O ocaso de Merkel 

A política alemã está cristalizada numa ansiedade pós-Merkel, sendo certo que a chanceler continua no poder. As transformações em curso são demasiado importantes para o país e para a Europa, mas o seu acompanhamento continua a ser desolador. Vale a pena inverter isto.
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A nossa obsessão com o Brexit e com Donald Trump tem-nos desviado de outras latitudes não menos importantes para os interesses de Portugal. A Espanha tem sido acompanhada com algum detalhe, tal como a França, mas é a Alemanha que mais atenções precisa. É, arrisco dizer, o país desta linha de prioridades estratégicas cuja política interna menos seguimos, menos empatia nos gera, mas o mais relevante para os nossos destinos nacionais e europeus. A Alemanha devia ter na nossa imprensa e no pensamento estratégico nacional um lugar de destaque permanente.

O ano de 2019 terminou com uma primeira ameaça de instabilidade, dentro de um quadro de ansiedade latente desde que Merkel anunciou que não se recanditaria em 2021, altura em que cumprirá 16 anos na chancelaria. Esse ameaço chamou-se congresso do SPD, parceiro de coligação em onze destes anos, mas em acentuada queda eleitoral e ainda mais nas sondagens. Em dezembro, jogando o atual ministro das Finanças (Olaf Scholz) a disputa da liderança, viu os militantes escolherem uma dupla da ala mais à esquerda, frontalmente contestatária da grande coligação e defensora da revisão rápida dos acordos assinados em 2018.

As vitórias de Norbert Walter-Borjans e Saskia Esken fizeram tremer os defensores da sacrossanta estabilidade governativa, para mais num clima de arrefecimento económico que roça a estagnação. No momento em que uma aliada de Merkel se sentava no 9.º andar do Berlaymont como a primeira alemã presidente da Comissão Europeia em 60 anos, a chanceler tinha em casa uma potencial frente disruptiva no fim do seu aclamado magistério político.

Apesar do pico de ansiedade, certo é que o início do novo ano esfriou as intenções de rutura governativa: além de nenhuma sondagem favorecer o SPD em eleições antecipadas, coisa que os alemães não estão habituados nem apreciam particularmente, dificilmente seria uma opção de governo no novo ciclo em função do crescimento sustentado dos Verdes. Mas se este princípio de ano parecia ter acalmado a frente política, não deixou de sinalizar o fraco desempenho económico, projetado pela Comissão Europeia para 2020, na cauda dos 27 (1,1%), a par da França e só atrás de Itália (0,3%).

O insipiente comportamento das três maiores economias europeias não favorece nenhuma boa perceção sobre a saúde da moeda única e terá, inevitavelmente, impacto nas economias mais expostas. Vale a pena lembrar que isto ocorre em paralelo à sensível gestão das negociações comerciais neste período de transição do Brexit, à reta final das negociações do próximo quadro orçamental da União Europeia, à pressão que China e EUA estão a exercer sobre as redes 5G na Europa e à presidência alemã da União Europeia no segundo semestre de 2020, palco de duas importantes cimeiras com a China e a União Africana.

A política alemã pode não nos suscitar a maior das empatias, mas é suficientemente importante em todas as dinâmicas europeias para ser vista como a que mais impactos cria nas várias políticas nacionais. É por isto fundamental tirar a grande fotografia europeia com epicentro em Berlim e a grande fotografia alemã com múltiplos efeitos comunitários. Os dois fluxos vão continuar a alimentar-se mutuamente.

Angela Merkel continua a ser uma política apreciada pelos alemães, mas cada vez menos na CDU. Nunca foi uma grande estratega, preferiu sempre o silêncio e a gestão contemplativa dos tempos políticos a intervenções de choque para se ir impondo. Esse estilo terá alguns méritos, mas também riscos elevados. A chanceler é, acima de tudo, uma gestora de crises permanentes, umas vezes com mais sucesso do que noutras. O balanço, eleitoralmente, tem sido valorizado, e o seu centrismo acabou por consolidar não uma base alargada de centro-direita clássica, mas sim uma grande coligação sociologicamente mais alargada, que vai do eleitorado da CDU até ao FDP, passando pelo SPD e pelos Verdes. Este arco está hoje em declínio por pressões antissistémicas várias, mas também como efeito indisfarçável da erosão do tempo de um poder personalizado.

Merkel não tem, por isto, substituto político, ideológico ou temperamental. A escolha por Annegret Kramp-Karrenbauer (AKK) não só foi arriscada como foi um falhanço absoluto. Depois do intervalo de acalmia em janeiro, entrámos novamente na ansiedade permanente. AKK foi lançada às feras da política federal sem experiência a esse nível. Liderar um partido muito dividido sem ser aclamada em congresso era por si só uma tarefa exigente, mas mais ficou quando a tutela do seu sucesso permaneceu na chanceler. Só a saída de cena de Merkel permitira a AKK um espaço indispensável na conquista de autoridade política, característica essencial perante a mínima crise.

Assim foi, há dias, na Turíngia, com a CDU local a apertar a mão da AfD, trazendo-a à solução governativa, rompendo o cordão sanitário em vigor desde o pós-guerra e contra a expressa vontade de AKK. Desautorizada num primeiro momento, foi-o novamente quando tentou que o partido convocasse novas eleições, embrulhando-se numa confusão sem fim. Não lhe restou outro caminho que não a demissão, libertando-a para a impopular pasta da Defesa, uma tarefa que já dificilmente a projetaria como futura líder. Com isso, ficou oficializada a má estratégia de Merkel para a transição faseada de poder, reaberta dois anos depois com nova luta pelo rumo ideológico da CDU, seja mais na linha de continuidade, eventualmente com Armin Laschet, ou mais à direita com Friedrich Merz, Jens Spahn ou até Markus Soeder. Ou esta clarificação se precipita ou é mais uma frente a juntar às indefinições estruturais do governo federal (na prática um executivo de gestão), do SPD, e da política europeia da Alemanha. Em última análise, dos grandes debates tecnológicos, da economia verde e do euro. Ou seja, é o caminho estratégico da União Europeia que sai prejudicado.

Sendo a única certeza da política alemã a não recandidatura de Angela Merkel, convinha que o seu ocaso tivesse outra dignidade. Ao que parece, ninguém está muito disponível para dar um especial contributo. Nem mesmo ela.

Investigador universitário

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