Quando duas potências nucleares como a China e a Índia tentam resolver a golpes de cacete um diferendo fronteiriço há quem se sinta tentado a suspirar de alívio. Mas se há dias estes confrontos nos Himalaias se limitaram a alguns feridos (duas dezenas do lado indiano, número desconhecido no lado chinês), uma escaramuça semelhante em 2020 resultou na morte de 20 militares da Índia e talvez ainda mais militares chineses. E não esquecer, pensando nos riscos de escalada, que em 1962 a mesma disputa gerou uma guerra entre os dois gigantes asiáticos, com pelo menos dois mil mortos no total..A relação entre a moderna Índia, independente desde 1947, e a República Popular da China, proclamada em 1949, está cheia de mal-entendidos. Historicamente, são inexistentes os grandes conflitos entre a China e os sucessivos impérios do subcontinente indiano até ao domínio britânico, mas Pequim nunca esteve confortável com a fronteira estabelecida na Era Colonial em relação aos limites do Tibete e quando o atual Dalai Lama, em 1959, se instalou na Índia, a tensão entre Mao Tsé-tung e Jawaharlal Nehru acentuou-se, com a tal guerra nos Himalaias a dar-se três anos depois, com alguns ganhos territoriais para os chineses..Esses mal-entendidos entre Pequim e Nova Deli persistem até hoje, apesar dos interesses comerciais partilhados e de uma comum aversão ao domínio do Ocidente nas relações internacionais. A democracia indiana versus o autoritarismo chinês também afasta os dois países em termos de prática governativa, mas sobretudo os indianos ressentem-se do maior protagonismo global dos vizinhos. Por exemplo, a China tem assento permanente nas Nações Unidas e a Índia não, apesar de populações semelhantes e de ambos os países terem estado entre os vencedores da Segunda Guerra Mundial (sim, a Índia pode reivindicá-lo, pois 2,5 milhões de soldados seus lutaram no Exército britânico, com a promessa de independência subentendida). Mas sobretudo a Índia ainda é uma mera aproximação da China no que diz respeito a desenvolvimento económico, com somente um quarto do PIB do vizinho..A guerra de 1962 levou a China, mesmo vencedora, a desenvolver a bomba nuclear (quando teve a certeza de que os soviéticos não estariam ao seu lado em futuras disputas). E esteve na origem da determinação indiana em dotar-se também da mesma arma, consciente da ameaça vinda do outro lado dos Himalaias e da aliança entre China e Paquistão. A Índia perdia assim certa ingenuidade em termos de política externa e de segurança, mudança que se acentuou depois da morte de Nehru..A nenhum dos dois gigantes asiáticos interessa uma guerra, pelos danos que faria nas respetivas economias e na reputação internacional de ambos. Mas sabe-se bem como pequenos problemas por resolver podem, quando propulsionados pelo nacionalismo, transformar-se em grandes problemas. E também se sabe como é perigoso que um único conflito concentre as atenções do mundo, como agora acontece com a Ucrânia, tornando invisíveis outros conflitos com potencial de grande destruição. Nem de propósito, recordemos que a guerra indochinesa de 1962 coincidiu em boa medida com a maior crise da Guerra Fria - a dos mísseis de Cuba - e, apesar de opor os dois mais populosos países, passou então relativamente despercebida..Diretor adjunto do Diário de Notícias