Quem morre primeiro?
A morte de Eric Bentley, talvez o ensaísta mais importante da história do teatro, no dia 5 último, em Nova Iorque, não mereceu nem uma linha na imprensa brasileira. Quem mandou Bentley não ser baterista de rock? Ele era inglês, radicado nos EUA desde o pós-guerra e estava com 103 anos.
Autores, diretores, atores, críticos e a própria plateia, nenhuma função dentro do teatro escapou dos seus estudos e observações. Foi o homem que divulgou, traduziu e explicou Bertolt Brecht para o público americano - numa época em que a única coisa de que os americanos se lembravam da passagem de Brecht por Hollywood, como roteirista, era que o alemão não gostava muito de banho. Bentley produziu também o maior corpo crítico sobre Bernard Shaw e o seu livro Bernard Shaw, de 1947, foi considerado pelo próprio o melhor escrito sobre ele. E, em 1971, Bentley reuniu centenas de interrogatórios do mccarthysmo num livro de 992 páginas, Thirty Years of Treason, que jogou luz sobre o comportamento de vários artistas interrogados pela comissão de caça aos comunistas. Descobriu-se, por exemplo, que o ator Larry Parks, queimado em Hollywood por ter dado os nomes de colegas, foi levado a isto por um verdadeiro massacre dos inquisidores e, mesmo assim, teve a sua carreira no cinema destruída. Já a teatróloga Lillian Hellman, até então uma heroína da esquerda americana, não ficou tão bem - mentiu com o maior descaro nas suas respostas e saiu ilesa, ao contrário de colegas que sustentaram as suas posições e pagaram caro por elas.
Bentley veio ao Brasil em 1988, para palestras no Rio e em São Paulo e Salvador. Entrevistei-o para o jornal O Estado de S. Paulo, onde eu colaborava na época. Em duas horas de conversa, aprendi mais sobre teatro do que em tudo o que já lera a respeito até então. Foi surpreendente observar como, apesar de uma vida dedicada a Brecht, Bentley era severo em relação a ele. Brecht, segundo Bentley, era importante como encenador, não como teórico ou pensador - o que explicava que, com o tempo, as suas peças tivessem "perdido o gume político" e se reduzido a "simpáticos divertissements, não muito diferentes de My Fair Lady". Imagino o susto dos brechtianos brasileiros ao ler isto. Fosse outro que não Eric Bentley, ir-lhe-iam à carótida - mas como contestar justamente o homem que lhes ensinara sobre Brecht?
Já as peças de Bernard Shaw, ao contrário, continuavam a ser para ele "uma homenagem à inteligência". Mas não na Broadway: "As peças sérias, como as de Shaw, são mais bem feitas na Europa, onde os atores estão habituados a falas longas. Os atores americanos não sabem dizer parágrafos, só frases. Tendem a pôr um ponto em todas as passagens que foram escritas entre vírgulas. Já os musicais têm menos falas, porque precisam deixar espaço para as canções e, por isso, funcionam melhor na América. São vivos, ágeis, tremendamente críticos, melhores do que qualquer coisa de Eugene O"Neill, Arthur Miller ou Tennessee Williams. Escrevi certa vez que, para se ver a América como um fenómeno distinto, era preciso não ser americano. As peças de Tennessee Williams têm passagens muito engraçadas, mas as pessoas sempre preferiram ver nelas apenas os temas do homossexualismo e da agressividade. Era o que achavam mais excitante. Mas, hoje, elas não parecem tão ousadas."
Pedi-lhe exemplos de musicais que admirava e ele citou clássicos dos anos 1940 e 50, como Pal Joey, baseado nos contos de John O'Hara e com música de Richard Rodgers e Lorenz Hart, e Guys and Dolls, baseado nos contos de Damon Runyon e com música de Frank Loesser. Para espanto de muitos, Bentley incluiu Guys and Dolls numa antologia do teatro americano que publicou em 1956: "Eles não esperavam que um europeu fizesse isso [risos]. Houve quem dissesse que eu não entendia nada dos Estados Unidos ao dizer que Guys and Dolls era o verdadeiro teatro americano, porque Guys and Dolls representa apenas Nova Iorque, e Nova Iorque não representa os Estados Unidos. Ora, isso é uma estupidez porque, não sendo de Nova Iorque, posso vê-la melhor, com mais distanciamento. E, desde então, as coisas não melhoraram. O grande compositor atualmente em atividade é Stephen Sondheim [Company, A Little Night Music, Sweeney Todd], mas as pessoas em Nova Iorque preferem o lixo de Andrew Lloyd Webber [Evita, Cats, Phantom of the Opera]."
Polémico, não? Mas foi assim que Eric Bentley se impôs no meio teatral e académico americano, e todos estão lamentando a sua perda.
O seu obituário no The New York Times saiu no dia seguinte à sua morte. É uma aula de resumo biográfico e analítico do homem e da obra, e foi assinado por Christopher Lehmann-Haupt, antigo editor da secção de obituários do jornal. No fim do texto, uma informação: Lehmann-Haupt morreu em 2018.
Fui conferir e descobri que o seu artigo sobre Bentley já estava pronto antes de 2006, que foi quando Lehmann-Haupt se aposentou e deixou o jornal, aos 72 anos. Naquele ano, Bentley já tinha 89 e tudo indicava que partiria primeiro. Os leitores não sabem, mas os jornais costumam preparar com antecedência obituários de pessoas importantes e em idade avançada, para não serem apanhados de surpresa pela morte, digamos, súbita, de uma delas. É uma prática comum. Incomum é o autor do obituário morrer antes do personagem.
Eu deveria saber. Em 1995, a Folha de S. Paulo, para onde eu me mudara, pediu-me o obituário da veterana comediante do teatro e da televisão brasileira Dercy Gonçalves, então ainda em atividade. Ela tinha 91 anos; eu, 47.
Pois não é que a querida Dercy só foi morrer em 2008, aos 104, e, nos três anos anteriores, tive de pular várias fogueiras - um câncer, um enfarte, outro câncer - e quase fui embora antes dela?
Jornalista e escritor brasileiro