O Brasil ex-católico

Uma nova maioria evangélica ameaça recriar o país, expurgando-o de suas raízes negras e indígenas, do Carnaval e da alegria.
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Nelson Rodrigues, escritor brasileiro nunca por demais citado, escreveu há 50 anos: "Um dia, o Brasil será o maior país ex-católico do mundo." Na época, isso parecia impossível, um delírio de Nelson, e com razão. O Brasil tinha mais católicos até do que a Itália, matriz do catolicismo - segundo todos os recenseamentos, eles eram esmagadores 80% da população brasileira, com os evangélicos, espíritas e judeus chegando a pouco mais de 10% juntos e deixando as migalhas restantes da pontuação para os adeptos dos cultos afro e para os que se diziam sem religião. E não havia nada de estranho nisso.

Era como se o Brasil tivesse nascido católico. Um quadro famoso, A Primeira Missa, do pintor Victor Meirelles, de 1860, mostra um evento ocorrido aqui no dia 26 de abril de 1500, quatro dias depois da chegada de Pedro Álvares Cabral: a missa celebrada por frei Henrique Coimbra, capelão de Cabral. Inspirado nas anotações de Pero Vaz de Caminha, escrivão da nau, Meirelles retratou o religioso, os oficiais e os marinheiros ajoelhados aos pés do altar e da grande cruz, cercados por dezenas de índios - estes, de pé, escorados em suas lanças, preguiçosamente deitados na relva ou empoleirados nas árvores, todos parecendo interessadíssimos no que estavam vendo e ouvindo. Claro que, ao pintar uma cena acontecida 360 anos antes, Meirelles deve ter tomado algumas liberdades. Não é provável, por exemplo, que, falando exclusivamente tupi, os indígenas já fossem capazes de acompanhar uma missa em latim. Mas, e daí? Pelos séculos seguintes, mesmo falando exclusivamente português, os brasileiros continuaram acompanhando as missas em latim e, pelo visto, percebendo tudo - porque a população católica nunca parou de crescer.

Até agora, claro - porque a previsão de Nelson Rodrigues está se confirmando. Segundo pesquisa do Instituto Datafolha, 50% dos brasileiros ainda são católicos nos dias de hoje e 31%, evangélicos. Mas, em 2028, os evangélicos já terão ultrapassado os católicos - 37,2% contra 36,4% - e, em 2040, serão exatamente o dobro: 45,4% contra 22,7.

Uma maneira prática e imediata de comprovar essa variação está no futebol. Há 20 anos, o comum era que, ao entrar em campo para uma partida, nossos jogadores beijassem a medalhinha e fizessem o sinal da cruz. Hoje, raros são os que seguem esse ritual. Em compensação, inúmeros agora seguem o rito evangélico: ajoelham-se abraçados e levam os dedos ao céu depois de cada golo. E, ao serem entrevistados ao fim das partidas, atribuem a vitória ao Senhor --- por algum motivo, nunca O responsabilizam pela derrota.

Naturalmente, essa transformação no cenário futebolístico apenas reflete o que acontece na sociedade, com o avanço de uma determinada fé e o recuo da outra. Por sorte, no caso do futebol e de outras práticas, essa variação de fé não altera a vida do grupo. Jogadores católicos e evangélicos continuam a atuar juntos numa mesma equipa, trocam passes entre si e se elogiam uns aos outros, como se o clube a que pertencem estivesse acima de suas crenças individuais. Em outras disciplinas, no entanto, isso não está ocorrendo.

Pelo que me contam, músicos de fé evangélica estão recusando propostas para trabalhar com certos cantores para não ter de acompanhá-los em músicas que falam de santos católicos - uma delas, a toada sertaneja Romaria, de Renato Teixeira, cuja letra diz "Sou caipira, Pirapora / Nossa Senhora de Aparecida", consagrada por Elis Regina nos anos 70. O mesmo estaria acontecendo nos institutos oficiais de música, em que, também em nome de sua fé, pianistas classicamente formados estariam se recusando a executar peças de Villa-Lobos, Guerra Peixe, Waldemar Henrique e outros compositores que exploraram a rica influência negra e indígena na música brasileira. E talvez nem todos saibam que, em seu fim de vida, nos anos 90, o violonista Baden Powell, um dos gigantes da bossa-nova, converteu-se a uma seita evangélica e eliminou de seu repertório os afro-sambas que compusera com Vinicius de Moraes, apenas porque eles homenageavam entidades do candomblé, como Iemanjá, Ossanha, Exu, Xangô e o Caboclo Pedra-Preta - subitamente convertidos, para Baden, em demónios africanos.

A intolerância se espraia. Nas escolas brasileiras de orientação evangélica no ensino básico, as professoras estão proibindo as crianças de promover em seus terreiros as festas juninas, de secular tradição no Brasil - quadrilha, fogueira, balão, batata-doce, quentão, fantasias típicas etc. -, porque elas se referem a um santo católico, o doce S. João. E, nas escolas de samba, aumenta a cada ano a dificuldade para a formação da Ala das Baianas - um grupo de senhoras, geralmente idosas, gordas e negras, vestidas com luxuosas saias rodadas, usando turbantes e exibindo seus balangandãs, evocando a história colonial do Brasil. A razão é a de que, como muitas dessas senhoras se converteram a uma seita evangélica, o Carnaval tornou-se proibido para elas, obrigando as escolas a contrariar os estatutos e admitir mulheres mais jovens em suas alas de baianas.

Mas o Carnaval é o território da transgressão, e o enredo da Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira para este ano promete revolucionar tudo que se fez até agora no género. O desfile falará de um Cristo redivivo, só que nascido no Morro da Mangueira - um Cristo nada louro, nem de olhos azuis - e sujeito a um calvário bem de nosso tempo: violência, racismo, injustiça, tortura, impunidade. O que todos querem ver é como Leandro Vieira, criador e diretor-geral do desfile da Mangueira, conseguirá conciliar a secura e a pobreza envolvendo esse Cristo de protesto com a grandiosidade e o luxo que se exigem das escolas de samba. E mais ainda da Mangueira, que, em matéria de tradição, títulos e paixão popular, é uma espécie de Flamengo do Carnaval.

O que terá levado Nelson Rodrigues a prever o rebaixamento do catolicismo no Brasil? Sua constatação, em fins dos anos 60, de que os padres estavam trocando a pregação da fé na vida eterna pela conscientização política. Para Nelson, fé e consciência eram incompatíveis. A consciência afugentaria os fiéis, que iriam buscar a fé onde esta se apresentasse - ou parecesse se apresentar.

O resultado aí está. Nossos craques não beijam mais a medalhinha ao entrar em campo e nossas crianças já não podem dançar ao redor da fogueira nas noites de S. João.

Jornalista e escritor brasileiro, autor de O Anjo Pornográfico - A Vida de Nelson Rodrigues (Tinta-da-China).

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