Abel Prieto foi ministro da Cultura com o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, com o seu irmão e sucessor Raúl Castro (de quem foi assessor) e do novo presidente, Miguel Díaz-Canel. Esteve em Portugal para a Festa do Avante! e falou ao DN da situação em Cuba, dos EUA e da Venezuela. Preside à Sociedade Cultural José Martí..Foi ministro nos anos 1990, no final do período especial, de crise económica após a queda da União Soviética.Cuba conseguiu voltar a crescer com o apoio da Venezuela, cuja crise agora afeta Cuba. Estamos a caminho de um novo período especial? Acho que não, nunca como aquele período especial. Cuba tem hoje uma economia mais diversificada. No momento em que se derrubou o campo socialista na Europa e a União Soviética, o nosso comércio era maioritariamente com esse bloco de países. Hoje estamos mais bem preparados do ponto de vista empresarial, da institucionalidade. Hoje, o mais grave para nós, independentemente da perseguição a que está submetida a Venezuela pelos ianques, é o agravar do bloqueio dos EUA. Até [Donald] Trump, nenhum presidente tinha ativado o capítulo três da Lei Helms-Burton, que diz que se tinhas uma propriedade em Cuba e ela foi nacionalizada pela revolução, de maneira legal, agora podes pôr em tribunal qualquer empresa que esteja a fazer negócios com essa propriedade que foi tua. Muitos empresários que viveram o processo das nacionalizações aceitaram as ofertas de indemnizações e foram indemnizados. Os EUA nunca aceitaram negociar com Cuba, porque sempre pensaram que iriam conseguir recuperar as propriedades pela força. Esta lei é absolutamente irracional, extraterritorial, rompe todas as normas jurídicas e de convivência entre países. O mundo tem de explicar a Trump que não pode atuar como se fosse dono do mundo..A posição de Trump é mais difícil porque vem após a abertura de Barack Obama? Obama deu passos que foram úteis, valiosos, de estabelecer relações. Mas Obama não levantou as principais limitações do bloqueio, por exemplo, a limitação para viajar. Só autorizou mais licenças de viagem, realmente houve mais norte-americanos a ir a Cuba, houve mais cursos em que participaram estudantes norte-americanos, houve uma relação no campo da ciência, por exemplo, no qual os cientistas norte-americanos estão muito interessados... Obama manteve algo que Trump levou ao delírio, que é que qualquer banco que faça transações onde haja dinheiro cubano possa ser alvo de represálias. Outro exemplo, a embaixada continua a funcionar mas não tem serviços consulares. Um cubano para viajar para os EUA tem de ir a um terceiro país pedir o visto, o que é uma coisa disparatada, absolutamente irracional. Tudo por causa de uma coisa que parece tirada de um livro de ficção científica de quinta categoria, de que Cuba foi responsável por uns ataques sónicos que prejudicaram a audição dos diplomatas. Não apresentaram uma prova. Tudo tem um carácter de farsa, um pouco teatral. Cuba sempre insistiu numa imigração normal, segura, pela via legal. Numa época tivemos uma quota de vistos anuais, que às vezes se cumpriu, outras não. Mas tudo foi desfeito. Trump é como um elefante numa loja de porcelanas, a deixar fragmentos por toda a parte. Uma loucura. E prejudica o povo dos EUA..Diz-se que a revolução precisa de um inimigo para continuar viva. Nesse caso, Trump foi o melhor que podia ter acontecido? Não é bom ter este inimigo. E Cuba sempre tentou o diálogo. Com alguns não podias ter diálogo. Mas com os políticos razoáveis, que visitaram Cuba e tiveram contacto com os dirigentes da revolução, sempre se procurou o diálogo. Essa ideia de que a nós nos convém ter esse fantasma para assustar as pessoas é disparatada. Cuba, apesar de Trump, está a fazer coisas que não fez antes e há uma nova geração a assumir cargos decisivos, como o presidente Díaz-Canel. Há um plano de construção e reparação de casas muito ambicioso, houve uma reforma constitucional e os municípios converteram-se numa célula-base na tomada de decisões... A direção do governo e do partido tem hoje apoio e isso demonstrou-se no referendo, em que houve mais de 86% de aprovação. O estado anímico dos cubanos não é de pessoas paralisadas, a pensar que vem aí outra vez o período especial. Não. As pessoas claro que querem que