O ódio chegou ao Brasil antes de Bolsonaro

Publicado a
Atualizado a

O que tem sido o Brasil depois do pré-anúncio da eleição de Jair Bolsonaro já dá para ter uma ideia do que vai ser o Brasil depois da quase certa eleição de Jair Bolsonaro. E não, não vamos fazer conversa mole, para usar uma expressão adequada. Falemos de factos. Nesta semana o Brasil foi a morte de Moa do Katendê, um mestre de capoeira com 63 anos, com 12 facadas por uma discussão política.

Foi o atropelamento do cineasta Guilherme Daldin por um carro, em Curitiba, enquanto festejava a vitória de um apoiante de Ciro Gomes, quer dizer da direita suave, não a de Bolsonaro. Foi a prisão e o espancamento de uma mulher que grafitava numa parede de São Paulo #elenão. Os polícias que a prenderam não a libertaram enquanto ela não disse #elesim. Foi a agressão de um estudante da Universidade do Paraná, por estar vestido com uma camisa encarnada, de apoiante do PT. Uma jornalista foi esfaqueada e ameaçada de estupro. Uma suástica foi gravada, com lâmina, na barriga de uma jovem: ela tinha um autocolante com um arco-íris e mais um #elenão. Um cão que ladrou contra uma caravana de campanha pró-Bolsonaro, na Bahia, foi morto com três tiros por um homem que saiu de um dos carros.

Uma semana bastou para acontecer o que era de prever. Do Brasil do sorriso, da tolerância, da paquera fácil - lugares tão comuns como verdadeiros - para o Brasil do ódio. Não um ódio com qualquer fundo de razão, mas o mais ancestral dos ódios, ao outro, ao diferente. O que nos une é também o que nos protege do que nos separa. Há anos que isto se investiga na filosofia, na antropologia e noutras ciências sociais.

Nas democracias liberais ocidentais, como era o Brasil, há uma maioria de uns e umas franjas de outros. E o que levou Bolsonaro ao lugar de destaque que hoje tem não foi a parte mais radical do seu discurso, a que fala para as franjas. Foi o que nele apela à maioria, a de serem protegidos dos outros. Sorte dele, azar o nosso, há hoje variadas necessidades de proteção. Dos deserdados de sempre, abandonados por um sistema que protege elites corruptas, às próprias elites que se sentem ameaçadas pelos deserdados e pela violência endémica, passando pela esmifrada classe média.

Tantos para se sentirem "uns" face aos "outros". Suficientes tantos para serem uma grande tribo. Acontece que o tribalismo leva ao preconceito, ao ódio. A rápida transformação disso em violência indica que o ódio sempre esteve lá, atrás do sorriso, como pressão em panela antes de explodir.

Um dos alvos da violência a seguir à primeira volta foram os gays, como detetou o correspondente do DN no Brasil, João Almeida Moreira. Em reportagem falou com os que se sentem ameaçados e com vontade de emigrar para Portugal. "Parece que os preconceituosos é que estavam escondidos no armário", dizia-lhe um advogado de São Paulo.

Regressamos a este assunto hoje porque era deste conflito que falava a capa da semana passada do DN, muito criticada nas redes sociais. Nessa altura era latente, agora é evidente. Aquela foto que publicámos era a foto de uma manifestação anti-Bolsonaro pelo amor livre. Era uma manifestação política, onde alguém colocou um autocolante no rabo para ser fotografado. Uma pessoa - homem ou mulher, não se sabe nem pela foto nem pela manifestação, que uniu gays, mulheres, homens e todas as variantes sexuais - participou numa manifestação e colocou sobre as suas meias de rede um autocolante. Politizou-as, e às suas nádegas.

O fotojornalista da Reuters fez o seu trabalho: fotografou. O rabo, as meias, o autocolante anti-Bolsonaro. Aquela câmara foi de repórter - um profissional enviado fotografou o que estava a acontecer e a sua imagem disse o que acontecia. Aquele jornalista viu e contou - a divisão e o protesto. O DN escolheu a foto e publicou o título: "Brasil dividido". O Brasil dos outros contra o Brasil de uns. Tão atual na semana passada como hoje. Quando houver outras nádegas igualmente políticas, cá estaremos para dar notícia delas.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt