Alterações climáticas, cristalização política
Fomos da crise financeira à crise das democracias num acender de fósforo. Falamos hoje da crise da ordem liberal, das instituições multilaterais, dos refugiados, da moderação política, da imprensa. Todas elas, com maior ou menor acuidade e sobreposição no tempo ou no espaço, vão sendo estancadas, tratadas, regeneradas, algumas sob um alarmismo que não colhe unanimismo geográfico, outras que tanto entram na agenda como de repente se evaporam. Todas são reais, têm impactos vários e duradouros, mas talvez nenhuma seja tão abrangente como a crise climática. Abrangente no espaço, no tempo e na cadeia de erosão universal que consigo carrega.
O primeiro dilema está logo a montante, entre os que aceitam, alarmados, os vários alertas da ciência, e os que refutam, por posicionamentos ideológicos vários, a evidência dos sinais. Tudo isto descreveria os termos de um debate académico e social tradicional, não fosse termos hoje líderes de grandes países que desvalorizam os factos, recusam encontrar consensos e fazem mesmo disso uma característica da sua afirmação identitária na política internacional. Além disso, acordos escritos não significam eficazes concertações na prática e grandes potências autoexcluídas retiram alcance à abordagem conjunta.
O segundo dilema está na manifesta incapacidade dos líderes mais responsáveis em colocar a crise climática no topo da sua agenda interna e externa. Mencioná-la a espaços não é o mesmo que lhe dar prioridade. Vimos isso quando partidos políticos espalhados pelas democracias europeias foram forçados a elaborar sobre os riscos do aquecimento global em curso porque os jovens saíram à rua. Foram evidentes a fragilidade das mensagens, o refúgio nos lugares-comuns, a incapacidade em ligar causas e efeitos vários.
Os partidos clássicos não se prepararam para a velocidade deste mundo e essa é que é uma das crises da democracia: para problemas cada vez mais complexos exige-se uma preparação programática e comunicativa muito mais sofisticada. Isto não quer dizer impercetível, antes refletir uma proposta política credível, capaz e corajosa. O mais fácil é negar, ridicularizar e ter uma solução simplista. Esse é o papel dos populistas encartados, alguns a começar a sair da toca em Portugal. Quem quer fazer política responsável, séria e com ambição para o seu país precisa de trabalhar de outra forma o debate público, assumindo o alarmismo quando assim tiver de ser, apontando um rumo de soluções realistas como também lhes é exigido. Portugal, Estado pequeno no debate climático, mas nada imune aos seus efeitos perversos, tem permanecido acomodado no consenso internacional em que felizmente se colocou, mas pouco ou nada ativo na democratização da crise climática. A campanha eleitoral em curso só a espaços a menciona, sem qualquer tração pública, sendo o que sobra logo abafado pela insuportável futebolização dos media.
Porque é que temos de estar reféns da nossa dimensão para nos remetermos a um papel secundário no debate internacional das alterações climáticas? Debate que liga condições extremas de calor, escassez de recursos hídricos, transformações brutais na produção agrícola, aumento do custo de vida, disfuncionalidades ambientais sem pré-aviso, efeitos perversos na saúde pública, mudanças nas rotas comerciais com efeitos na economia e geopolítica, prova de vida das organizações internacionais, mecanismos multilaterais afinados para gestão de crises inusitadas, capacidade financeira de recurso para ajuda humanitária rápida, uma capacidade de agregação política entre nações que torne a prevenção e a resposta globais à altura da complexidade de todos estes desafios. Entre muitas outras consequências. Por muito menos a história testemunhou o início de guerras.
Porque não aproveitamos o facto de o secretário-geral da ONU ser português para maximizar o alcance da sua mensagem e da agenda climática da organização no espaço político onde Portugal mais interage (Europa e lusofonia), associando o presidente da República e o governo numa cocondução da nossa ação externa nesse domínio, de forma a projetar o estatuto do país com outro vigor no mapa de soluções estratégicas, pontes geográficas e projetos-piloto de sucesso assentes, por exemplo, em blockchain e inteligência artificial?
Porque não pensar na figura de um embaixador para as alterações climáticas, conectando interesses nacionais e dinâmicas da crise climática, a par de outras inovações na nossa escola diplomática - como a figura do embaixador digital, como têm França e Dinamarca -, como sinais políticos de vanguarda? Quem ocupar o espaço nos debates prioritários da globalização, independentemente do tamanho territorial, riqueza e população, pode dar um contributo acima da sua real escala, compensando os handicaps imutáveis com uma diplomacia criativa, ambiciosa e consentânea com o perfil de país que já somos, mas que podemos ainda potenciar. Ainda nesta semana, na criativa formulação das pastas da nova Comissão Europeia, foi atribuído o dossiê de Foresight a um comissário, tal a necessidade de acompanhar as grandes tendências globais e trabalhar de forma transversal as respostas políticas num espaço de 500 milhões de pessoas. Porque não criar uma secretaria de Estado, na dependência do primeiro-ministro com a mesma incumbência, capaz de se articular com agentes da sociedade civil que mobilizem o debate, gerando conhecimento contínuo e massa crítica que só melhoram a ação política cá e lá fora?
As crises parecem eternas, quantas não se atropelam, complicando o seu entendimento, dificultando as suas soluções, quase nenhuma isolada, praticamente todas a exigir prospetiva, prevenção e concertação política em larga escala. A transversalidade da crise climática não pode ser acompanhada pela cristalização da política. Ninguém tenha dúvidas sobre qual sairá derrotada.
Investigador universitário