a política de hostilidade, disparatada, de Trump e da sua equipa possa acabar. Os EUA são uma sociedade que está doente..Como assim? Sabe quantos mortos em tiroteios há lá? Quantos adolescentes morrem? E os EUA acabam de aprovar mais leis a favor das armas, com Trump a dizer que a NRA [Associação Nacional de Armas] não é o problema. É uma sociedade que está doente de violência, de odio, de racismo. Em tudo isso influenciou o discurso de Trump contra os imigrantes, a ideia de que os mexicanos o que trazem é a droga, violência, violações. Se o teu líder fala assim, as pessoas acreditam. É um país que tem uma influência cultural no mundo esmagadora, os seus filmes, as suas séries, a sua indústria de entretenimento é exportadora de todos esses valores. Se esse racismo se difunde e essas posições fascistoides se difundem através dessa máquina de disseminação cultural... estamos a fazer muito dano às novas gerações. Que civilização estamos a construir? Já em Cuba, um milhão e 700 mil crianças cubanas começaram a 2 de setembro as aulas. A nenhum faltou um livro, tudo é grátis. Um país em crise pode fazê-lo. Este país que estão a tentar asfixiar, que estão a tentar isolar, que estão a caluniar..No final dos anos 1990 foi a Venezuela de Hugo Chávez que permitiu a Cuba recuperar do período especial. Como está a sentir agora Cuba esta crise na Venezuela? Nunca a relação de Cuba com a Venezuela foi como a relação com a União Soviética. São situações diferentes e circunstâncias diferentes. Cuba construiu uma relação com a Venezuela que foi muito importante não só para estes países, mas para a América Latina. A missão Bairro Adentro, por exemplo, que levou os nossos médicos à Venezuela. Eles foram caluniados, disseram que os médicos são militares, que estão lá a apoiar o governo de Maduro... O trabalho que os médicos cubanos fizeram na Venezuela, junto com os venezuelanos, em bairros marginalizados, em bairros pobres. Não podemos pensar a relação em termos puramente económicos. A relação Cuba-Venezuela, a que se uniu depois a Bolívia de Evo Morales, o Equador de [Rafael] Correa, de certo modo também a Argentina de Néstor e Cristina Kirchner, e o Brasil de Lula. Construíram-se mecanismos de integração que foram muito proveitosos. Houve uma espécie de plataforma de vínculo, de relação, de comunicação que culminou na criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. A CELAC, que proclamou a América Latina como zona de paz. Tudo está em perigo. Os fundamentos dos vínculos entre Cuba e os outros países partia da ideia de que podia haver uma colaboração sul-sul, não baseada na competitividade ou de ver como tiro proveito de ti. É outro tipo de relação que Trump e a sua equipa não podem entender. Não é uma relação entre alguém que se sente superior e outro que se subordina. É uma relação fraterna. É possível isso no mundo que queremos. Tem de ser possível se queremos que este mundo se salve..Mas acham que é possível uma saída para a Venezuela que permita voltar à relação normalizada com Cuba? Quando Cuba pede que cesse a agressão à Venezuela não é para recuperar a relação. É um problema de justiça. Vemos como algo totalmente inaceitável a intromissão dos EUA, da Colômbia, do Grupo de Lima nos assuntos internos de um país soberano. Esse tipo de pressão sobre o povo venezuelano tem de cessar e é preciso permitir que avance o diálogo e que realmente se encontre um caminho pela via da paz. Qual é a outra saída? Que intervenham os EUA. Isso seria muito trágico, não acho que este continente veja isso com simpatia, nem sequer os países que têm uma ideologia neoliberal ou que estão ligados ao império. Parece-me que uma saída brutal, bárbara, uma espécie de Vietname venezuelano seria uma catástrofe, até para Trump e a sua equipa. E se ainda não o fizeram é por alguma coisa. Deve haver algum neurónio mais ou menos razoável que esteja a calcular as consequências de algo tão grotesco, bárbaro, sangrento. Ninguém pode negar é que há uma massa de gente que apoia a continuidade do chavismo. Que percentagem é? Eu acho que é a maioria das pessoas, mas isso terão de dizer nas eleições que se querem convocar. Mas há uma massa importante de gente convencida de que não há retrocesso. Que isso seria a instalação de uma ditadura fascista