Envelhecer, entre Almodóvar, o espelho e o SNS
Quando é que começamos a pensar que gostávamos de ter menos uns anos? Em que fase a vida nos parece crescer para trás e encurtar para a frente? Algumas pessoas responderão a estas perguntas com negativismo, acentuando a inadaptação a novos tempos. Outras terão ideia contrária: por vezes percebemos que os desafios a que estamos sujeitos precisavam de mais tempo para os resolvermos do que o que vamos ter. E é nestas duas ideias que se traçam, não só a personalidade de quem vai envelhecendo, como as tendências sociológicas que determinam a forma como olhamos para os mais velhos - e, nelas, as políticas que se seguem a este respeito.
Este não é um tema habitual numa crónica de um jornal generalista. Normalmente versam temas mais institucionais, é certo - e também por isso os jornais parecem bolhas que pairam sobre a realidade do dia-a-dia... ou do espelho lá de casa. Os cabelos brancos não nos pesam só na imagem que o espelho lá de casa nos transmite - e é aqui que começa o desafio de qualquer história jornalística, a que conta as tendências históricas através das pequenas histórias. Entre a pressão que já se exerce no Serviço Nacional de Saúde, as mudanças que teremos de fazer no sistema de pensões para acomodar quem vai viver mais do que estava previsto, ou o quotidiano infernal de famílias obrigadas a lidar com envelhecimentos difíceis, em tudo isto estão desafios importantíssimos para a sociedade como hoje a conhecemos - e amanhã teremos.
Na semana passada, Mónica Ferro, a diretora do Programa das Nações Unidas para a População (UNFPA), em Genebra, explicava bem. "É mais do que tempo de fazermos um bocadinho a mudança que fizemos em relação aos jovens. Há uns anos eles eram uma preocupação, precisávamos de dar-lhes emprego porque senão eles tornavam-se violentos, criminosos. Agora olhamos para os jovens e dizemos que temos de lhes dar mais poder porque são uma força criativa estupenda, não é? É preciso fazer essa narrativa em relação às pessoas idosas. É preciso deixar de olhar para elas a pensar que são um peso para a Segurança Social. Pode chegar-se à idade da reforma com capacidades e talentos que podem ser usados na sociedade de forma produtiva. Porque é que todo o trabalho tem de ser produtivo no sentido de economicamente rentável?"
Deve andar muita gente a pensar no mesmo, ou a sentir o mesmo. Sônia Braga mostra a cabeleira branca na Vogue brasileira. Pedro Almodóvar, o estridente Almodóvar, faz um filme sobre as dores do envelhecimento, Dor e Glória. A atriz britânica Olivia Colman - estrela da próxima temporada do The Crown - https://www.vogue.com/article/olivia-colman-cover-october-2019?verso=true - faz capa da Vogue britânica com o seu "rabo de 45 anos". E as máquinas de notícia falsas inventam uma que diz que Patti Smith será a nova estrela da casa de moda Yves Saint Laurent aos 72 anos. Era falsa, a notícia, mas dá nota de uma tendência de verosimilhança, como todas.
Em todos estes exemplos há um saudável encarar do envelhecimento que pode vir a demonstrar a profecia de Mónica Ferro: uma naturalização da condição que será cada vez mais comum e cada vez mais numerosa. Conseguir reverter o mito da eterna juventude não será possível sem entendermos que envelhecer bem nem sempre é fazê-lo em beleza - e por isso a capa de Sônia Braga é tão importante, porque ela aparece desgastada pelo tempo, sem falsas recauchutagens, com rugas, cabelos fracos e tanto, tanto estilo. Homenagear a vida madura é também tratá-la com o carinho que Almodóvar dedica a António Banderas. E que bem o ator lhe responde, numa personagem a fazer as pazes com o seu passado, sem dramas nem histerias. Talvez, afinal, estejamos no bom caminho.