Quer menos carros em Lisboa? Pergunte-me como

Nada contra a proposta de limitar a circulação na zona da Baixa-Chiado. Só gostava de perceber melhor a lógica, como vai funcionar e sobretudo se vai funcionar - porque o historial não aponta nesse sentido.
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Começo por uma declaração de interesses: sou há mais de 30 anos moradora no centro de Lisboa. Já morei no Bairro Alto e em São Bento e este ano fará 24 anos que vivo na zona da Baixa. Não tenho automóvel e sempre defendi que a prioridade nas cidades deve ser dada aos peões e aos transportes públicos. É aliás por pensar assim que escolho viver onde vivo, e que tento depender o menos possível de transporte motorizado na minha vida quotidiana.

Não posso pois ser mais a favor de limitações a circulação e a estacionamento, e de tudo o que inverta a lógica de subordinação ao automóvel que há décadas é a do desenvolvimento de Lisboa e do país.

Se me propõem reforçar isso na zona onde vivo, faço as compras básicas, vou jantar fora e vivem vários dos meus amigos acho fantástico. Diminuir a poluição e o número de carros que entram? Ótimo. Reservar todos os lugares de estacionamento à superfície para residentes, criando também mais vagas para eles nos parques existentes? É o que defendo há anos. E porquê, perguntam, se nem carro tenho? Muito simples: porque acho fundamental dar melhores condições aos habitantes dos centros - nem todos podem como eu dar-se ao luxo de não ter carro - e porque se quem quer trazer o carro para o centro da cidade souber que vai ter de metê-lo num parque, gastar uma nota e talvez nem tenha lugar, pensa duas vezes: é um fator de dissuasão.

Mas, na verdade, há algum tempo que na zona da Baixa é assim: o estacionamento à superfície está reservado para moradores, com as exceções de hotéis, de cargas e descargas e pouco mais. Sucede que durante esse tempo, ou seja, até hoje, os residentes se queixam de que esses lugares estão a maior parte do tempo ocupados por carros das mais variadas origens, não havendo da parte quer da polícia quer da EMEL (Empresa Municipal de Mobilidade e Estacionamento de Lisboa) qualquer ação fiscalizadora no sentido de penalizar o abuso. Ora sabemos o que sucede quando não se penaliza o abuso: este é institucionalizado.

É infelizmente isso que temos, e basta passear pela zona que está marcada para constituir a ZER - Zona de Emissões Reduzidas - da Baixa-Chiado para o constatar. Ainda na quinta-feira, o dia em que Fernando Medina, o presidente da Câmara, esteve em duas sessões de esclarecimento sobre o plano da ZER, fotografei quatro automóveis estacionados ilegalmente na Praça da Figueira (onde há um parque de estacionamento). E por ilegalmente refiro-me a no meio da estrada. O mesmo sucede todos os dias no Martim Moniz, onde também há um parque de estacionamento, e não raro o vi no próprio Rossio. No largo Adelino Amaro da Costa passo a vida a ver carros e até camiões de várias toneladas em cima do respetivo pavimento de lioz, e mais carros e camionetas em cima dos passeios da rua, obrigando os peões a ir pela estrada, também são comuns. É tudo comum, e não vejo nada a suceder para o impedir.

Aliás, deixem-me dizer que até 2017 - leram bem, 2017 - era permitido aos monstruosos camiões de turistas subirem até à Sé e ali parquearem aos dois e três, ocupando toda a estrada, causando enormes engarrafamentos e perigo (por passar a haver apenas uma faixa para os carros que subiam e desciam da Graça) e um enlouquecedor coro de buzinas nas horas de ponta, enquanto um agente da polícia municipal assistia, imperturbável (minto: os agentes em causa "ajudavam" os camiões nas manobras para estacionar). Foi preciso um grupo de vizinhos fazer um abaixo-assinado e requerer ação urgente à autarquia para que fosse decretada a interdição de circulação na Baixa desse tipo de pesados, que costumavam também parar no Rossio, do lado da antiga pastelaria Suíça, entaipando todo esse lado da praça.