violenta, sangrenta, vingativa, porque quando a direita retorna ao poder é implacável. É capaz dos atos mais atrozes. E a sua vingança não tem palavras que a definam. Acho que eles estão a tentar encontrar saídas de diálogo e oxalá apareçam..Foi ministro com Fidel e Raúl Castro, Díaz-Canel é um sucessor à altura? É continuidade como prometia? Também fui ministro com Díaz-Canel. Ele diz continuamente que não é um revezamento, é continuidade. A revolução cubana triunfou guiada por uma geração que tem valores excecionais, que tem méritos excecionais. Os que assaltaram a Moncada, os que foram à Serra Maestra, os que derrotaram a ditadura de Batista apoiada pelos ianques, um exército profissional bem armado. A geração de Fidel, de Raúl, tem um prestígio enorme, extraordinário. Não se pode comparar a nenhuma outra liderança. Eles mesmos foram preparando a sucessão a partir de pessoas que vieram sobretudo da direção das províncias. Díaz-Canel dirigiu com muito sucesso a provincia de Villa Clara e depois Holguín. Depois foi ministro do Ensino Superior, vice-presidente e agora presidente dos Conselhos de Estado e Ministros. Mas ele é a figura mais visível de muitos outros companheiros. São pessoas que não são tecnocratas. Não são pessoas que saíram de um laboratório. Não saíram de um lugar acético, onde constróis uma espécie de dirigente ideal. São pessoas que surgiram da batalha quotidiana, enfrentando uma infinidade de problemas e dificuldades, em contacto com a população. E todas elas, e podia nomear muitos companheiros, com uma liderança ganha no terreno. Não pelos seus méritos épicos, digamos assim. Por méritos ganhos no dia-a-dia..Os cubanos são muito inteligentes, detestam a retórica, os rituais, a formalidade, os cubanos sabem quando há um demagogo. Os cubanos formaram-se com Fidel, a ouvir Fidel, formaram-se com Raúl. Uma coisa que está a fazer Díaz-Canel, e que foi muito estimulante, é dar muita transparência à gestão do governo. Ele percorre as províncias, há muito diálogo com as pessoas, sejam coisas boas ou coisas relacionadas com problemas que não se resolveram. Tem um vínculo com a população. Uma das coisas que falhou naquele socialismo que se derrubou naquele tempo da Unão Soviética, nos países da Europa de Leste, foi o vínculo dos dirigentes com a população. E eu acho que a continuidade a que Díaz-Canel faz referência é que ele não perdeu o vínculo com a revolução. Nem ele nem os outros ministros, que o acompanham. Hoje há um conselho de ministros de gente muito jovem, muito preparada e não são saídos do laboratório. O atual ministro da cultura é um poeta brilhante, dirigiu a maior revista de poesia em língua castelhana, Alpidio Alonso..Mas em temas culturais houve uma polémica com o projeto de lei 349... Isso ainda é do meu tempo. É um decreto lei, que se discutiu com todos os criadores do país e surgiu das propostas que os artistas fizeram a Fidel, vem desde essa época. Esse decreto de lei tem a ver com a ideia de que, nos espaços públicos, num restaurante, numa praça, a música que se oiça, os artistas que atuem, o material audiovisual que se mostre, esteja em consonância com a política cultural..Há quem diga que é censura. Isso existe em todos os países. Não acredito que chegue aqui a uma praça e possa pôr num ecrã gigante reggaeton e mulheres com biquíni... a Câmara de Lisboa chamaria a atenção. Nos espaços públicos tem que haver algum tipo de lógica, alguma associação com a arte de verdade, a arte autêntica. Isso era o que pediam os artistas. O famoso 349 responde a defender a arte autêntica frente à arte medíocre, sobretudo vinda de fora, às concessões. O último Congresso da União de Escritores e Artistas foi extraordinário. Díaz-Canel falou e criou-se uma química entre ele e os intelectuais que assistiam ao congresso extraordinária. E os intelectuais não aplaudem para ser simpáticos, houve uma verdadeira relação de fundo entre o presidente e essa massa de intelectuais. Essa polémica foi construída desde fora. Há pessoas empregadas dos ianques, sem querer cair numa paranoia. Foi uma operação para criar divisão no movimento intelectual. Hoje ninguém fala disso, porque as pessoas entendem que é a favor da cultura, não contra. E a favor da cultura de verdade, contra o lixo..Falou do reggaeton, não