse é um argumento muito usado, mas é incorreto. Em parte alguma dos projetos em discussão, como em nenhuma das pouquíssimas legislações aprovadas no mundo sobre eutanásia, se diz que qualquer pessoa pode, a qualquer momento, por qualquer motivo, chegar, pedir para ser morta, e ser morta.
Se fosse uma questão de liberdade, seria assim. Mas como não é, há um conjunto de requisitos mais ou menos apertado: haver sofrimento duradouro e insuportável, por exemplo, ou estarmos perante doença fatal, ter de haver parecer médico conforme, etc.
Ou seja, nem todos podem chegar ao Serviço Nacional de Saúde (SNS) e pedir para serem mortos: nem todos podem usar a sua liberdade para a eutanásia - apenas podem aqueles que os deputados considerarem que podem.
Não sendo uma questão de liberdade, por que razão é esse argumento da liberdade invocado por aqueles que sistematicamente afirmam que a eutanásia é um avanço e que não há que entrar em pânico e inventar coisas porque isto vai ser só para casos residuais, como se a liberdade só existisse em casos residuais?
Esse argumento é invocado porque ele é atrativo e convincente, já que todos sentimos querer ter algo a dizer sobre a nossa morte. Postos perante o dilema "queremos ser nós ou os outros a decidir?", há uma natural tendência para querer que sejamos nós.
O ponto está, já o demonstrei, que não somos nós, mas os deputados e depois a máquina do Estado, do SNS, a decidir (o mesmo SNS que funciona como funciona, com listas de espera de anos, com urgências infindáveis...).
Mas nem é esse o principal problema do argumento da liberdade, já que cada um tende a puxar pelos argumentos que lhe parecerem fortes.
O principal problema é que ele faz assentar a eutanásia num pressuposto que depois permitirá tudo o resto: se aquilo que está em causa é a liberdade de cada um decidir como e quando quer morrer, que argumentos serão usados para impedir que a eutanásia se aplique em casos de doenças não fatais, ou em casos de sofrimento não duradouro, ou em casos de depressões profundas, ou em casos de menores devidamente autorizados por pais e médicos? Não está em causa, nesses casos todos, a liberdade de alguém decidir como e quando morrer de forma digna? Que argumento vai ser usado para lhes dizer que essa liberdade não existe? O argumento de que não existe porque há deputados que não querem?
A rampa deslizante de que se fala na eutanásia (e que é visível nos países que a legislaram) nasce aqui, e não de um qualquer projeto conspirativo que exista para fazer as pessoas morrer. Nasce do pressuposto de que qualquer pessoa pode decidir como e quando quer morrer e tem direito a pedir ao Estado que a mate: uma vez aceite este princípio, todas as restrições ou critérios terão tendência provisória, porque valerão pouco perante o valor da liberdade.
Advogado