Parece incrível, mas sim, isto sucedia, como chegou a suceder, até há poucos anos, os passeios da Avenida da Liberdade transformarem-se em parque de estacionamento na época do Natal e em dias de concerto no Coliseu. E continua a suceder com os tuk-tuks, que junto à Sé ocuparam o lugar onde antes parqueavam os camiões de turistas e todo o espaço que encontrem livre (os mesmos tuk-tuks que desde 2017 era suposto serem todos elétricos e ainda não são - porquê?).

Este problema com a fiscalização do estacionamento e de tudo o resto que diga respeito a veículos motorizados foi aliás admitido, como se de inevitabilidade ou sina se tratasse, por Medina na sessão de esclarecimento para a freguesia de Santa Maria Maior e apresentado como um argumento a favor da ZER.

Tenho dificuldade em perceber porquê. Que me leva a crer que quando a ZER entrar em vigor - o que está previsto suceder a velocidade supersónica, já a partir de julho - a fiscalização vai ser o que nunca foi? Dizem-me que porque quem passar as entradas da ZER, que vão ter câmaras para registar as matrículas, estará a violar um sinal de proibido e ao fim de poucas transgressões perde a carta. OK, pode ser. Mas que vai acontecer nas zonas mesmo ao lado da ZER (como a rua onde vivo)?

A situação das colinas vizinhas da ZER (a do Bairro Alto/Santa Catarina e a da Sé/Castelo/Alfama) foi de resto um dos pontos mais quentes da reunião de Santa Maria Maior. É que essas duas colinas ficam, de acordo com o plano, "cortadas" uma da outra: quem ali vive deixa de poder atravessar a Baixa no seu automóvel. Medina mostrou abertura para alterar essa regra, permitindo aos moradores vizinhos que atravessem a ZER e possam, nela, estacionar à superfície. Mas as apreensões estão longe de se esgotar aí: o que tememos é que haja nas duas envolventes uma intensificação do tráfego e da pressão no estacionamento. A Câmara diz que acha que isso não vai acontecer, mas não nos apresentou nenhum estudo que sustente essa ideia.

E a verdade é que conhecendo os portugueses sabemos que pelo menos nos primeiros tempos - que serão anos - a tendência será trazer o carro até o mais perto possível, e tentar estacionar "onde der". As ruas que ficarão "abertas", ou seja, que escoarão todo o tráfego que vai contornar a ZER, como as da Madalena, Alecrim e Misericórdia - por acaso todas com uma pendente pronunciada, o que significa que produzem mais poluição - poderão tornar-se pontos ainda mais negros, como todas as que a elas conduzem.

É possível que o otimismo da Câmara passe por achar que ao fim de um tempo de martírio as pessoas começarão a procurar alternativas - será assim. Mas e até lá? Não haverá uma forma mais eficaz e menos penosa para todos de dissuadir o trazer de carro para o centro? E por que motivo parece impossível pôr a polícia e a EMEL a realmente fiscalizar o estacionamento, e não apenas a multar quem não pôs moedas no parquímetro?

Acresce que, sendo o sistema de transportes públicos de Lisboa o que é - claramente insuficiente -, e constituindo o elétrico 28, que está sempre à cunha de turistas, o único meio de atravessamento entre as colinas, é espantoso que um plano como este não apresente desde logo um reforço da oferta nesse percurso. Disse Medina que a "carreira de bairro" que visa esse reforço só surgirá no fim do ano, ou seja, depois da entrada em vigor da ZER. Algo está muito errado num plano que quer acabar com o império do carro e não começa por oferecer alternativa.
É que, afinal, não se trata, pelo menos na minha perspetiva (e de muitos dos meus vizinhos), de achar o plano "demasiado radical". Acho-o é pouco coerente, demasiado limitado, pouco pensado e sobretudo muito mal explicado. Espero que os próximos dias - a aprovação do plano na Câmara está calendarizada para março (!) - permitam melhorar a comunicação e o debate. É mesmo importante que isto avance - mas bem.
Jornalista

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