teme que proibir algo possa servir como incentivo. E estão à disposição das novas tecnologias... O reggaeton não está proibido. É uma patetice querer hoje censurar. As novas tecnologias convertem o censor numa criatura arqueológica. Pertence ao passado. Não podes impedir que as pessoas vejam, gostem do que quiserem. O problema não é com o reggaeton ou com um género específico. O problema é contra os subprodutos, o retrocesso em termos estéticos. O problema é estético, não é político. O sentido deste decreto de lei era precisamente evitar que os gostos pessoais de alguém sejam imposto a um coletivo de pessoas sem os requerimentos estéticos essenciais. Não tem a ver com política, nem afetava a criação. Hoje, os artistas cubanos, massivamente apoiam isto e consideram-no um instrumento de política cultural, que favorece os melhores artistas. Um dos problemas que tem o mercado de arte é que a mediocridade prevalece sobre os talentos autênticos. Ao colocar o entretenimento vazio no centro dos processos e afastar um que te inquieta, que te convida a pensar, que representa um desafio intelectual, que é o que deve fazer a arte autêntica, favorece-se o primeiro. As regras do jogo são entreter, são a patetice, a banalidade, então é essa mediocridade que se torna predominante. É contra essa mediocridade que está o decreto..Voltando a Fidel e Raúl. Que parecidos ou diferentes eram os dois enquanto líderes? Acho que Fidel e Raúl são duas personalidades distintas, contudo, em termos do que defendiam, são iguais. Eram, ou são em caso de Raúl, dois grandes leitores, grandes conhecedores da história, próximos ao cinema, à literatura de caráter histórico, muito respeitosos dos artistas. Nunca recebi, como ministro de Fidel ou de Raúl, qualquer indicação que fosse contra os meus próprios princípios. Nunca o partido ou quem dirige o país me pediu que eu fizesse algo que fosse contra os meus princípios. Eles deram-me muita autonomia de trabalho. Por exemplo, na etapa de Fidel foi muito importante o conceito de que os artistas que viviam no exterior se mantivessem ligados a Cuba. No período especial, muitos artistas vieram para a Europa ou foram para os EUA. Houve uma imigração do setor artístico a partir de uma contração muito forte das fontes de trabalho. Por parte de Fidel e Raúl houve uma compreensão de que não era preciso romper com essas pessoas, não era preciso considerá-los inimigos por terem decidido viver fora de Cuba. Isso foi muito importante porque se eliminou uma espécie de prurido que havia em relação a quem viva fora, havia uma desconfiança das pessoas que viam isso como alguém que não tinha uma relação de simpatia com a revolução. Fidel e depois Raúl deram muitas facilidades para que os artistas pudessem desenvolver o seu trabalho dentro e fora de Cuba. E conseguiram muita boa comunicação com o setor artístico. E Díaz-Canel continua essa tradição. Para mim foi um privilégio trabalhar com os três..E a nível pessoal, como eram? O que acontece é que Díaz-Canel está, geracionalmente, mais próximo de mim. Conheci-o como secretário do partido em Villa Clara, fomos muito amigos. Seria uma mostra de vaidade estúpida dizer que fui amigo de Fidel e sou amigo de Raúl. Eles, para mim, sempre tiveram uma outra dimensão. São pessoas que respeitamos muito. Não é um respeito fanático. Raúl é uma pessoa que rapidamente procura uma comunicação na dimensão mais pessoal. Fidel também, mas Fidel era visto como o grande estratega. E o respeito que sinto por Díaz-Canel é diferente, porque tive uma relação maior de amizade. Sinto-me orgulhoso de sentir-me amigo dele. Posso dizê-lo sem pudor. Acho que é um privilégio. E admiro-o cada dia mais. Porque vejo o ritmo de trabalho que tem e o resultado do seu trabalho. A palavra continuidade não é casual. Acho que o principal, quando se fala de uma revolução como a cubana, mais do que a personalidade, as características pessoais de um líder ou outro, está nos princípios que defendem, no que estão a atentar fazer. E vemos assim uma continuidade. Díaz-Canel diz repetidamente que os dirigentes não podem perder a sensibilidade para as pessoas que têm necessidades particulares. Essa sensibilidade que está em Fidel, está em Raúl, está em Díaz-Canel, está no núcleo central da revolução cubana.
Abel Prieto foi ministro da Cultura com o líder da Revolução Cubana, Fidel Castro, com o seu irmão e sucessor Raúl Castro (de quem foi assessor) e do novo presidente, Miguel Díaz-Canel. Esteve em Portugal para a Festa do Avante! e falou ao DN da situação em Cuba, dos EUA e da Venezuela. Preside à Sociedade Cultural José Martí..Foi ministro nos anos 1990, no final do período especial, de crise económica após a queda da União Soviética.Cuba conseguiu voltar a crescer com o apoio da Venezuela, cuja crise agora afeta Cuba. Estamos a caminho de um novo período especial? Acho que não, nunca como aquele período especial. Cuba tem hoje uma economia mais diversificada. No momento em que se derrubou o campo socialista na Europa e a União Soviética, o nosso comércio era maioritariamente com esse bloco de países. Hoje estamos mais bem preparados do ponto de vista empresarial, da institucionalidade. Hoje, o mais grave para nós, independentemente da perseguição a que está submetida a Venezuela pelos ianques, é o agravar do bloqueio dos EUA. Até [Donald] Trump, nenhum presidente tinha ativado o capítulo três da Lei Helms-Burton, que diz que se tinhas uma propriedade em Cuba e ela foi nacionalizada pela revolução, de maneira legal, agora podes pôr em tribunal qualquer empresa que esteja a fazer negócios com essa propriedade que foi tua. Muitos empresários que viveram o processo das nacionalizações aceitaram as ofertas de indemnizações e foram indemnizados. Os EUA nunca aceitaram negociar com Cuba, porque sempre pensaram que iriam conseguir recuperar as propriedades pela força. Esta lei é absolutamente irracional, extraterritorial, rompe todas as normas jurídicas e de convivência entre países. O mundo tem de explicar a Trump que não pode atuar como se fosse dono do mundo..A posição de Trump é mais difícil porque vem após a abertura de Barack Obama? Obama deu passos que foram úteis, valiosos, de estabelecer relações. Mas Obama não levantou as principais limitações do bloqueio, por exemplo, a limitação para viajar. Só autorizou mais licenças de viagem, realmente houve mais norte-americanos a ir a Cuba, houve mais cursos em que participaram estudantes norte-americanos, houve uma relação no campo da ciência, por exemplo, no qual os cientistas norte-americanos estão muito interessados... Obama manteve algo que Trump levou ao delírio, que é que qualquer banco que faça transações onde haja dinheiro cubano possa ser alvo de represálias. Outro exemplo, a embaixada continua a funcionar mas não tem serviços consulares. Um cubano para viajar para os EUA tem de ir a um terceiro país pedir o visto, o que é uma coisa disparatada, absolutamente irracional. Tudo por causa de uma coisa que parece tirada de um livro de ficção científica de quinta categoria, de que Cuba foi responsável por uns ataques sónicos que prejudicaram a audição dos diplomatas. Não apresentaram uma prova. Tudo tem um carácter de farsa, um pouco teatral. Cuba sempre insistiu numa imigração normal, segura, pela via legal. Numa época tivemos uma quota de vistos anuais, que às vezes se cumpriu, outras não. Mas tudo foi desfeito. Trump é como um elefante numa loja de porcelanas, a deixar fragmentos por toda a parte. Uma loucura. E prejudica o povo dos EUA..Diz-se que a revolução precisa de um inimigo para continuar viva. Nesse caso, Trump foi o melhor que podia ter acontecido? Não é bom ter este inimigo. E Cuba sempre tentou o diálogo. Com alguns não podias ter diálogo. Mas com os políticos razoáveis, que visitaram Cuba e tiveram contacto com os dirigentes da revolução, sempre se procurou o diálogo. Essa ideia de que a nós nos convém ter esse fantasma para assustar as pessoas é disparatada. Cuba, apesar de Trump, está a fazer coisas que não fez antes e há uma nova geração a assumir cargos decisivos, como o presidente Díaz-Canel. Há um plano de construção e reparação de casas muito ambicioso, houve uma reforma constitucional e os municípios converteram-se numa célula-base na tomada de decisões... A direção do governo e do partido tem hoje apoio e isso demonstrou-se no referendo, em que houve mais de 86% de aprovação. O estado anímico dos cubanos não é de pessoas paralisadas, a pensar que vem aí outra vez o período especial. Não. As pessoas claro que querem que a política de hostilidade, disparatada, de Trump e da sua equipa possa acabar. Os EUA são uma sociedade que está doente..Como assim? Sabe quantos mortos em tiroteios há lá? Quantos adolescentes morrem? E os EUA acabam de aprovar mais leis a favor das armas, com Trump a dizer que a NRA [Associação Nacional de Armas] não é o problema. É uma sociedade que está doente de violência, de odio, de racismo. Em tudo isso influenciou o discurso de Trump contra os imigrantes, a ideia de que os mexicanos o que trazem é a droga, violência, violações. Se o teu líder fala assim, as pessoas acreditam. É um país que tem uma influência cultural no mundo esmagadora, os seus filmes, as suas séries, a sua indústria de entretenimento é exportadora de todos esses valores. Se esse racismo se difunde e essas posições fascistoides se difundem através dessa máquina de disseminação cultural... estamos a fazer muito dano às novas gerações. Que civilização estamos a construir? Já em Cuba, um milhão e 700 mil crianças cubanas começaram a 2 de setembro as aulas. A nenhum faltou um livro, tudo é grátis. Um país em crise pode fazê-lo. Este país que estão a tentar asfixiar, que estão a tentar isolar, que estão a caluniar..No final dos anos 1990 foi a Venezuela de Hugo Chávez que permitiu a Cuba recuperar do período especial. Como está a sentir agora Cuba esta crise na Venezuela? Nunca a relação de Cuba com a Venezuela foi como a relação com a União Soviética. São situações diferentes e circunstâncias diferentes. Cuba construiu uma relação com a Venezuela que foi muito importante não só para estes países, mas para a América Latina. A missão Bairro Adentro, por exemplo, que levou os nossos médicos à Venezuela. Eles foram caluniados, disseram que os médicos são militares, que estão lá a apoiar o governo de Maduro... O trabalho que os médicos cubanos fizeram na Venezuela, junto com os venezuelanos, em bairros marginalizados, em bairros pobres. Não podemos pensar a relação em termos puramente económicos. A relação Cuba-Venezuela, a que se uniu depois a Bolívia de Evo Morales, o Equador de [Rafael] Correa, de certo modo também a Argentina de Néstor e Cristina Kirchner, e o Brasil de Lula. Construíram-se mecanismos de integração que foram muito proveitosos. Houve uma espécie de plataforma de vínculo, de relação, de comunicação que culminou na criação da Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos. A CELAC, que proclamou a América Latina como zona de paz. Tudo está em perigo. Os fundamentos dos vínculos entre Cuba e os outros países partia da ideia de que podia haver uma colaboração sul-sul, não baseada na competitividade ou de ver como tiro proveito de ti. É outro tipo de relação que Trump e a sua equipa não podem entender. Não é uma relação entre alguém que se sente superior e outro que se subordina. É uma relação fraterna. É possível isso no mundo que queremos. Tem de ser possível se queremos que este mundo se salve..Mas acham que é possível uma saída para a Venezuela que permita voltar à relação normalizada com Cuba? Quando Cuba pede que cesse a agressão à Venezuela não é para recuperar a relação. É um problema de justiça. Vemos como algo totalmente inaceitável a intromissão dos EUA, da Colômbia, do Grupo de Lima nos assuntos internos de um país soberano. Esse tipo de pressão sobre o povo venezuelano tem de cessar e é preciso permitir que avance o diálogo e que realmente se encontre um caminho pela via da paz. Qual é a outra saída? Que intervenham os EUA. Isso seria muito trágico, não acho que este continente veja isso com simpatia, nem sequer os países que têm uma ideologia neoliberal ou que estão ligados ao império. Parece-me que uma saída brutal, bárbara, uma espécie de Vietname venezuelano seria uma catástrofe, até para Trump e a sua equipa. E se ainda não o fizeram é por alguma coisa. Deve haver algum neurónio mais ou menos razoável que esteja a calcular as consequências de algo tão grotesco, bárbaro, sangrento. Ninguém pode negar é que há uma massa de gente que apoia a continuidade do chavismo. Que percentagem é? Eu acho que é a maioria das pessoas, mas isso terão de dizer nas eleições que se querem convocar. Mas há uma massa importante de gente convencida de que não há retrocesso. Que isso seria a instalação de uma ditadura fascista violenta, sangrenta, vingativa, porque quando a direita retorna ao poder é implacável. É capaz dos atos mais atrozes. E a sua vingança não tem palavras que a definam. Acho que eles estão a tentar encontrar saídas de diálogo e oxalá apareçam..Foi ministro com Fidel e Raúl Castro, Díaz-Canel é um sucessor à altura? É continuidade como prometia? Também fui ministro com Díaz-Canel. Ele diz continuamente que não é um revezamento, é continuidade. A revolução cubana triunfou guiada por uma geração que tem valores excecionais, que tem méritos excecionais. Os que assaltaram a Moncada, os que foram à Serra Maestra, os que derrotaram a ditadura de Batista apoiada pelos ianques, um exército profissional bem armado. A geração de Fidel, de Raúl, tem um prestígio enorme, extraordinário. Não se pode comparar a nenhuma outra liderança. Eles mesmos foram preparando a sucessão a partir de pessoas que vieram sobretudo da direção das províncias. Díaz-Canel dirigiu com muito sucesso a provincia de Villa Clara e depois Holguín. Depois foi ministro do Ensino Superior, vice-presidente e agora presidente dos Conselhos de Estado e Ministros. Mas ele é a figura mais visível de muitos outros companheiros. São pessoas que não são tecnocratas. Não são pessoas que saíram de um laboratório. Não saíram de um lugar acético, onde constróis uma espécie de dirigente ideal. São pessoas que surgiram da batalha quotidiana, enfrentando uma infinidade de problemas e dificuldades, em contacto com a população. E todas elas, e podia nomear muitos companheiros, com uma liderança ganha no terreno. Não pelos seus méritos épicos, digamos assim. Por méritos ganhos no dia-a-dia..Os cubanos são muito inteligentes, detestam a retórica, os rituais, a formalidade, os cubanos sabem quando há um demagogo. Os cubanos formaram-se com Fidel, a ouvir Fidel, formaram-se com Raúl. Uma coisa que está a fazer Díaz-Canel, e que foi muito estimulante, é dar muita transparência à gestão do governo. Ele percorre as províncias, há muito diálogo com as pessoas, sejam coisas boas ou coisas relacionadas com problemas que não se resolveram. Tem um vínculo com a população. Uma das coisas que falhou naquele socialismo que se derrubou naquele tempo da Unão Soviética, nos países da Europa de Leste, foi o vínculo dos dirigentes com a população. E eu acho que a continuidade a que Díaz-Canel faz referência é que ele não perdeu o vínculo com a revolução. Nem ele nem os outros ministros, que o acompanham. Hoje há um conselho de ministros de gente muito jovem, muito preparada e não são saídos do laboratório. O atual ministro da cultura é um poeta brilhante, dirigiu a maior revista de poesia em língua castelhana, Alpidio Alonso..Mas em temas culturais houve uma polémica com o projeto de lei 349... Isso ainda é do meu tempo. É um decreto lei, que se discutiu com todos os criadores do país e surgiu das propostas que os artistas fizeram a Fidel, vem desde essa época. Esse decreto de lei tem a ver com a ideia de que, nos espaços públicos, num restaurante, numa praça, a música que se oiça, os artistas que atuem, o material audiovisual que se mostre, esteja em consonância com a política cultural..Há quem diga que é censura. Isso existe em todos os países. Não acredito que chegue aqui a uma praça e possa pôr num ecrã gigante reggaeton e mulheres com biquíni... a Câmara de Lisboa chamaria a atenção. Nos espaços públicos tem que haver algum tipo de lógica, alguma associação com a arte de verdade, a arte autêntica. Isso era o que pediam os artistas. O famoso 349 responde a defender a arte autêntica frente à arte medíocre, sobretudo vinda de fora, às concessões. O último Congresso da União de Escritores e Artistas foi extraordinário. Díaz-Canel falou e criou-se uma química entre ele e os intelectuais que assistiam ao congresso extraordinária. E os intelectuais não aplaudem para ser simpáticos, houve uma verdadeira relação de fundo entre o presidente e essa massa de intelectuais. Essa polémica foi construída desde fora. Há pessoas empregadas dos ianques, sem querer cair numa paranoia. Foi uma operação para criar divisão no movimento intelectual. Hoje ninguém fala disso, porque as pessoas entendem que é a favor da cultura, não contra. E a favor da cultura de verdade, contra o lixo..Falou do reggaeton, não teme que proibir algo possa servir como incentivo. E estão à disposição das novas tecnologias... O reggaeton não está proibido. É uma patetice querer hoje censurar. As novas tecnologias convertem o censor numa criatura arqueológica. Pertence ao passado. Não podes impedir que as pessoas vejam, gostem do que quiserem. O problema não é com o reggaeton ou com um género específico. O problema é contra os subprodutos, o retrocesso em termos estéticos. O problema é estético, não é político. O sentido deste decreto de lei era precisamente evitar que os gostos pessoais de alguém sejam imposto a um coletivo de pessoas sem os requerimentos estéticos essenciais. Não tem a ver com política, nem afetava a criação. Hoje, os artistas cubanos, massivamente apoiam isto e consideram-no um instrumento de política cultural, que favorece os melhores artistas. Um dos problemas que tem o mercado de arte é que a mediocridade prevalece sobre os talentos autênticos. Ao colocar o entretenimento vazio no centro dos processos e afastar um que te inquieta, que te convida a pensar, que representa um desafio intelectual, que é o que deve fazer a arte autêntica, favorece-se o primeiro. As regras do jogo são entreter, são a patetice, a banalidade, então é essa mediocridade que se torna predominante. É contra essa mediocridade que está o decreto..Voltando a Fidel e Raúl. Que parecidos ou diferentes eram os dois enquanto líderes? Acho que Fidel e Raúl são duas personalidades distintas, contudo, em termos do que defendiam, são iguais. Eram, ou são em caso de Raúl, dois grandes leitores, grandes conhecedores da história, próximos ao cinema, à literatura de caráter histórico, muito respeitosos dos artistas. Nunca recebi, como ministro de Fidel ou de Raúl, qualquer indicação que fosse contra os meus próprios princípios. Nunca o partido ou quem dirige o país me pediu que eu fizesse algo que fosse contra os meus princípios. Eles deram-me muita autonomia de trabalho. Por exemplo, na etapa de Fidel foi muito importante o conceito de que os artistas que viviam no exterior se mantivessem ligados a Cuba. No período especial, muitos artistas vieram para a Europa ou foram para os EUA. Houve uma imigração do setor artístico a partir de uma contração muito forte das fontes de trabalho. Por parte de Fidel e Raúl houve uma compreensão de que não era preciso romper com essas pessoas, não era preciso considerá-los inimigos por terem decidido viver fora de Cuba. Isso foi muito importante porque se eliminou uma espécie de prurido que havia em relação a quem viva fora, havia uma desconfiança das pessoas que viam isso como alguém que não tinha uma relação de simpatia com a revolução. Fidel e depois Raúl deram muitas facilidades para que os artistas pudessem desenvolver o seu trabalho dentro e fora de Cuba. E conseguiram muita boa comunicação com o setor artístico. E Díaz-Canel continua essa tradição. Para mim foi um privilégio trabalhar com os três..E a nível pessoal, como eram? O que acontece é que Díaz-Canel está, geracionalmente, mais próximo de mim. Conheci-o como secretário do partido em Villa Clara, fomos muito amigos. Seria uma mostra de vaidade estúpida dizer que fui amigo de Fidel e sou amigo de Raúl. Eles, para mim, sempre tiveram uma outra dimensão. São pessoas que respeitamos muito. Não é um respeito fanático. Raúl é uma pessoa que rapidamente procura uma comunicação na dimensão mais pessoal. Fidel também, mas Fidel era visto como o grande estratega. E o respeito que sinto por Díaz-Canel é diferente, porque tive uma relação maior de amizade. Sinto-me orgulhoso de sentir-me amigo dele. Posso dizê-lo sem pudor. Acho que é um privilégio. E admiro-o cada dia mais. Porque vejo o ritmo de trabalho que tem e o resultado do seu trabalho. A palavra continuidade não é casual. Acho que o principal, quando se fala de uma revolução como a cubana, mais do que a personalidade, as características pessoais de um líder ou outro, está nos princípios que defendem, no que estão a atentar fazer. E vemos assim uma continuidade. Díaz-Canel diz repetidamente que os dirigentes não podem perder a sensibilidade para as pessoas que têm necessidades particulares. Essa sensibilidade que está em Fidel, está em Raúl, está em Díaz-Canel, está no núcleo central da revolução cubana.